Timor-Leste viveu em 2006 um ano de retrocesso, com uma crise que levantou dúvidas sobre a sua viabilidade como Estado e lhe ofuscou a imagem de "jóia da coroa" da ONU no processo de construção de nações.
Apenas quatro anos depois de ver a independência reconhecida pela comunidade internacional (20 de Maio de 2002), Timor-Leste voltou a viver um cenário de violência e destruição, com um saldo de cerca de 60 mortos, incluindo um cidadão brasileiro.
A crise desencadeada em Abril com a demissão de cerca de 600 dos 1.400 efectivos das forças armadas timorenses, por alegada discriminação étnica, também provocou 180 mil deslocados, muitos dos quais continuam em campos de acolhimento por receio de violência ou simplesmente porque as suas casas foram destruídas.
Ao nível das forças de segurança, a crise resultou na desintegração da polícia e na deserção de vários militares, o mais mediático dos quais, o major Alfredo Reinado, continua a monte depois de ter fugido da prisão de Díli, onde chegou a estar detido por posse ilegal de armas.
Da crise, resultou também a demissão de Mari Alkatiri do cargo de primeiro-ministro, em que foi substituído por José Ramos Horta, e processos judiciais contra alguns dos intervenientes nos acontecimentos, incluindo o ex-ministro do Interior Rogério Lobato, acusado de distribuição de armas a civis.
Mari Alkatiri, líder da FRETILIN (Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente), o partido maioritário, também foi constituído arguido pela distribuição de armas - alegadamente para eliminar os seus opositores políticos - mas o processo foi arquivado por falta de provas, segundo fonte judicial.
Desde Maio, encontram-se em Timor-Leste forças militares e policiais de vários países, incluindo Austrália e Portugal, para tentar repor a lei e a ordem.
"O que se passou em Timor-Leste foi uma grande decepção para todos", reconheceu em Junho o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, que teve de propor um reforço da missão das Nações Unidas no país, quando a organização se preparava para deixar em Díli apenas um grupo de conselheiros.
A ONU administrou transitoriamente Timor-Leste desde o fim da ocupação da Indonésia (1975-1999) até à independência e reclamava tratar-se de um raro caso de sucesso no processo de construção de uma nação.
Estabilizada a situação nas instituições do Estado, com a posse de um novo governo - embora com a maioria dos ministros a transitarem do que era contestado nas ruas - e o aquartelamento das forças de defesa e do que restava da polícia, a violência nem por isso desapareceu das ruas de Díli.
Quase diariamente, as forças internacionais têm acorrido a confrontos entre grupos rivais, numa lógica de alegada luta étnica ("loromonu", dos distritos ocidentais do país, contra "lorasae", da zona oriental).
A crise revelou um choque de personalidades entre Gusmão e Alkatiri, os protagonistas destacados do processo, a par de José Ramos Horta, cuja demissão como ministro dos Negócios Estrangeiros contribuiu para a queda do primeiro executivo constitucional.
Xanana e Alkatiri evidenciaram que as suas divergências são profundas e remontam ao tempo da resistência à ocupação indonésia, quando o actual Presidente decidiu, nos anos de 1980, retirar as FALINTIL (Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste), que comandava, da subordinação à FRETILIN, que as criara para a guerra civil de 1975.
Em várias intervenções - nem sempre compreendidas por ocidentais dado o seu estatuto de Presidente da República, mas com sentido para muitos timorenses que o reconhecem como o "irmão mais velho" -, Xanana Gusmão foi apontando o dedo a Alkatiri e à FRETILIN, que acusou nomeadamente de terem inviabilizado um governo de unidade nacional em 2002, ao transformarem a Assembleia Constituinte (eleita em 2001, com maioria da FRETILIN) no actual Parlamento.
Mari Alkatiri e a FRETILIN atribuíram a crise a uma conspiração que envolveria forças externas - leia-se Austrália, por causa de divergências sobre as explorações petrolíferas no Mar de Timor - e que teria como objectivo um golpe de Estado para afastar o partido maioritário do poder.
Com menos de um milhão de habitantes, a República Democrática de Timor-Leste é um dos países mais pobres do mundo, com uma taxa de desemprego entre os jovens de 44 por cento nas cidades e uma população que aguarda pelas receitas do petróleo.
A braços com uma nova crise humanitária, dependente mais uma vez de forças de segurança estrangeiras e com um Estado fragilizado, Timor-Leste tem pela frente um ano que se adivinha difícil, durante o qual deverão realizar-se eleições presidenciais e legislativas num cenário de uma crise política complexa e não resolvida.