Há um ano, quando Marcelo Rebelo de Sousa vislumbrava um ano de acalmia social, política e económica para os últimos meses de mandato,
estaria longe de esperar o que se seguiria nas semanas seguintes. Apenas dois meses depois após estas declarações, o Presidente da República declarava o primeiro
estado de emergência da era democrática, situação que se repetiria até
ao final do ano, perante a evolução da pandemia de Covid-19.
Num balanço do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, contamos com o contributo de três comentadores da RTP: Felisbela Lopes, professora e investigadora da Universidade do Minho, Pedro Adão e Silva, professor no ISCTE-IUL e investigador, e ainda Pedro Norton, CEO da Finesge e administrador não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.
Presidente “soube ser mais povo”
Em
declarações à RTP, Pedro Adão e Silva destaca a ”singularidade” do
cargo de Presidente da República: “É um cargo muito marcado pela
personalidade que ocupa esse lugar. Nenhum outro cargo na política
portuguesa é tão marcado pela personalidade de quem o desempenha, e isso
prende-se com a própria eleição, absolutamente individual. De facto,
acho que a marca da presidência de Marcelo Rebelo de Sousa é a própria
personalidade do Presidente”.
O professor universitário e comentador
complementa: “Há um lado de proximidade, de alguma intimidade na
relação dos portugueses com a Presidência, como se todos conhecêssemos
Marcelo Rebelo de Sousa. Isso não é independente da trajetória anterior
do Presidente, alguém que conversava com os portugueses de forma
sistemática há anos, através da televisão. Ele tinha uma presença
íntima, próxima, que é o que acontece a quem está muito na televisão,
como se fizesse parte da mobília da casa. E isso não é repetível”.
As
comparações entre o atual Presidente da República e as "Presidências Abertas" de Mário Soares são frequentes, mas
Felisbela Lopes considera que a proximidade entre os portugueses e
Marcelo Rebelo de Sousa é muito maior, notando-se por exemplo um maior à vontade
"naquilo a que a população se permite fazer com o Presidente”, com a
informalidade a imperar em grande parte dos contactos.
“Curiosamente,
Marcelo Rebelo de Sousa, assim como Mário Soares, sai das elites de
Lisboa, mas Marcelo Rebelo de Sousa soube ser mais povo do que Mário
Soares”, argumenta a investigadora.
Pedro Norton considera que
Marcelo Rebelo de Sousa “conseguiu reconciliar os portugueses com a
Presidência da República, depois de dois mandatos em que Cavaco [Silva]
exerceu o cargo num estilo muito mais frio, muito mais distante”.
“Julgo
que conseguiu humanizar a instituição Presidência da República e que os
portugueses fazem uma avaliação largamente positiva do seu mandato”,
acrescenta o comentador de política da RTP.
E se muitos alertam para
os perigos de banalização do cargo com o excesso de declarações e de
participação na vida política e do país, Pedro Adão e Silva considera
que Marcelo consegue manter “alguma gravitas” e a “dignidade
institucional do cargo”.
“Em alguns casos, Marcelo de facto exagerou
na proximidade, no modo como se relaciona com a população. Esse é o
risco. Se houver um segundo mandato com Marcelo na presidência, ele terá
de se reinventar e reinventar a proximidade”, aponta Felisbela Lopes.
Pedro Norton assume, no entanto, uma postura um pouco mais crítica em relação à “omnipresença mediática do Presidente”.
“Cavaco
[Silva] falava pouco mas falava quase sempre com gravidade. Marcelo
pronuncia-se sobre praticamente tudo. Acho que isso tem alguns
problemas: o primeiro é que isso vai provocando algum desgaste, que, é
verdade, ainda não se sente em sondagens. Mas o segundo é que isso torna
muito mais significativos os silêncios do Presidente, mais do que as
declarações. Isso pode não ser mau, quando o Presidente quer gerir
deliberadamente os seus silêncios para os tornar ruidosos, mas o que
acaba por acontecer é que o Presidente acabou por perder o poder de
impedir que qualquer silêncio seja ruidoso”, argumenta o comentador de
política da RTP.
Proximidade na relação com o Governo: vantagens e problemas
Para
lá dos afetos, Marcelo Rebelo de Sousa foi também um Presidente próximo
do Governo. “Acho que o que é transversal ao mandato de Marcelo Rebelo
de Sousa é ele ter sido ao mesmo tempo um promotor e um garante da
estabilidade institucional”, explica Pedro Adão e Silva, no que designa de
“bloco central de palácios” entre São Bento e Belém.
“Com um Governo
que estava no Parlamento, ancorado num entendimento à esquerda, foi
muito importante essa ancoragem coexistir com uma outra coligação
complementar entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém, que
reequilibrou o sistema ao centro. Marcelo foi sempre um fator de
estabilização, de promoção da estabilidade, porque complementou um
compromisso político atípico na história da democracia portuguesa”,
refere.
Para Felisbela Lopes, investigadora de Ciências da
Comunicação e comentadora da atualidade na RTP, diz que se trata de um
“Dupond-Dupont” entre Belém e São Bento: “Desde o início houve sempre
uma cumplicidade que é muito visível através dos media. E também é uma
cumplicidade interessada de ambas as partes: tínhamos um Governo na
primeira legislatura, com apoio parlamentar à esquerda. A esquerda
sustentava o Governo e a Presidência da República servia a António Costa
para falar ao centro e mais à direita. António Costa percebeu logo que,
através de Belém, poderia ter aqui uma espécie de quadratura do
círculo. Na Assembleia da República encontrava um modo de falar para a
esquerda, na Presidência da República encontrava uma forma de falar ao
centro e à direita”.
Algo que serviu também Marcelo Rebelo de Sousa,
explica a investigadora: “O Presidente também podia falar mais à
esquerda através do Governo. Vindo da direita, fazia também o
posicionamento ao nível ideológico,
beneficiando assim de ter algo que o modelo presidencial português não
permite: uma ação efetiva nas políticas governamentais. Não raras vezes
tivemos um Presidente que ocupava terrenos que eram do Executivo, algo
que entre um Presidente da República e um outro Governo provocaria uma
colisão frontal”.
No artigo “Quando um Presidente da República vive no limite do
semipresidencialismo”, de Felisbela Lopes e Paula Espírito Santo, salienta-se que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou um novo estilo de
liderança que motivou “uma redefinição dos eixos de centralidade
noticiosa, associados a um elemento novo de rápida reconversão de polos
de atenção e a um escrutínio mais célere, imediato e atento por parte da
opinião pública em relação a assuntos de interesse nacional”.
“O Presidente da República amplifica a sua estratégia de construção de um modelo e estilo de liderança próprios de proximidade entre si e as comunidades, porque conta com o apoio permanente dos media”, concluem as investigadoras.
“O Presidente da República amplifica a sua estratégia de construção de um modelo e estilo de liderança próprios de proximidade entre si e as comunidades, porque conta com o apoio permanente dos media”, concluem as investigadoras.
“Houve uma espécie de coligação complementar à
coligação parlamentar. Em alguns momentos até foi além da cooperação
institucional: por vezes foi o Presidente a enunciar medidas que o
Governo tomou ou até densificar posições que o Governo assumiu. Mas
também funcionou como uma espécie de válvula de escape do sistema, um
lugar que institucionaliza o protesto e o conflito, e que é capaz de
acomodar esse protesto, ao receber corporações, grupos, associações que
estão em protesto, em crítica ao Governo”, complementa Pedro Adão e
Silva.
“Quando o sistema está sob pressão, é importante haver esses
momentos de alguma oxigenação do sistema, ouvindo e escutando o
protesto. Isso é um enorme contraste com Cavaco Silva”, acrescenta o
sociólogo.
Apesar da relação institucional “saudável” entre ambos,
Pedro Norton considera que, de forma geral, a aproximação de Belém a São
Bento também teve pontos negativos e pode mesmo ser prejudicial para o
sistema político.
“Diria que houve genericamente uma relação muito
próxima e de suporte a uma solução governativa especial de um Governo
minoritário. Isso obviamente tem um lado positivo, que foi o de
assegurar a estabilidade política ao longo de toda a legislatura
anterior. Independentemente das nossas preferências políticas, eu sou
dos que acham que a estabilidade é um bem em si mesmo”, explica o
comentador da RTP, considerando, no entanto, que “muitas vezes Marcelo
deixou que se criasse a perceção que não sabia guardar as distâncias
devidas em relação ao Governo”.
Ao aproximar-se do Governo, Marcelo
“deixou que se criasse um problema que é real, porque abriu um espaço à
sua direita, ao deixar-se transformar também no candidato do
primeiro-ministro”, complementa Pedro Norton, considerando que “uma
proximidade tão óbvia entre os titulares dos dois cargos mais
importantes do país abre um espaço aos críticos do sistema que, com
alguma razão, apontam a inexistência de reais alternativas políticas e
que sublinha no fundo que há aqui uma crise de representação”.
Pedro
Norton considera mesmo que a primeira consequência desta proximidade
“percebida como excessiva” pode surgir com estas eleições presidenciais de 2021.
“Estou a pensar no resultado que, por exemplo, André Ventura pode obter
como único candidato com expressão e peso à direita de Marcelo Rebelo de
Sousa. Esse será um primeiro teste”, antecipa.
Os momentos que marcam o mandato
Questionados
sobre os principais momentos que marcaram os últimos cinco anos, os
três comentadores mencionam os incêndios de 2017, o caso de Tancos, a
resolução dos problemas no sistema financeiro no início do mandato e a
pandemia de Covid-19 como os eventos mais marcantes, entre outros. Em
todos, os traços distintivos de Marcelo foram evidenciados. Alguns
destes momentos foram mesmo mencionados no discurso de recandidatura, em
dezembro de 2020.
Os incêndios de 2017 marcaram um
momento “particularmente singular” na presidência de Marcelo Rebelo de
Sousa, com uma “atuação pronta e estendida no tempo” por parte do
Presidente da República, refere Felisbela Lopes.
Pedro Norton destaca, em declarações à RTP, os incêndios de 2017 e o roubo de armas em Tancos como dois momentos marcantes da presidência. “Pedrógão como momento marcante, muito definidor da forma como Marcelo Rebelo de Sousa exerceu o seu mandato, estabelecendo uma relação muito direta, muito próxima com o eleitorado. Foi provavelmente o momento mais emblemático dessa forma de exercer o seu mandato”.
No célebre discurso
de Marcelo Rebelo de Sousa a partir de Oliveira do Hospital, após os
incêndios de outubro de 2017, o Presidente viria a forçar a demissão da
ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa e obrigar o Governo a um recuo, com o próprio primeiro-ministro a um mea culpa depois de uma declaração ao país que foi criticada,
explica Felisbela Lopes.
Mas noutro caso
distinto foi o Presidente da República quem recuou. “No caso da
Procuradoria-Geral da República tivemos o contrário, com Marcelo a
aproximar-se da posição do Governo, a comprometer-se com a solução
escolhida ou decidida pelo Governo. Aliás, tivemos uma réplica desta
situação com o Tribunal de Contas recentemente, mas não foi tão
visível”, sublinha Felisbela Lopes.
Ao
nível da banca, Felisbela Lopes destaca o papel importante de Marcelo
Rebelo de Sousa “na estabilização” nos casos da Caixa Geral de Depósitos
e do BANIF, por exemplo. Considera que o Presidente foi “uma força
permanente, quer em esclarecer e obrigar a uma administração do banco
público a ser o mais transparente possível, dando conta, por exemplo, dos
seus bens e do que eram os seus rendimentos”.
Pedro Norton foi um dos
ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos que acabou por se demitir
no final de 2016, em solidariedade com o então presidente do banco
público, António Domingues. Em
declarações à RTP a propósito do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, o
comentador preferiu não abordar esse tema diretamente relacionado com a
atividade profissional, mas destaca antes o impacto – negativo - da
atuação do Presidente noutra instituição bancária.
“O
episódio mais recente, a propósito das transferências para o Novo Banco
em que Marcelo não resistiu, por um lado a dizer o que os portugueses
queriam ouvir, mas sobretudo a vir dar suporte relativamente acrítico ao
primeiro-ministro, no caso, na altura, desautorizando Mário Centeno e
quase criando uma crise política”, considera.
Felisbela Lopes destaca por fim a atuação de Marcelo nos meses de
pandemia: “O país mudou substancialmente e nós tivemos sempre uma
atuação atenta do Presidente da República, que quis a querer ter um
papel ativo nos últimos decretos de renovação do estado de emergência. O
Presidente chamou a si um certo envolvimento. Os decretos, ao colocarem
aqui a obrigação de informar a Presidência da República de forma
permanente, fazem com que o Presidente também seja um ator deste
processo, uma parte interveniente”.
Cinco anos mais difíceis
"Foi
aqui também que demos prova de que somos capazes, novamente a partir do
nada, planeamos, reconstruimos, reerguemo-nos, Lisboa renasceu e a esta
praça tornou se uma das mais belas da Europa. Mostrámos ao mundo de
então de que fibra somos feitos e do que somos capazes".
Marcelo Rebelo de Sousa
discurso a 10 de junho de 2016, no Terreiro do Paço, Lisboa
Ao
olhar para o futuro, para um possível segundo mandato de Marcelo Rebelo
de Sousa, a investigadora Felisbela Lopes vai buscar as palavras do
passado. “Se Marcelo for reeleito, vai encontrar um Portugal carente de
proximidade, após tanto tempo em que estivemos confinados e afastados uns dos outros”,
argumenta.
A investigadora diz mesmo que é
possível estabelecer um paralelismo com 2016: “Se quando ganhou as
eleições, Portugal estava a sair de uma austeridade pesada, estava a
sair de um momento em que grande parte da população viveu aflita, agora
pode iniciar o segundo mandato um momento em que há problemas ao nível
da saúde mental, em que estamos mais afastados uns dos outros. Há
imensas famílias que perderam familiares devido à Covid-19, e isso vai
deixar marcas. Famílias que perderam os empregos, famílias que perderam
rendimentos. O Portugal no início de um segundo mandato vai ser um
Portugal deprimido”.
Felisbela Lopes lembra o
primeiro discurso do 10 de Junho em que Marcelo apelava aos portugueses
“para reerguerem, para se levantarem do chão”. “Esse discurso,
curiosamente, vai ser atual”, sublinha, em declarações à RTP.
“Houve
uma promessa que Marcelo fez no discurso de recandidatura. Que
deveríamos esperar um segundo mandato semelhante ao primeiro, mas num
contexto diferente. Julgo que devemos esperar do Presidente um
contributo para a superação dos problemas, de alguém que não junta
problemas aos que já existem”, considera o sociólogo Pedro Adão e Silva.
Se, por um lado, se pode esperar uma
“descrispação institucional”, o PR deverá por outro lado dar primazia ao
fator de “aproximação das pessoas às instituições do regime”, algo
“muito importante nos momentos de maior dificuldade económica e social”,
complementa o comentador da RTP.
Pedro
Norton destaca, por sua vez, que os segundos mandatos contam geralmente
com uma atuação mais “livre” por parte do Presidente reeleito, uma vez
que não se propõe a um novo escrutínio cinco anos mais tarde.
“A
questão é saber o que Marcelo Rebelo de Sousa vai fazer com esses graus
de liberdade. E de facto as circunstâncias são muito diferentes.
Marcelo vai encontrar um país que ainda está a atravessar uma crise
sanitária muito complicada, crise que vai seguramente aprofundar-se nos
próximos meses. Na primeira parte do mandato vai agravar-se a situação
económica, provavelmente a situação social e, digo eu, talvez também a
situação política. Não é de excluir que na primeira parte do seu mandato
tenha de lidar com uma crise politica”, alerta o comentador da RTP.
Confirmando-se a reeleição, os próximos
cinco anos serão uma prova ao chefe de Estado, considera Pedro Norton: “A questão vai ser
perceber se as qualidades que fizeram de Marcelo Rebelo de Sousa um Presidente tão popular
em tempos de maior bonança vão ser suficientes ou as mesmas que vai
precisar de ter num cenário que será seguramente muito mais desafiante
do ponto de vista político. Marcelo não foi ainda testado como
Presidente em época de crise. Quase de certeza que esse teste virá”, acrescenta.