A 1 de setembro de 1715, o rei Luís XV de França, bisneto do “rei-sol”, o absoluto Luís XIV, assumia o trono após 72 anos do mais logo reinado de toda a história da Europa. Mas há hoje uma monarca que corre sérios riscos de ultrapassar todos os recordes se continuar a liderar o país até 2024. Rainha desde a morte do pai, a 6 de fevereiro de 1952, Isabel II de Inglaterra atualmente com 95 anos, já leva um reinado que ocupa metade do século XX e quase um quarto do século XXI.
Lilibet, a cognome carinhoso da família mais próxima, nasceu a 21 de abril de 1926 no seio da família real britânica. Filha de Jorge VI e de Isabel Bowes-Lyon, pouco fazia prever que viesse a tornar-se rainha de Inglaterra.
Acabou por ser esse o seu destino subitamente traçado depois do tio, Eduardo VIII ter abdicado do trono em 1937, meses depois da morte do rei Jorge V, para poder casar com a socialite norte-americana Wallis Simpson. O irmão, Jorge VI, tornou-se no terceiro monarca da casa de Windsor e abria assim caminho para que a coroa ficasse um dia predestinada à filha primogénita.
Rodeada por realeza, a crescer no contexto monárquico, a educação de Isabel, e da irmã, Margarida, aconteceu sobretudo em casa, com apoio da mãe e de uma governanta, com foco especial nas disciplinas de história, literatura, línguas, música, e mais tarde história constitucional.
Dentro dos padrões reais, a pequena princesa e a família viviam uma vida normal e pacata até à abdicação do tio. A união era evidente na forma como o futuro rei se referia sempre ao contexto íntimo familiar: “we four”, ou “nós os quatro”.
Com a coroação do pai, Jorge VI, Isabel passava em 1936 a ser a herdeira presuntiva do trono e assistia a uma brusca alteração de todos os planos para os quais tinha sido designada. Anos depois, a morte prematura do pai, em 1952, chamou-a para o dever muito mais cedo do que seria de antecipar, quando tinha apenas 25 anos.
A menina que não tinha nascido para ser rainha transformou-se numa monarca global e intemporal, uma constante na vida política e pública no Reino Unido e em tantos outros países onde foi soberana, mas também num exemplo de perseverança para o resto do mundo.
Qualquer texto académico, biográfico, perfil ou reportagem jornalistíca falhará na tentativa de abarcar a importância ou todas as mudanças, as polémicas e transformações que ocorreram durante os 70 anos de liderança de Isabel II. Se o pai enfrentou os enormes desafios de discursar na rádio para que milhões o ouvissem – triunfando sobre a gaguez tal como retratado na película O Discurso do Rei, - Isabel foi a primeira rainha da história do Reino Unido a ter uma grande transmissão televisiva da sua coroação em direto na televisão, inaugurando um novo tempo de uma atenção mediática vertiginosa, impensável para gerações anteriores.
“O público tende a atribuir mais poder e autonomia aos monarcas e famílias reais do que eles na realidade têm: seja na formação de novos governos, na abertura do Parlamento ou na aprovação de leis, na escolha de visitas de Estado ou na concessão de honras. Outro paradoxo é que o público olha para a monarquia para que esta represente continuidade, estabilidade e tradição, mas também exige que ela seja moderna e reflita valores modernos. Toda a instituição da monarquia está repleta de contradições e expectativas irrealistas”, argumentam no livro “The Role of Monarchy in Modern Democracy”.
Se há monarca que assistiu e resistiu a todas as mutações e controvérsias, no seio político, institucional, mas também familiar, essa monarca é Isabel II. Procuramos reunir os principais momentos da vida cheia de uma rainha que continua a manter a equidistância e o enigma próprios da Coroa, mas que se tem permitido a aproximar-se dos seus súbditos como nenhum outro antecessor.
A primeira declaração em plena II Guerra Mundial
Com apenas 14 anos, em 1940, a princesa Isabel lia na BBC a primeira declaração pública radiofónica ao serviço da família real. Ao lado da irmã Margarida, a futura rainha falava às crianças do Reino Unido, dirigindo-se em particular às que estavam separadas dos pais durante a Segunda Guerra Mundial.
Nos anos de conflito, Isabel e Margarida passaram grande parte do tempo longe dos pais e dos bombardeamentos em Londres, tendo ficado longas temporadas no Castelo de Balmoral, na Escócia, e em Windsor. Os reis optaram por ficar em Londres, onde partilharam com outros concidadãos os riscos de permanecer na capital em tempo de guerra. No auge do conflito, durante o “Blitz”, o Palácio de Buckingham chega a ser bombardeado pelos nazis.
Na rádio pública britânica, a pequena princesa tenta aproximar-se da experiência de outros pequenos compatriotas, mostrando que também ela está separada dos pais num momento de dificuldade.
“Milhares neste país tiveram que deixar as vossas casas e ser separados dos seus pais e mães. A minha irmã Margarida e eu sentimos muito por vocês, porque sabemos por experiência própria o que significa estar longe daqueles que mais amamos”, afirmava ao programa Children’s Hour, na BBC.
Ainda criança, à entrada para a adolescência, a futura rainha deixa uma palavra de resistência não só aos mais novos, mas a todos os que estão na linha da frente. Representante da geração futura, a herdeira presuntiva aponta aos desafios do amanhã.
“Nós, crianças em casa, estamos cheios de alegria e coragem. Estamos a tentar fazer tudo o que podemos para ajudar os nossos valentes marinheiros, soldados, aviadores, e a suportar o perigo e a tristeza da guerra. Sabemos que no final tudo ficará bem, porque Deus cuidará de nós e dar-nos-á vitória e paz. Quando tivermos paz, lembremo-nos que nos cabe a nós, os filhos de hoje, fazer do mundo de amanhã um lugar melhor e mais feliz”, referia.
Isabel passa uma importante fase da infância e início de adolescência no contexto da Segunda Guerra Mundial. A primeira declaração é dócil e afável, mas obtém grande impacto político e demonstra, para muitos, os primeiros sinais de liderança e erudição da futura rainha.
Perante o esforço de guerra do país, Isabel sempre mostrou vontade de desempenhar um papel ativo. Na reta final do conflito, juntou-se ao ramo feminino do Exército britânico (ATS). Em 1945, ainda antes de completar 19 anos, a princesa praticou como condutora de ambulâncias e tornou-se na primeira monarca feminina no Reino Unido com histórico de serviço nas Forças Armadas.
Uma viagem e um discurso históricos na África do Sul
No vigésimo primeiro aniversário, a 21 de abril de 1947, a princesa Isabel faz um discurso histórico que irá definir o seu reinado, ainda antes de se tornar rainha. No contexto de uma viagem com a irmã e com os pais pela África do Sul e antiga Rodésia, a rainha compromete-se a servir a Coroa, o país e a Commonwealth, até ao fim dos seus dias.
“Declaro diante vós que toda a minha vida, seja ela longa ou curta, será dedicada ao vosso serviço e ao serviço da nossa grande família imperial, à qual todos pertencemos”, declarou a rainha no discurso emitido pela rádio a partir da Cidade do Cabo. Um “ato solene de dedicação” com “todo um Império” a ouvi-la, como descreve a própria.
A soberana fala para o país e comunidade, mas também para a geração: “Hoje penso especialmente em todos os rapazes e raparigas que nasceram na mesma época que eu, e que cresceram, como eu, nos anos terríveis e gloriosos da II Guerra Mundial. Permitem-me que eu, jovem da família real, fale no meu aniversário, em vosso nome? Agora que estamos a chegar à idade adulta (…), é certamente uma grande alegria para todos nós pensar que seremos capazes de tirar parte do fardo dos ombros dos mais velhos, que lutaram, trabalharam e sofreram para proteger a nossa infância”.
“Se todos avançarmos juntos com uma fé inabalável, uma grande coragem e um coração sereno, seremos capazes de fazer desta antiga comunidade, que todos amamos tanto, ainda mais grandiosa, mais livre, mais próspera, mais feliz e uma influente e poderosa para o bem no mundo”, declara.
O discurso ocorre num ano decisivo para a herdeira do trono. Apenas oito meses depois, Isabel dava mais um importante passo na idade adulta, ao casar com o Príncipe Filipe. Com cinco anos de diferença, os dois tinham-se conhecido em 1939, quando a futura rainha tinha apenas 13 anos.
Na altura, Filipe, príncipe da Grécia e Dinamarca, chegava a Dartmouth com 17 anos para iniciar a carreira de cadete da Marinha real. Durante vários anos, ambos trocaram correspondência e o casamento só aconteceria anos mais tarde, depois da Segunda Guerra Mundial, com o noivado a ser anunciado em julho de 1947.
Antes de casar com Isabel, o príncipe Filipe desistiu de todos os títulos anteriores, nomeadamente ao abdicar do lugar na sucessão da família real grega, tornando-se cidadão britânico. Na manhã do casamento, recebeu o título de Duque de Edimburgo, que manteria até ao final da vida.
Os anos em Malta e a ascensão ao trono
Esta fase decorreu entre 1949 e 1951, já que Filipe, duque de Edumburgo, tinha sido destacado para aquele mesmo local ao serviço da Marinha britânica, como um dos responsáveis pelo destroyer HMS Chequers. Vários biógrafos da rainha dizem que estes foram os dias mais felizes e despreocupados da então princesa, jovem mulher e mãe.
Porém, os anos de juventude e de absoluta dedicação à recém-criada família foram abruptamente interrompidos. A saúde do rei Jorge VI piorava a olhos vistos devido a um cancro do pulmão, entre outras complicações. Gradualmente a princesa Isabel e o marido foram assumindo cada vez mais funções de representação do rei, sobretudo a partir de finais de 1951.
O monarca acabaria por morrer aos 56 anos após uma trombose, a 6 de fevereiro de 1952. A princesa Isabel encontrava-se desde início do mês de visita ao Quénia, no início de uma longa viagem que a deveria ter levado pela Commonwealth, com a Austrália e Nova Zelândia como destinos finais.
Um ano depois da morte do pai, Isabel II é coroada a 2 de junho de 1953, num ritual com quase 900 anos de história. Esta, porém, foi a primeira cerimónia completamente transmitida em direto pela televisão.
A BBC destaca que este foi o evento que, “mais do que qualquer outro,
transformou a televisão num meio de comunicação convencional”, ao
incentivar e democratizar o acesso a este novo meio.
Na altura da coroação do pai, o rei Jorge VI, em 1937, a televisão
pública britânica tinha apenas seis meses e estava limitada por grandes
restrições tecnológicas e mesmo constitucionais, refere Alban Webb,
especialista em estudos de comunicação na Universidade de Sussex.
“O contraste, em termos televisivos, entre as duas Coroações de 1937 e 1953 foi enorme.
(…) Se havia apenas três câmaras em 1937, em 1953 a BBC usou mais de
vinte em vários locais. A escala e ambição, sem falar na clareza visual,
da produção foram incomparáveis”, refere o perito.
Ainda que a televisão estivesse a conquistar telespectadores a cada dia,
esta foi a primeira cerimónia onde se refletiu sobre possíveis
interferências e vicissitudes de transmitir um evento quase sagrado e
quase milenar, mas que ajudou também à modernização e aproximação do
povo à monarquia. “Nunca antes dos súbditos da coroa tinham tido a
oportunidade de dar as boas-vindas ao seu monarca através de som e
imagem nas suas próprias casas”, acrescenta Alban Webb.
Viagem pelo mundo e a relação com Churchill
Isabel II é hoje a chefe de estado mais viajada da história. Desde que é rainha, visitou mais de uma centena de países, alguns dos quais em repetidas ocasiões. De facto, um dos primeiros momentos marcantes do reinado foi a viagem de seis meses entre 1953 e 1954 por vários países da Commonwealth, a mesma que tinha sido interrompida aquando da morte do pai.
No Reino Unido, os primeiros anos enquanto soberana foram marcados pela liderança ao lado do primeiro-ministro, Winston Churchill, chefe de Governo entre 1940 e 1945 e, mais tarde, entre 1951 e 1955.
Sem dúvida, a jovem rainha terá tido muito a aprender do lendário primeiro-ministro britânico, na altura já com perto de 80 anos. Para alguns biógrafos de Churchill, a inexperiência da jovem monarca terá sido fulcral para que o primeiro-ministro se mantivesse no cargo, numa altura em que a sua saúde definhava. Apenas três semanas depois da coroação de Isabel II, a 23 de junho de 1953, Winston Churchill teve um AVC, que só mais tarde seria de conhecimento público.
Poucos dias antes de Churchill abandonar o poder, a rainha escrevia uma nota de despedida e agradecimento pela própria mão. Assume que, embora confiasse no sucessor, Anthony Eden, “seria inútil fingir que ele ou qualquer um dos que se seguirão no cargo será, para mim, capaz de ocupar o lugar de meu primeiro-ministro, a quem tanto eu e o meu marido devemos, pela sábia orientação durante os primeiros anos do meu reinado, razão pela qual lhe estarei para sempre profundamente grata”.
Visita a Portugal e crise no Suez
Em 1956, a nacionalização do canal do Suez pelo então presidente do Egipto, Gamal Abdel Nasser, desencadeou uma série de acontecimentos que marcaram o início do fim do Império britânico e quase lançaram o mundo numa nova guerra global.
De facto, a sucessão de eventos foi um desastre político e diplomático para o Reino Unido e levou mesmo à demissão do primeiro-ministro conservador, Anthony Eden.
Após a nacionalização do canal do Suez, Israel invade o Egito em 1956, e logo seguem-se Reino Unido e França. No entanto, o conflito duraria apenas alguns dias, com Estados Unidos, União Soviética e Nações Unidas a apelarem à retirada de israelitas, franceses e britânicos, uma humilhação sobretudo para estes últimos, até aqui a grande potência marítima a nível global.
Enquanto rainha de uma monarquia constitucional, Isabel II procurou sempre estar acima da política, pelo que o posicionamento em relação a esta - e tantas outras matérias - é desconhecido. Por outro lado, o conteúdo dos encontros semanais entre primeiros-ministros e monarcas é de caráter estritamente privado. No entanto, anos mais tarde, numa entrevista pouco antes de morrer, em 1976, Anthony Eden afirmou que “não diria que a rainha era pro-Suez”.
É também nesta altura que Isabel II passa pela primeira vez por Portugal, a 18 de fevereiro de 1957. Na altura, a Rádio e Televisão de Portugal ainda não tinha emissões regulares, mas organizou uma grande operação televisiva, verdadeira “prova de fogo” para uma estação que dava os primeiros passos. As emissões regulares da televisão portuguesa viriam a iniciar-se no mês seguinte, em março de 1957.
Tragédia no País de Gales e o equilíbrio da distância
A década de 60 fica marcada por aquele que é apontado como um dos grandes arrependimentos de Isabel II desde que assumiu o trono. Na manhã de 21 de outubro de 1966, pelo menos 116 crianças e 28 adultos morreram na sequência do colapso de uma mina de carvão na cidade galesa de Aberfan.
Após vários dias de chuva intensa, o colapso da mina resultou numa avalanche de lama e detritos, com resíduos de carvão liquefeito, que soterrou a escola primária da vila e várias casas.
O príncipe Filipe viajou para o local logo no dia seguinte após o desastre, mas a rainha atrasou por vários dias a visita à localidade vergada pela tragédia, por receio de que a sua presença atrapalhasse os esforços de resgate em curso.
Isabel II só chegou a Aberfan uma semana depois do colapso da mina. Alguns elementos próximos da Coroa britânica, incluindo o ex-secretário Martin Charteris, afirmaram que a Rainha viria a lamentar profundamente a decisão de adiar a ida à localidade galesa.
Os acontecimentos de Aberfan, tão bem retratados na incontornável série da Netflix, The Crown, mostram a nem sempre fácil gestão da imagem real perante os súbditos: nunca demasiado próxima, mas sem uma distância excessiva da vida real e preocupações dos cidadãos. O desafio torna-se ainda mais complexo num mundo em mudança, cada vez menos monárquico e mais mediático.
É uma das razões que leva a família real a participar num documentário inédito de 105 minutos, transmitido a cores pela BBC e ITV em junho de 1969. O objetivo da rainha era, não só humanizar e dar a conhecer o dia-a-dia da família real, cada vez mais irrelevante e onerosa aos olhos da sociedade, mas também apresentar o filho primogénito, Carlos, então com 21 anos.
A década de 60 e também a década seguinte ficam ainda marcadas pelo declínio definitivo de um império, com a onda de descolonização e emancipação a varrer o mundo. Isabel II é a rainha da mudança, quando o Reino Unido segue a via da Commonwealth para preparar a transição.
Se vários países escolhem o caminho da independência, noutros fortalecem-se os laços entre Isabel II e os países onde é rainha, ou não fosse a Comunidade das Nações o seu grande desígnio desde o discurso em 1947, a partir da África do Sul.
Para lá da Commonwealth, Isabel II é, de longe, a monarca com mais viagens de sempre na história, tendo visitado mais de uma centena de países desde que assumiu o trono. Canadá, Austrália e África do Sul são alguns dos países mais visitados pela rainha e onde as viagens foram mais marcantes.
Golpes à Coroa e a relação com Thatcher
Para compreender a magnitude e extensão do reinado duradouro de Isabel II, bastaria constatar que foi a monarca que assistiu à entrada e à saída do Reino Unido da comunidade europeia. A década de 70 inicia-se precisamente com a adesão europeia, em 1973, à medida que a influência britânica além-mar ia assumindo novos contornos.
Os anos de 1970 ficariam marcados por vários episódios que atingiram o coração da monarquia no Reino Unido. Se em 1977 Isabel celebrava o Jubileu de Prata – 25 anos no poder – no ano seguinte recebia a contragosto uma polémica visita do ditador romeno Nicolae Ceaușescu.Um recente documentário da televisão britânica ITV conta que Isabel II ainda tentou, sem sucesso, evitar o contacto com o líder comunista.
A década de 70 termina com dois eventos marcantes: em 1979, é revelada publicamente a atividade do historiador de arte Antony Blunt, próximo da rainha, como espião da União Soviética. Mas este é sobretudo o ano do atentado contra Lord Mountbatten. Tio de Filipe, duque de Edimburgo, e primo de Isabel II, Mountbatten e outros três membros da família real morreram num ataque terrorista do Exército Republicano Irlandês (IRA) a bordo do seu barco de pesca.
Este tema será, de resto, um dos mais marcantes de todo o reinado de Isabel II: os Troubles, como é designado no Reino Unido o período de conflito na Irlanda do Norte que só terminaria décadas depois com o Acordo de Belfast, assinado em 1998.
O início da década de 80 fica marcado pela guerra das Malvinas, em 1982, conflito opôs o Reino Unido e a Argentina, país que reclamava soberania sobre os territórios insulares.
Ambas discordaram ainda abertamente quanto à decisão sobre a imposição de sanções ao regime de apartheid na África do Sul ou na importância dada à Commonwealth, um palco que Thatcher desvalorizava. No entanto, as duas figuras históricas acabariam por conviver e trabalhar em conjunto todas as semanas durante onze anos. No final, mesmo que a relação não tivesse sido perfeita, Isabel II atribuiu a Thatcher a prestigiada Ordem de Mérito.
Da década de 80 ao annnus horribilis
Não é apenas Isabel II que tem estabelecido novos marcos históricos. O primeiro filho da rainha, príncipe Carlos, é o herdeiro presuntivo há mais tempo a ocupar esta posição. Atualmente com 73 anos, Carlos nasceu em 1948, poucos anos antes da mãe subir ao trono.
Começa uma nova era de intenso interesse mediático na família real, alvo de grande escrutínio dos principais tabloides. Já depois do nascimento dos príncipes William e Harry, surgem os primeiros sinais de incompatibilidade entre a princesa de Gales e o príncipe Carlos, muito devido à relação entre o príncipe de Gales e uma antiga namorada, Camila Parker Bowles.
Em conflito aberto na imprensa e com os respetivos affairs na praça pública, a rainha Isabel II ainda tenta salvar o casamento do filho primogénito e presumível sucessor, mas sem sucesso. Carlos e Diana divergem nitidamente a partir de 1992, o seu annus horribilis, de acordo com a descrição da rainha.
Nesse mesmo ano, outros dois dos quatro filhos de Isabel II anunciam os respetivos divórcios: a princesa Ana separa-se do marido, Mark Philips, e o príncipe André divorcia-se da mulher, Sara Fergunson.
“1992 não é um ano para o qual olharei com grande prazer. Nas palavras de um dos meus correspondentes mais simpáticos, acabou por ser um 'annus horribilis’”, admitiu a rainha no discurso em que se celebravam os 40 anos desde que assumira o trono. Diana e Carlos acabariam por se divorciar apenas quatro anos depois, em 1996.
De facto, todo o reinado de Isabel II fora dedicado a manter a face e as décadas de tradição religiosa e secular no seio da família real. Que o diga o tio, que se viu afastado do trono para casar com Wallis Simpson, uma mulher divorciada, decisão que catapultou Isabel II para o caminho do trono.
Ou que o diga a própria irmã da rainha: uma das primeiras e mais difíceis decisões de Isabel II, logo na década de 50, consistiu precisamente em travar o casamento entre Margarida e um homem divorciado, Peter Townsend.
Mas o mais duro golpe na popularidade da Coroa chegaria com a abrupta e traumática morte de Lady Di num acidente de automóvel em Paris, na noite de 31 de agosto de 1997. A Coroa britânica foi duramente criticada por demorar demasiado tempo – cinco longos dias - na resposta à tragédia que vitimara a mãe dos dois príncipes, ex-mulher do herdeiro presuntivo.
Com os níveis de popularidade em mínimos históricos, a rainha reagiu à hostilidade com um discurso que ficaria para a história, recordando que naquele momento desempenhava não só o papel de rainha, mas também de avó.
“O que vos digo agora, como rainha mas também como avó, digo de coração. Quero prestar a minha homenagem a Diana, pessoalmente. Ela foi um ser humano excecional e talentoso. Nos bons e nos maus momentos, nunca perdeu a capacidade de sorrir e de amar, ou de inspirar os outros com o seu calor e simpatia”, clama Isabel II num discurso acolhido com emoção pelos britânicos e pelo mundo.
O novo milénio
Na entrada no novo século, o avançar da idade traz a Isabel II os primeiros problemas de saúde que, ainda assim, nunca a afastaram completamente da vida pública até à atualidade.
De acordo com relatos da imprensa britânica, Isabel II terá demonstrado desconforto e frustração com o posicionamento de Tony Blair de apoio incondicionável aos Estados Unidos, mas sabia que qualquer intervenção que interferisse com as decisões do Parlamento teria motivado uma crise constitucional no país.
Apesar dos atritos do passado, Isabel II anunciou ainda este ano que Tony Blair passa a estar condecorado com o título de ‘Sir’ e o grau de Cavaleiro (“Knight Companion”) da Ordem de Garter, a mais antiga e mais elevada ordem honorífica de britânica, uma decisão que tem sido contestada no Reino Unido.
Ao longo do reinado de 70 anos, Isabel II discursou por duas vezes a sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, a primeira em 1957 e a segunda em 2010. O então secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon resumia em poucas frases o impacto da monarca no mundo:
“O seu reinado estende-se por décadas. Desde os desafios da Guerra Fria à ameaça do aquecimento global. Dos Beatles a Beckham. Da televisão ao Twitter. Ao longo destes anos, viajou pelo mundo e conheceu os vários povos. Tornou-se num símbolo vivo da elegância, constância e dignidade”, afirmou.
Verdadeiramente histórica é também a primeira visita, já mencionada, da soberana à República da Irlanda, em 2011. Vestida de verde-esmeralda, Isabel II aterra em Dublin a 17 de maio desse ano, tornando-se na primeira monarca britânica a pisar o chão do país que se tornara independente do Reino Unido há menos de um século.
No dia seguinte, a rainha discursa no Castelo de Dublin e cumprimenta os presentes com algumas palavras em gaélico, o que surpreendeu visivelmente os próprios convidados. “Juntos temos muito que comemorar: os laços entre os nossos povos, os valores compartilhados e as ligações económicas, comerciais e culturais que nos fazem muito mais do que vizinhos, que nos tornam amigos firmes e parceiros de igual para igual”.
Em abril de 2014, o presidente irlandês Michael Higgins retribuiria a visita da monarca britânica, tornando-se no primeiro chefe de Estado irlandês a participar numa visita oficial ao Reino Unido.
Jubileu de diamante. Do Brexit à pandemia
Poucos momentos contemporâneos e da cultura popular terão sido tão icónicos como a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres, quando Isabel II encena a chegada ao estádio de helicóptero, ao lado de Daniel Craig, na pele de James Bond.
Chegada aos 60 anos no trono e ao jubileu de diamante, Isabel II irá assistir em 2014 ao referendo pela independência da Escócia, momento em que o primeiro-ministro David Cameron procurou apoio e ajuda da soberana. Dias depois da conversa entre ambos, ainda antes da votação, Isabel II afirmava: “Bom, espero que as pessoas pensem muito cuidadosamente no seu futuro”. Foi na altura acusada de interferir nos assuntos políticos dos quais se deveria manter à distância, mas o Palácio de Buckingham desmentiu qualquer tentativa de intervenção.
“A imparcialidade constitucional da soberana é um princípio estabelecido de nossa democracia e que a rainha demonstrou ao longo de seu reinado. Como tal, o monarca está acima da política. (…) Qualquer sugestão de que a rainha gostaria de influenciar o resultado da atual campanha do referendo é categoricamente errada. Sua Majestade é simplesmente da opinião que este é um assunto que diz respeito ao povo da Escócia", refere o comunicado.
Em 2016, um novo referendo vem testar o poder de imparcialidade da rainha. A mesma monarca que supervisionou a entrada do Reino Unido nas comunidades europeias assiste, décadas depois, ao processo de saída. Primeiro com David Cameron no número 10 de Downing Street, depois com Theresa May e mais tarde Boris Johnson, a rainha foi resistindo às várias tentativas de envolvimento da Coroa no combate político sobre o Brexit.
Desde setembro de 2015 que Isabel II é a monarca com o reinado mais longo da história do Reino Unido, ultrapassando a lendária rainha Vitória, que ocupou o trono durante grande parte do século XIX.
A estoica longevidade da rainha chega até à atualidade, num novo mundo e realidade vergados pela pandemia. Cumpre os 70 anos de reinado este domingo, depois de um ano que ficou marcado pela perda do marido, Filipe de Edimburgo, a 9 de abril de 2021, aos 99 anos.
Para a história fica a imagem da monarca no funeral, na capela de São Jorge, a despedir-se do companheiro de vida desde 1947. Vestida de preto, com máscara escura, Isabel II é fotografada praticamente sozinha, em cumprimento do distanciamento social.
Os últimos anos ficam ainda marcados pelo afastamento do neto, Harry, e pelas polémicas que envolvem o filho, o príncipe André. O processo por alegado abuso sexual de que é alvo nos Estados Unidos levou mesmo à recente perda dos títulos militares e reais do até então duque de Iorque.
Impassível, imperturbável, constante, Isabel II vai resistindo às polémicas, aos ventos políticos, às tempestades na vida do país e no âmbito familiar. Com o avançar do tempo e da idade, Isabel II tem delegado cada vez mais funções e tarefas a outros membros da família real, mas já afirmou que não pretende abdicar do trono.