150 anos depois. Louise Michel, símbolo da Comuna de Paris

por António Louçã - RTP
Louise Michel DR

Na madrugada daquele dia 18 de março, uma professora primária a caminho do trabalho ouviu gritos de dor, foi ver de onde vinham e encontrou um miliciano ferido. O miliciano era uma das sentinelas que guardavam os canhões da Guarda Nacional. Durante a noite, o miliciano fora atacado por forças do Exército regular que pretendiam roubar os canhões. A professora era Louise Michel. Nos meses seguintes, ia tornar-se uma figura lendária. Naquele momento, chamou um médico para socorrer o ferido e deu o alarme para defender os canhões. Tinha começado a revolução de março.

A Guarda Nacional era o povo de Paris em armas, organizado para defender a capital francesa contra os invasores prussianos. Tropa miliciana, era composta por 134 batalhões com 300.000 efectivos agrupados numa vintena de bairros (arrondissements); cada um deles elegera um representante; e essa vintena de cidadãos, na sua maioria operários ou pequenos comerciantes, passara a constituir o Comité Central da milícia.
Os canhões da Guarda Nacional, metáfora do poder popular
Os canhões eram a menina dos olhos da Guarda Nacional. A maioria tinha sido paga com subscrições populares. Quando a capitulação assinada pelo Governo permitiu às tropas prussianas entrarem em Paris, a Guarda Nacional decidiu colocar os canhões fora do alcance do invasor.

Levou-os então para o alto das colinas de Montmartre e de Belleville. Para o transporte, já não havia cavalos, porque, ao fim de quatro meses de cerco, tinham sido todos comidos. Foram milicianos que se atrelaram aos canhões e os puxaram até ao alto. 

Em 5 de março, os prussianos entraram em Paris, desfilaram triunfalmente nos Campos Elíseos, ocuparam durante três dias os bairros ocidentais e voltaram a partir sem tocarem nos canhões.

Mas o povo de Paris armado com canhões causava mais dores de cabeça à plutocracia gaulesa do que aos ocupantes germânicos. Um novo Governo encabeçado por Adolphe Thiers instalou-se em Paris em 15 de março com o objectivo prioritário entre todos de dar um golpe de Estado. O plano era roubar os canhões durante a noite de 17 para 18 e capturar o Comité Central ao amanhecer.

Alguns generais avisaram Thiers sobre a imprudência do plano: os soldados regulares eram relativamente poucos e estavam desmoralizados por sucessivas derrotas na guerra contra a Prússia. Contra eles, iam ter os “federados” da Guarda Nacional em número quase dez vezes superior, com um moral elevado, orgulhosos por terem defendido Paris durante quatro meses de cerco prussiano.
Os pequenos detalhes que fazem falhar um putsch

Thiers teimou em dar o golpe naquela noite e preocupou-se acima de tudo em garantir o efeito de surpresa. Para não alertarem quem as visse, as tropas avançariam sem bandeiras. Para não despertarem quem dormia, avançariam sem os cavalos que tinham trazido. Deviam atrelar-se aos canhões para roubá-los, como os milicianos tinham feito para pô-los a salvo. A silenciosa operação também devia ser rápida: sem cornetas, sem tambores, e sem provisões que sobrecarregassem os soldados.

Ora, o plano falhou por vários lados. Os 700 canhões do povo estavam dispersos por 17 locais. Em cada um, era preciso desmantelar uma barricada de proteção. Depois, arrastá-los a pulso é mais silencioso do que puxá-los com animais de tiro – mas também é mais lento. A operação que começara às duas da madrugada, ainda evoluía penosamente quando Louise Michel deu o alarme. E os soldados sem provisões começavam a ter fome e sede.

O povo alertado começou a rodeá-los e a falar-lhes. As mulheres foram quem teve mais iniciativa e habilidade em abalar as convicções dos soldados. Ofereceram-lhes de comer e de beber e foram fazendo perguntas cada vez mais difíceis sobre a missão que estavam a cumprir.

Um dos generais, Lecomte, deu aos soldados ordem para dispararem sobre a multidão. A ordem não foi cumprida e repetiu-a uma, duas, três vezes – sempre em vão. Finalmente, o general apontou a pistola a um dos relutantes soldados e ameaçou dispará-la. Foi dominado e preso pelas suas próprias tropas.

Entregue à Guarda Nacional, Lecomte ficou detido na companhia de um outro general, Clément Thomas, reconhecido em traje civil e recordado por anteriores violências contra o povo de Paris. Horas depois, sem que a Guarda Nacional pudesse impedi-lo, fuzilou-os um grupo de insurrectos.

Do lado dos golpistas, foram as duas únicas vítimas da jornada. Em toda a cidade, só se combateu verdadeiramente na Praça Pigalle, onde a Guarda Nacional prevaleceu sobre o Exército ao fim de meia hora.
Um governo em fuga e um povo demasiado sereno
Thiers, ao perceber o fracasso, temeu pela sua sorte. Ao ver a milícia encaminhar-se para o palácio presidencial, escapou-se com os outros ministros pela porta dos fundos. O Exército tinha entrado em Paris pela calada da noite, como um ladrão a iniciar um assalto; o Governo fugia precipitadamente, como um ladrão apanhado em flagrante.

Foi refugiar-se em Versalhes, onde já se encontrava a Assembleia Nacional cheia de monárquicos eleitos na província. Aí se pôs a preparar a guerra civil em concertação com o chanceler alemão Otto von Bismarck - o inimigo da véspera.

Senhora da situação sem ter feito planos para isso, a Guarda Nacional tinha à sua frente um dilema: perseguir até Versalhes a desbaratada tropa golpista, dissolvendo o Governo de Thiers; ou então organizar eleições para entregar o poder a um governo de Paris legitimado pelo voto.

Várias vozes se levantaram a pedir a ofensiva contra Versalhes. Uma das mais decididas foi a de Louise Michel. Mas a maioria optou por realizar as eleições e assim se fez, uma semana depois.

A eleição da Comuna em 26 de março, numa capital colocada entre os fogos de Versalhes e de Berlim, obedeceu mesmo assim a vários exigentes formalismos da democracia de então – exceptuando a participação das mulheres, que permaneciam excluídas do direito de voto.

A Comuna ficou constituída por 92 membros, com uma média de idades de 37 anos, incluindo 21 de direita, eleitos nos bairros mais abastados. Estes 21 renunciaram ao mandato em abril, quando começaram a pressentir a disposição sanguinária dos versalheses e quiseram precaver-se tomando distâncias. Mas ninguém os molestou por romperem com a Comuna. Até 21 de maio, quando entraram em Paris as tropas versalhesas, não houve quaisquer violências contra a direita.
Esplendor e agonia: os 72 dias da Comuna

Entretanto, a Guarda Nacional desperdiçara a oportunidade de ofensiva sobre Versalhes, mas das eleições não saíra um governo com sólida autoridade para decidir. Muitas das medidas que tomou a Comuna foram-lhe impostas pelas circunstâncias e marcadas pela improvisação. 

Logo no dia 2 de abril a notícia de as tropas versalhesas terem abatido 30 prisioneiros federados causou indignação geral. Sobre a mesa ficou novamente a ideia de ofensiva contra Versalhes que fora rejeitada duas semanas antes. Mas a ofensiva, agora organizada à pressa, já foi encontrar as tropas de Thiers parcialmente recompostas da derrota. Saldou-se por isso num fracasso e custou pesadas baixas à Guarda Nacional.

Data de então o plano de Louise Michel, de ir a Versalhes e executar ela própria um atentado contra Thiers, que vingasse os prisioneiros abatidos por ordem deste.

Alguns dos seus correligionários blanquistas dissuadiram-na do plano, mas o trabalho político mais construtivo que era suposto realizar tropeçava todos os dias em novas dificuldades. Os 72 dias que durou a revolução de Paris estão marcados por uma dualidade de poderes entre a Comuna e o Comité Central da Guarda Nacional, com a consequente incapacidade para tomar decisões.

Sob o impacto da catástrofe, Louise Michel foi-se decepcionando da organização blanquista e acabaria finalmente por virar-se para o anarquismo. No dia-a-dia da Comuna, ela foi o símbolo mais conhecido de uma inédita participação política das mulheres.


Tal como na revolução de 1789-1794, havia uma impressionante componente feminina nos momentos decisivos da luta popular.  Mas, dessa outra revolução, quase só tinham ficado para a posteridade os nomes de mulheres burguesas ou aristocráticas, como anfitriãs de notáveis salões literários, ao passo que as protagonistas da luta de rua permaneceram quase sempre anónimas e caíram depois no esquecimento.

No caso da Comuna, o anonimato começou a romper-se, tanto pelo lado da reflexão política e da consistência organizativa encarnado numa outra heroína, Elizaveta Dimitrieff, como pelo lado activista e agitador personificado especialmente em Louise Michel.

Mas nenhuma das heroínas podia compensar os défices estruturais que subjaziam à Comuna. Além de perder o momento certo para um golpe cirúrgico contra Versalhes, a Comuna enredou-se em negociações com o Banco de França, que tinha mesmo à mão de expropriar.

Sabendo que nos cofres do banco havia dois mil milhões de francos-ouro, a Comuna apenas lhe pediu créditos modestos para financiar o abastecimento da cidade. Obteve-os - e ao mesmo tempo assistiu de braços cruzados a serem concedidos créditos muito mais generosos ao Governo de Versalhes.
Thiers e Bismarck, unidos para massacrar a Comuna
Versalhes não contava apenas com os créditos que o banco central lhe enviava desde Paris, mas também com os 500 milhões de francos que Bismarck, despudoradamente, em 12 de maio anunciava conceder ao seu protegido francês Adolphe Thiers. Além desse crédito, o chanceler alemão anunciava também a libertação de prisioneiros de guerra para colocá-los à disposição do Exército em vésperas do ataque a Paris.



O ataque iria começar no dia 21 de maio, com 130.000 tropas frescas e equipadas, contra uma Guarda Nacional agora reduzida a 30.000 milicianos, esgotados e famintos. Ao ter as primeiras notícias da entrada em Paris, Thiers proclamou a vitória e anunciou o fim da guerra civil. Mas, inesperadamente, a batalha pela cidade ia durar uma semana inteira.

Nessa “semana sangrenta”, Louise Michel passa das tarefas de enfermeira para as de combatente, em diversas batalhas e em especial nas últimas, no cemitério de Montmartre e na barricada de Clignancourt, onde ganha a admiração de todos pela sua coragem. Finalmente acabará por render-se às tropas versalhesas, para obter a libertação da sua mãe, que estas tinham tomado como refém.

Em parte devido ao fanatismo do chefe de segurança da Comuna Raoul Rigault, cometeu-se nessa fase a crueldade inútil e absurda de fuzilar 62 reféns, incluindo o arcebispo Darbois. Mas, do lado versalhês, foram abatidos arbitrariamente prisioneiros milicianos e civis em número incomparavelmente superior.

A estimativa das mortes causadas pela tropa versalhesa oscila entre as 17.000 e as 30.000. Só o tempo quente, a rápida decomposição dos cadáveres e o receio de causar uma epidemia de peste levaram finalmente os vencedores a porem termo à orgia de sangue.
Epílogo: Louise Michel no tribunal, no degredo, no regresso
Prosseguiram contudo os julgamentos sumários, com numerosas sentenças capitais, entre elas a de Théophile Ferré, executado com o antigo ministro da Guerra da Comuna, Louis Rossel. A Ferré, amigo próximo e, segundo se crê, o grande amor de Louise Michel, dedicou ela um poema que lhe enviou antes de ser executado, com o título algo premonitório "Cravos Vermelhos", num tempo em que ainda não se suspeitava da conotação revolucionária que esta flor havia de adquirir.

Em 28 de junho, Louise Michel foi finalmente julgada em Conselho de Guerra e desafiou os juízes a condenarem-na à morte, prometendo que, caso contrário, iria combatê-los até ao seu último sopro de vida. Atirou-lhes à cara na altura algumas frases célebres: “Se não sois uns cobardes, matai-me!”. Os juízes não se atreveram a aceitar o desafio e Louise Michel cumpriu a promessa.

Condenaram-na ao degredo e fizeram deportá-la para a Nova Caledónia. Enquanto esteve presa, Louise Michel recusou quaisquer privilégios que teria o seu regime prisional por ser mulher. Nessa fase, continuou a receber correspondência do futuro presidente francês Clemenceau, que a conhecera na Comuna e admirava a sua coragem, e também do seu velho amigo Victor Hugo, que a homenageou com um poema famoso.

Ao ser libertada, mas mantida no degredo, imediatamente aprendeu uma das línguas indígenas e começou a apoiar as aspirações dos povos locais contra o colonialismo. Em 1878, Louise Michel apoiou mesmo uma revolta do povo canaca, contrariando a atitude de alguns dos seus companheiros de degredo.

Amnistiada finalmente, regressou em 1880 a França, onde foi recebida por uma multidão entusiástica. Nos 25 anos que decorrem entre o regresso e a sua morte, manteve uma incansável militância revolucionária, sempre vigiada pela polícia, várias vezes presa, várias vezes julgada, várias vezes respondendo vigorosamente às acusações, e várias vezes libertada sem cumprir pena.
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