Não fui aos cem. Não falho a final dos cem metros desde Sidney 2000, tirando Atenas, porque uma história mal parida me eliminou desses Jogos quando já estava acreditado. Em todas as outras, Pequim, Londres, Rio, bebi-os de penalti diretamente do Santo Graal dos Olímpicos.
Não, não é poesia. É literal. Os cem Olímpicos, aqui guardados na RAM da minha vida, são um festim de sons perfeitos. Eles entram na pista, o estádio explode. Rajadas de disparos, ali logo abaixo das posições de comentador, assumem o fundo da banda sonora original, uma floresta de semifusas numa pauta desregrada. Sem compasso nem compaixão pelos pulmões, há um grito coletivo tenor e outros, solos sopranos sobre a amálgama de caos berrado, que ainda consegue explodir em Fortíssimo no anúncio de cada presença na pista.
É quando eles assumem os blocos de partida que o Maestro Invisivel mostra quem manda naquilo tudo.
Sem um sinal de batuta, em 2 ou 3 segundos, o Mundo cala-se. Como que por milagre, impossível de justificar, todos os cérebros cortam às gargantas, em sincronia, a autorização para gritar. Falar sequer. Ao que parece, respirar.
É essa bomba de neutrões acústica que me faz pele de galinha cada vez que a vivo na memória. Zero. 120 mil de gente e zero decibéis.
Uma pausa de semibreve. Duas. Três.
Estoura o tiro e 3 ecos. Ou melhor... o terceiro é engolido pelo tsunami sonoro sem ter tempo de perceber do que morreu.
Ao pé daquela muralha de ar, simultaneamente gritado por tantos milhares de almas que se tinham contido, a onda da Nazaré é uma menina. Se um dia uma multidão sincronizasse um "Basta!" como se acerta durante aqueles 10 segundos num repente, a Sociedade já era nobre e justa.
No entanto confesso: Nunca consegui abrir pio nos cem. Os pulmões encolhem-se-me, vazios. Os 100 são uma prova anaeróbica e eu vivo-os em apneia. Sei que também não pestanejo, porque fico sempre de olhos secos no final. O mar chega-lhes depois.
Há uma tempestade elétrica de flashes, da visão periférica à frontal, que pintam tudo o que os meus olhos esbugalhados alcançam.
E eles, peito em arco. Como se mãos lhes empurrassem os rins. Passadas de avestruz: TRUZ! TRUZ! TRUZ!
No meu cérebro de galinha, a imagem que guardo é do Bolt.
TRUZ! TRUZ! TRUZ!
Pista 3. Quase nem a usava, aquele relâmpago de um raio! Voou como se fosse leve. Estoirou um recorde do Mundo a travar e a posar de lado para a bendita camera!! A travar!! 9.68!!!
Como se um humano tivesse autoridade para mandar às malvas a velocidade da luz!
Olho para o Jorge Lopes, narração pausada mas emocional, voz embargada, os olhos firmes no Monstro como que isolados no espaço entre ambos.
Ao meu olhar, responde com um sorriso de canto de boca.
Senti-me importante por ter algo só meu naquela alquimia.
É ali, àquele momento, que viajo às vezes para matar saudades dele.
Em Londres foi um filme ir aos cem. Por não estar lá o Jorge, porque queria ir lá por nós.
Tinha ido à natação, acho. Estava a meia cidade de distância e limitado por transportes que pareciam não chegar para a encomenda. Desisti antes da partida. Mas aquilo moía-me. "... e se dava? És capaz de desistir da sorte? Vai, caramba! Tenta!"
Recuperei a capacidade de decidir quando vi o autocarro certo ao longe.
Sprintei. Cacei-o.
Fatam 5 minutos para o estádio, faltam 15 para os cem. "VAI!!".
Corri muito, mochila pesada.
Já tinha tudo ensacado para nada me travar no detetor de metais.
"Sobe! Corre!!!"
Arfei! Arfei! Arfei! Estou na porta de acesso. 2 minutos. Dois!! Lembro-me bem dos olhares incomodados dos vizinhos da posição de comentador ao lado, aziados com o meu timing sul europeu. Mas CHEGUEI!! OUVI TUDO!
A afinação da orquestra, o silêncio abrupto, o tiro e os ecos, a explosão do Mundo com os 8 a fugir pela vida aos pumas imaginários que se soltaram no bloco, Bolt na pista 7.
TRUZ! TRUZ! TRUZ!
Desta vez o gatilho do Bolt encravou. Parecia, mal comparado, o meu antes da prova. Mas o Relâmpago acendeu-lhe a mecha, como a mim. Mal comparado. Ele foi a jogo de alma inteira.
TRUZ! TRUZ! TRUZ!
Meia pista. E é aí que gasta tudo o que guardou desde Pequim. 74, 75 metros!!
E o "damonho", diria a minha avó, ganha a dianteira, atiça o óxido nitoso que lhe habita um canto do tórax, já tem um corpo de vantagem, quase mais meio e... INACREDITÁVEL!!! É dele! DELE!!
9,63. Ainda é a segunda melhor marca da história, atrás dos 9,58 que um tal de.. Bolt conseguiu depois!
Despedi-me do Raio no Engenhão do Rio.
Com emoção, vi-o ganhar, já no meio azedo daquele ninho de víboras amarelas que quer disputar-lhe a sucessão.
Mas é a imagem do Ninho de Pássaro de Pequim que guardo na minha caixinha junto ao coração.
Desta vez, repito, não fui mesmo aos cem.
Os cem sem orquestra são um mero centímetro. Sem Bolt, os meus não têm chispa, cheiro a querosene, são como aquele bailado do Lago dos Cisnes que vi uma vez em Seteais, em que ousaram substituir a orquestra por um CD.
Quero guardar em mim tudo intacto e inteiro, não sei se faço mais Jogos, não sei... se num estádio vazio, sinto o Jorge ao meu lado como agora, que lhe digo enquanto escrevo e vos conto: tenho saudades tuas, Raio!