Se todo o poder estivesse na ponta das espingardas, e se todas as revoluções se resolvessem por mera contagem das ditas, a ditadura teria sobrevivido facilmente em 25 de Abril de 1974. Mas as espingardas contadas só valem alguma coisa se houver soldados dispostos a usá-las. O moral dos defensores do regime era o seu calcanhar de Aquiles.
Era o contrário que sucedia. As tropas que acompanharam Maia a partir de Santarém eram em larga medida constituídas por instruendos, que punham esperanças na revolução em parte porque a vitória os pouparia a embarcarem para a guerra.
O seu armamento tinha tantas lacunas como a sua preparação militar. Maia conta que foi preciso, nas semanas anteriores ao 25 de Abril, ir pondo de lado munições que se registava, falsamente, como tendo sido disparadas nos treinos. Declarava-se ter disparado 60, mas só se tinha disparado 45 - por exemplo. "Ficávamos com 15 que legalmente não existiam", diz Maia na entrevista. E, mesmo assim, as autometralhadoras da Escola Prática de Cavalaira fizeram-se à estrada com uma dramática escassez de munições.
Quando se viram confrontadas com o esquadrão comandado pelo brigadeiro Junqueira dos Reis, por volta das 8h30, na Rua do Arsenal, não tinham qualquer hipótese no caso de se chegar a vias de facto. Também por esse motivo, Salgueiro Maia não tinha outra saída se não a de tentar parlamentar.
Da inferioridade militar da sua coluna resultou a primeira grande vitória do dia. Quando o brigadeiro mandou abrir fogo sobre Maia, viu-se confrontado com sucessivas recusas e, finalmente, com a deserção de uma parte das suas tropas.
O mesmo problema se colocou alguns minutos depois na artéria paralela à do Arsenal, a Av. Ribeira das Naus. Os carros da EPC, tendo pela frente o esquadrão de viaturas comandado pelo major Pato Anselmo, voltavam a estar na mó de baixo. O momento era de grande tensão. Mais uma vez Maia decidiu tentar a via das conversações.
Desta vez o comandante da coluna da EPC não se expôs a si próprio e pediu ao ex-alferes Brito e Cunha, seu conhecido dos tempos da Guiné, que fosse ao encontro do comandante adversário. Brito e Cunha fora mobilizado para a acção pelo coronel Correia de Campos, outro militar que combatera na Guiné. Há alguns anos, aceitou ser entrevistado pela RTP Memória e deixou-nos as suas recordações desse momento - e do dia todo.
Antes de partir ao encontro do esquadrão inimigo, Brito e Cunha recebeu de Maia uma pistola (na foto acima), para o caso de ser necessária. Partiu, chegou ao outro lado e entrou em diálogo com Pato Anselmo. Deu-lhe as alternativas de aderir ao movimento ou de se entregar como prisioneiro. Se não aceitasse nenhuma das duas, disse Brito e Cunha, teria de usar a pistola. Pato Anselmo optou por entregar-se como prisioneiro (na foto). Antes de deixar o comando do esquadrão, deu ainda satisfação ao pedido de Brito e Cunha, de mandar voltar para o Tejo as armas dos seus carros, em sinal de que não faria fogo.
No seu depoimento, Brito e Cunha contribui para esclarecer vários pontos importantes sobre a jornada de 25 de Abril, e nomeadamente um que agora nos importa: é também do brigadeiro Junqueira dos Reis a voz que se ouve numa comunicação rádio, entre uma coluna de blindados e o Estado Maior.
O brigadeiro retirara depois da deserção duma parte das suas tropas para o lado da revolução e voltara mais tarde, com uma coluna reorganizada, provavelmente com o objectivo de chegar ao Largo do Carmo e socorrer a GNR que aí albergava o chefe do Governo, Marcelo Caetano. Ao chegar ao Largo Camões, Junqueira dos Reis vê-se rodeado - e aclamado - pelo povo.
Mas há um mal-entendido: o povo, diz o brigadeiro ao Estado Maior, aclama-o por pensar que ele está do lado da revolução. Mandar disparar sobre aquele povo era uma receita quase infalível para provocar novas deserções, numa escala incontrolável. Claramente, não é o escrúpulo de derramar sangue, mas o receio da revolta dos seus próprios soldados que então inibe o brigadeiro. Por isso sugere ao Estado Maior o envio de "meios aéreos".