A Geórgia foi avisada pelos EUA para não se tornar um adversário do Ocidente ao alinhar com Moscovo, uma vez que o seu Parlamento desafiou os protestos de rua em massa para aprovar uma lei "inspirada no Kremlin".
Em comentários que pareciam indicar uma convicção nos EUA de que o Governo georgiano estava mais uma vez a alinhar com a Rússia, O'Brien sugeriu que o financiamento poderia ser retirado em breve.
Os Estados Unidos gastaram milhares de milhões de dólares na reconstrução da Geórgia após a queda da União Soviética e estão previstos centenas de milhões de dólares adicionais para a economia e as Forças Armadas do país.
As declarações de O'Brien surgem depois da aprovação de um controverso projeto de lei sobre “agentes estrangeiros” - foi apoiado por 84 deputados contra 30, desafiando as manifestações que levaram centenas de milhares de pessoas às ruas de Tbilissi.
No exterior do Parlamento, a polícia de choque usou gás lacrimogéneo numa tentativa de dispersar um dos maiores protestos registados até à data, enquanto no interior os deputados discutiam sobre o futuro do país.
Os protestos pacíficos prosseguiram durante a noite, com multidões de manifestantes a marcharem até à Praça dos Heróis, a cerca de dois quilómetros do Parlamento, o que provocou bloqueios nas artérias próximas.
Nos termos da nova legislação, os meios de comunicação social ou os grupos da sociedade civil da Geórgia que recebam mais de 20 por cento do seu financiamento do estrangeiro terão de se registar como “organizações que servem os interesses de uma potência estrangeira”.
O Departamento de Estado norte-americano classificou o projeto de lei como “inspirado no Kremlin”, uma vez que tem ecos da legislação introduzida nos estatutos russos em 2012 por Vladimir Putin, que muitas pessoas dizem ter sido utilizada para silenciar os críticos.
O'Brien afirmou que a relação estratégica com a Geórgia foi posta em causa pela nova lei e pela intensificação da retórica antiocidental nos últimos dias.
O primeiro-ministro da Geórgia, Irakli Kobakhidze, afirmou na segunda-feira que o país estava a ser vítima de uma “guerra global” liderada pelos Estados Unidos, numa linguagem que faz eco da utilizada pelo Kremlin em relação à ajuda do Ocidente à Ucrânia.
O texto é quase idêntico àquele que o partido no Governo foi pressionado a retirar no ano passado, após protestos semelhantes aos que têm ocorrido nos últimos dias em Tbilissi. Esta versão foi aprovada na terceira e última leitura no Parlamento.
O secretário de Estado adjunto descreveu os comentários como “irreais e um completo mal-entendido sobre a relação da comunidade internacional com a Geórgia”.
O responsável norte-americano criticou também o oligarca bilionário Bidzina Ivanishvili, presidente honorário do partido no poder, o Sonho Georgiano, alegadamente responsável pela política do Governo.
O'Brien tinha pedido uma reunião com Ivanishvili, mas esta foi rejeitada com base no facto de os EUA terem congelado dois mil milhões de dólares através de sanções “de facto”, afirmou o primeiro-ministro georgiano aos jornalistas na segunda-feira.
O'Brien afirmou que não existem sanções contra Ivanishvili “nesta altura” e que “o facto de uma pessoa estar tão mal informada é chocante e dececionante”.O que levou os georgianos à rua?
Milhares de georgianos têm-se manifestado desde 17 de abril, data em que o Parlamento do país aprovou a primeira leitura do projeto de lei.
Há várias semanas que a Geórgia é abalada por manifestações contra um projeto de lei que obriga os grupos não governamentais e os meios de comunicação social a registarem-se como “organizações que servem os interesses de uma potência estrangeira” se mais de 20 por cento do seu financiamento vier do estrangeiro.
Os manifestantes, na sua maioria jovens, afirmam que a lei irá sabotar as esperanças do país do Cáucaso de aderir à União Europeia e sufocar a sociedade civil. A lei foi descrita como “a lei russa” pelos críticos, uma vez que se assemelha à legislação repressiva utilizada pelo Kremlin.
A Geórgia, com uma população de 3,7 milhões de habitantes, juntou-se aos países que tentam aderir à União Europeia desde que lhe foi concedido o estatuto de candidato oficial em dezembro passado.
O presidente do Parlamento Europeu considera que, “se a lei avançar sem estar em conformidade com as normas da União Europeia e com este tipo de retórica e aspersão contra os EUA e outros, a relação está em risco”.
Durante a noite de domingo e a madrugada de segunda-feira, os manifestantes estiveram envolvidos numa última manifestação contra o projeto de lei antes da votação final no Parlamento, na terça-feira.
A polícia de choque, armada com canhões de água e gás lacrimogéneo, foi acusada de agredir os manifestantes que faziam piquetes à porta do Parlamento.
A Associação dos Jovens Advogados da Geórgia declarou que “o protesto pacífico é um mecanismo de promoção dos processos democráticos nas mãos dos cidadãos e qualquer tentativa de o suprimir é um ato anticonstitucional”.
A crise política surge numa altura em que muitos georgianos receiam que o país se esteja a afastar do Ocidente. “Todos compreenderam claramente que o objetivo da adoção da lei russa não é a famosa transparência, mas a mudança do rumo externo do país e a conclusão da russificação”, declarou a Transparência Internacional da Geórgia no final de abril.
O Governo português também lamentou a aprovação da controversa lei na Geórgia, considerando que afasta as aspirações dos georgianos de aderir aos valores da União Europeia. Em nota divulgada no X, o Ministério dos Negócios Estrangeiros afirma que “Portugal lamenta profundamente a adoção pelo parlamento da Geórgia da lei sobre a transparência da influência estrangeira”.A repressão contra os manifestantes já suscitou críticas por parte de Bruxelas. “Condeno veementemente a violência contra os manifestantes na Geórgia que se manifestavam pacificamente contra a lei sobre a influência estrangeira”, afirmou o chefe da política externa da União Europeia, Josep Borrell, no dia 1 de maio.
“A Geórgia é um país candidato à adesão à União Europeia. Apelo às suas autoridades para que garantam o direito de reunião pacífica. O uso da força para as reprimir é inaceitável”, acrescentou Josep Borrell.
Já David McAllister, presidente da Comissão dos Assuntos Externos do Parlamento Europeu, considera que a “repressão é brutal” e sublinhou “a direção muito preocupante que o governo georgiano tomou em relação às liberdades democráticas”.
“Esta lei tem o potencial de fazer descarrilar seriamente o caminho da Geórgia para a adesão à União Europeia”, frisou.
O que diz o Governo?
O Governo, que está no poder há 12 anos, afirma ser pró-União Europeia, mas tem evitado impor sanções à Rússia por causa da guerra na Ucrânia e os críticos afirmam que tem procurado reforçar os laços com o Kremlin.
O fundador do partido governamental Georgian Dream, Bidzina Ivanishvili, defendeu o projeto de lei e atacou o Ocidente. Num discurso recente, repleto de teorias da conspiração, o bilionário atacou um “partido de guerra global” e sugeriu que a oposição pró-ocidental do país era controlada por serviços secretos estrangeiros.
Os comentários alimentaram ainda mais os receios entre os críticos do governo de que o partido governamental Sonho Georgiano, que está no poder desde 2012, possa reprimir a dissidência antes das eleições parlamentares do final do ano.
A lei será enviada à presidente da Geórgia, Salome Zourabichvili, uma europeísta que está cada vez mais em desacordo com o partido do Governo e que prometeu devolver o documento, embora o Georgian Dream tenha maioria suficiente para anular o veto.
Salome Zourabichvili - cujo papel é essencialmente cerimonial - criticou o que disse ser um “uso da força totalmente injustificado, não provocado e desproporcionado, em curso em Tbilissi contra manifestantes pacíficos”.
“A responsabilidade recai inteiramente sobre o governo. O direito de protesto pacífico é negado ao povo georgiano", afirmou, acrescentando a hashtag #notoRussianlaw.