Jogos Olímpicos, a política a correr ao lado do desporto

por Ana Sofia Rodrigues, Cristina Santos - RTP
Numa exposição em Paris, o antigo atleta Tommie Smith levanta o seu punho em frente da fotografia tirada por Neil Leifer quando, com o atleta John Carlos, ambos levantam o punho em protesto com política racial dos EUA, em 1968 Julien de Rosa - AFP

"Nenhum tipo de manifestação ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em quaisquer locais olímpicos, locais ou outras áreas", declara a regra 50 da Carta Olímpica - oficializada desde pelo menos 1975.

A História mostra que nem sempre foi assim. Estes são dez momentos políticos dos Jogos Olímpicos da era moderna.
1906 – “Erin go brath” (Irlanda para sempre)

Peter O'Connor é o responsável por um dos primeiros e mais famosos atos de protesto político nos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Aconteceu em 1906, em Atenas, numa edição extraordinária dos Jogos Olímpicos que teve como pretexto de comemorar o 10.º aniversário do recomeço dos jogos em 1896.

Já lá vamos. Antes apresentamos o homem que nasceu na Irlanda há mais de 150 anos, sendo o terceiro de 11 filhos. O salto em comprimento, sobretudo o salto em comprimento, fazia parte dele e ele fazia proezas nas distâncias que alcançava. Um exemplo é o recorde mundial que Peter O’Connor estabeleceu e que permaneceu intocável durante 20 anos e foi o recorde irlandês durante 89 anos.

O’Connor não participou das Olimpíadas de Paris em 1900 porque, sendo irlandês, não queria competir pela equipa britânica, falhou as Olimpíadas de St. Louis em 1904 porque teve de fugir para se casar com Margaret Halley, filha de um rico proprietário de terras.

Em 1906, em Atenas, nos Olímpicos Intercalares, Peter O’Connor teve a oportunidade que procurava. Ou parte dela, pois o atleta queria representar a Irlanda, mas não pôde. As regras só permitiam que atletas indicados por um Comité Olímpico competissem. Como a Irlanda não tinha um comité na altura, o Conselho Olímpico Britânico inscreveu O’Connor como atleta britânico. 


Foto: National Archives

Ele ganhou o ouro no triplo salto e a medalha de prata no salto em comprimento, tinha 34 anos. Numa das cerimónias de entrega de medalhas, fez aquele que é tido como o primeiro protesto político nos Jogos Olímpicos: escalou um mastro de seis metros no estádio, para acenar uma bandeira com as palavras “Erin Go Bragh” (Irlanda para sempre).
Guerras anulam jogos e os vencidos ficam de fora

Três Jogos Olímpicos foram cancelados devido às guerras mundiais: 1916, 1940 e 1944.

Muitos dos atletas que participaram nos jogos de 1912 foram mortos durante a guerra. Os Jogos de 1920 em Antuérpia, Bélgica, ocorreram depois da primeira guerra e na sequência da última vaga da pandemia de gripe e ficaram marcados por um sentimento de lembrar os mortos e continuar.

Foi a primeira vez que surgiram os cinco anéis interlaçados como símbolo olímpico e o juramento dos atletas.

Os países que foram derrotados durante a I Guerra (Áustria, Bulgária, Alemanha, Hungria e o Império Otomano) não foram convidados.

A Alemanha e o Japão não foram convidados a participar nos primeiros Jogos Olímpicos depois da II Guerra Mundial, que tiveram lugar em 1948, em Londres, país entre os vencedores da Guerra e ainda a recuperar das feridas do conflito. A União Soviética foi convidada, mas recusou enviar uma equipa.

A situação económica da Inglaterra no pós-guerra obrigou à realização de Jogos modestos. A maioria dos atletas estrangeiros ficou alojada em barracas da Força Aérea ou em escolas.

Estes Jogos viram acontecer a primeira deserção política. Marie Provazníková, a presidente da Federação Internacional de Ginástica da Checoslováquia, recusou-se a voltar para casa alegando falta de liberdade após a inclusão do país no bloco soviético.
1936 - Alemanha nazi
Conta a História que, quando em 1931 o Comité Olímpico Internacional decidiu que Berlim receberia as olimpíadas em 1936, Hitler ainda não tinha chegado ao poder. Algo que aconteceu em 1933 e trouxe as perseguições a judeus, ciganos, a opositores políticos até à agressão a outros países europeus. Na altura, alguns países propuseram boicotar os Jogos Olímpicos em Berlim. No entanto, em 1936 os Jogos Olímpicos de Berlim registaram um recorde: 49 países participantes

Os Estados Unidos retiraram da equipa dois atletas judeus e substituíram-nos por atletas afro-americanos. Jesse Owens foi um deles e foi também aquele que conquistou quatro medalhas de ouro: nos 100 metros, 200 metros, estafeta de 4x100 metros e salto em comprimento.

Foto: Bridgeman Images via Reuters Connect


Durante as Olimpíadas, as perseguições raciais foram parcialmente suspensas. No entanto, após o fim dos Jogos a perseguição e a morte regressaram. O chefe da aldeia olímpica suicidou-se dois dias depois do fim das olimpíadas, ele tinha origem judaica.

Os Jogos Olímpicos de Berlim ficam também marcados pela criação da estafeta da tocha olímpica, desde Olímpia, na Grécia, até Berlim. Hitler queria usá-la como instrumento de propaganda. Desde então a tocha parte sempre de Olímpia para o local dos Jogos Olímpicos.
1952 - Duas aldeias olímpicas

Pela primeira vez, a União Soviética compete em Jogos Olímpicos, na edição de 1952, em Helsínquia, no arranque da chamada Guerra Fria. São construídas duas aldeias olímpicas com uma distância de 10 quilómetros: uma para o Bloco de Leste e outra para o resto do mundo.

Os media apresentavam os Jogos como uma competição entre os países livres e os países comunistas. A União Soviética consegue 71 medalhas, e é o segundo mais medalhado, a seguir aos Estados Unidos. As medalhas passaram a ser razão de competição entre os dois blocos.

Sete anos depois do fim da II Guerra Mundial, a Alemanha pode novamente participar dos Jogos, mas apenas alemães da parte ocidental competiram.1968: Punhos cerrados

Os Jogos da Cidade do México decorreram durante um ponto de alto da contestação dos direitos civis nos Estados Unidos. Tommie Smith, acabado de estabelecer o recorde do mundo dos 200 metros, e o medalhado com bronze John Carlos, baixaram a cabeça e elevaram os punhos com luvas no pódio, numa saudação do Poder Negro e em protesto contra a política racial, enquanto tocava o hino.

Foto: AFP

O chefe do Comité Olímpico dos Estados Unidos expulsou-os da equipa e enviou-os de volta para os EUA. As carreiras de ambos os desportistas terminaram ali.
1972 - O massacre de Munique 
Aquele que é considerado o maior atentado terrorista cometido durante um evento desportivo aconteceu em 1972

À época, a Alemanha estava dividida e Munique fazia parte da então Alemanha Ocidental. Quinze dias após o início dos Jogos Olímpicos, o edifício da delegação de Israel foi invadido por oito membros da organização terrorista palestiniana Setembro Negro e 11 israelitas (atletas e treinadores) foram feitos reféns. A exigência da Setembro Negro era a libertação de 250 presos palestinianos, mas o governo israelita recusou.

Numa tentativa alemã de resgate , morreram 11 reféns, um polícia alemão e cinco palestinianos do grupo terrorista. Durante um dia não houve competições e este atentado mudou e apertou a segurança de atletas olímpicos.

O massacre foi durante anos deixado em segundo plano, mas em 2022, Frank-Walter Steinmeier, então presidente alemão, no dia do 50.º aniversário do sucedido disse ter "vergonha. Como chefe de estado deste país e em nome da República Federal da Alemanha peço perdão pela insuficiente proteção dos atletas, pela insuficiente resolução deste assunto".

Antes da cerimónia para assinalar o 50.º aniversário dos ataques, o presidente alemão já tinha tomado uma outra decisão, que a Alemanha pagasse 28 milhões de euros às famílias dos atletas israelitas assassinados.1956 - Sangue, de boicote em boicote
1956, Melbourne, Austrália. Tinham passado apenas três semanas desde que as forças soviéticas invadiram a Hungria, quando os dois países se encontraram numa prova olímpica de polo aquático. Houve troca de pontapés e murros. A dada altura do jogo, Ervin Zador saiu da piscina jorrando sangue de um murro na cara. Os desacatos continuaram fora da piscina. O árbitro terminou o jogo, mas teve de vir a polícia para que a equipa soviética não fosse linchada. A medalha de ouro foi atribuída à Hungria.


Os Jogos de Melbourne foram marcados por boicotes. A invasão da Hungria por tropas soviéticas causou a desistência da Espanha, Países Baixos e Suíça.

Mas não foram os únicos boicotes a ter lugar.

Egípcios, iraquianos e libaneses faltaram em protesto contra a intervenção anglo-francesa-israelita na questão da nacionalização do Canal do Suez.

A China, por seu lado, não participou porque o Comité Olímpico aceitou a presença em Taiwan. A República Popular da China só voltou aos Jogos de Inverno de 1980 e nos de Verão de Los Angeles de 1984.

Os boicotes continuaram a marcar agenda nos Olímpicos desde aí. Em 1976, Montreal, 22 países africanos boicotaram os Jogos em protesto contra a Nova Zelândia porque a equipa neozelandesa de râguebi fez uma digressão na África do Sul, desrespeitando o embargo desportivo aplicados devido à segregação racial do apartheid naquele país. O Comité Olímpico não tinha aceitado excluir a África do Sul.

Em 1980, Moscovo, os Jogos Olímpicos presenciaram o maior boicote de sempre. Liderados pelos Estados Unidos, 65 países não marcaram presença no evento em protesto contra a invasão soviética do Afeganistão. O protesto tinha sido solicitado pelo presidente dos EUA, Jimmy Carter. Quinze países, incluindo Portugal, Espanha, França, Grã-Bretanha, participaram, mas usaram no desfile inicial a bandeira olímpica e não a bandeira nacional, como forma de protesto. Ao todo, apenas 80 países participaram, o número mais baixo desde 1956.

Em retaliação, quatro anos depois, em Los Angeles, 1984, a União Soviética boicota os Jogos. Mais 13 países seguem os soviéticos. Entre eles, Angola, Cuba, RDA, Coreia do Norte e Polónia. A Roménia é o único país do bloco soviéticos a participar. Irão e Líbia também não participam devido a tensões políticas com o país organizador, os Estados Unidos.

Em 1988, depois de não ter conseguido ser co-organizadora dos Jogos ao lado da Coreia do Sul, a Coreia do Norte boicotou a edição em Seul. Recebeu a solidariedade de Etiópia, Cuba e Nicarágua, que decidiram também faltar.

Os boicotes foram marca política clara. Mesmo em 2022, os Estados Unidos decretaram um boicote diplomático nos Jogos Olímpicos de Pequim, contra os abusos do Governo chinês contra os direitos civis. Aliados como a Austrália e o Canadá seguem o exemplo. O Comité Olímpico mostra oposição aos boicotes e reafirma que os Jogos têm uma posição neutral em assuntos políticos.
Pós-Guerra Fria
Ao fim de 32 anos, a África do Sul é enfim autorizada a participar por ter finalmente pôr termo ao apartheid em 1992. Mas os Jogos de Barcelona, 1992, marcam o início pós-guerra fria. A Alemanha passa a competir unificada

Estónia, Letónia e Lituânia apresentam equipas próprias, mas os restantes países que pertenciam à União Soviética competem sob a designação de Equipa Unificada. Bósnia Herzegovina, Croácia e Eslovénia participam pela primeira vez. 

A Jugoslávia foi proibida de participar em jogos por equipas devido à agressão militar contra países como Bósnia e Croácia, mas os atletas individuais são autorizados a participar.
1996 - Bomba em Atlanta
Estes jogos, em 1996, marcam os 100 anos de Jogos Olímpicos da Era Moderna. Entre várias localizações em disputa, a escolha de Atlanta gerou críticas e até acusações de suborno.

Na madrugada de 27 de julho, uma bomba explodiu no Parque Olímpico do Centenário, resultando nas mortes de duas pessoas e no ferimento de outras 110. Os oficiais decidem continuar os jogos. Um americano é preso em 2003 e dois anos depois declara-se culpado pela bomba em Atlanta e outros ataques, expressando protestos contra o governo.
2016 - Equipa de refugiados

Pela primeira vez, em 2016, no Rio de Janeiro, entra em competição uma Equipa de Refugiados, reunindo dez atletas que fugiram dos seus países, como da República democrática do Congo ou Síria.

A decisão de criar esta equipa surge num momento de pico da crise migratória na Europa, em que mais de 1,3 milhões de pessoas pediram asilo.

Em Jogos Olímpicos anteriores os refugiados não eram elegíveis para competir devido à impossibilidade de representar seus respetivos Comités Olímpicos Nacionais. A 2 de março de 2016, o Comité Olímpico Internacional criou a equipa dos Atletas Olímpicos Refugiados (ROA).
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