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Os cinco anos de Marcelo Rebelo de Sousa em Belém. O que mudou no exercício da Presidência?

No início de 2020, Marcelo Rebelo de Sousa pedia que os meses seguintes não trouxessem “crises económicas, financeiras ou políticas” devido à perda de poderes para a dissolução da Assembleia da República, algo que sempre acontece em vésperas de novas eleições presidenciais. Mas, neste início de 2021, o país defronta-se com todas estas crises a acrescentar à crise sanitária de Covid-19, o que pressagia dificuldades num muito provável segundo mandato. Para lá da pandemia, que marcou definitivamente o último ano de mandato, olhamos para o legado de um Presidente da República que transformou e promete continuar a transformar o cargo. A RTP falou com vários comentadores de política e comunicação para perceber algumas dessas mudanças operadas desde março de 2016.

Há um ano, quando Marcelo Rebelo de Sousa vislumbrava um ano de acalmia social, política e económica para os últimos meses de mandato, estaria longe de esperar o que se seguiria nas semanas seguintes. Apenas dois meses depois após estas declarações, o Presidente da República declarava o primeiro estado de emergência da era democrática, situação que se repetiria até ao final do ano, perante a evolução da pandemia de Covid-19.

É neste contexto que ocorrem as eleições presidenciais de 24 de janeiro de 2021, com Marcelo Rebelo de Sousa a recandidatar-se a Belém. Até hoje, desde o 25 de Abril, todos os Presidentes eleitos que se recandidataram – Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva - conseguiram garantir a reeleição, e as sondagens mostram que com Marcelo não deverá ser diferente, ao anteciparem uma vitória confortável para o atual Presidente logo à primeira volta.

Num balanço do primeiro mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, contamos com o contributo de três comentadores da RTP: Felisbela Lopes, professora e investigadora da Universidade do Minho, Pedro Adão e Silva, professor no ISCTE-IUL e investigador, e ainda Pedro Norton, CEO da Finesge e administrador não executivo da Fundação Calouste Gulbenkian.
Presidente “soube ser mais povo”

Em declarações à RTP, Pedro Adão e Silva destaca a ”singularidade” do cargo de Presidente da República: “É um cargo muito marcado pela personalidade que ocupa esse lugar. Nenhum outro cargo na política portuguesa é tão marcado pela personalidade de quem o desempenha, e isso prende-se com a própria eleição, absolutamente individual. De facto, acho que a marca da presidência de Marcelo Rebelo de Sousa é a própria personalidade do Presidente”.

O professor universitário e comentador complementa: “Há um lado de proximidade, de alguma intimidade na relação dos portugueses com a Presidência, como se todos conhecêssemos Marcelo Rebelo de Sousa. Isso não é independente da trajetória anterior do Presidente, alguém que conversava com os portugueses de forma sistemática há anos, através da televisão. Ele tinha uma presença íntima, próxima, que é o que acontece a quem está muito na televisão, como se fizesse parte da mobília da casa. E isso não é repetível”.

As comparações entre o atual Presidente da República e as "Presidências Abertas" de Mário Soares são frequentes, mas Felisbela Lopes considera que a proximidade entre os portugueses e Marcelo Rebelo de Sousa é muito maior, notando-se por exemplo um maior à vontade "naquilo a que a população se permite fazer com o Presidente”, com a informalidade a imperar em grande parte dos contactos.

“Curiosamente, Marcelo Rebelo de Sousa, assim como Mário Soares, sai das elites de Lisboa, mas Marcelo Rebelo de Sousa soube ser mais povo do que Mário Soares”, argumenta a investigadora.

Pedro Norton considera que Marcelo Rebelo de Sousa “conseguiu reconciliar os portugueses com a Presidência da República, depois de dois mandatos em que Cavaco [Silva] exerceu o cargo num estilo muito mais frio, muito mais distante”.

“Julgo que conseguiu humanizar a instituição Presidência da República e que os portugueses fazem uma avaliação largamente positiva do seu mandato”, acrescenta o comentador de política da RTP.

E se muitos alertam para os perigos de banalização do cargo com o excesso de declarações e de participação na vida política e do país, Pedro Adão e Silva considera que Marcelo consegue manter “alguma gravitas” e a “dignidade institucional do cargo”.

“Em alguns casos, Marcelo de facto exagerou na proximidade, no modo como se relaciona com a população. Esse é o risco. Se houver um segundo mandato com Marcelo na presidência, ele terá de se reinventar e reinventar a proximidade”, aponta Felisbela Lopes.

Pedro Norton assume, no entanto, uma postura um pouco mais crítica em relação à “omnipresença mediática do Presidente”.

“Cavaco [Silva] falava pouco mas falava quase sempre com gravidade. Marcelo pronuncia-se sobre praticamente tudo. Acho que isso tem alguns problemas: o primeiro é que isso vai provocando algum desgaste, que, é verdade, ainda não se sente em sondagens. Mas o segundo é que isso torna muito mais significativos os silêncios do Presidente, mais do que as declarações. Isso pode não ser mau, quando o Presidente quer gerir deliberadamente os seus silêncios para os tornar ruidosos, mas o que acaba por acontecer é que o Presidente acabou por perder o poder de impedir que qualquer silêncio seja ruidoso”, argumenta o comentador de política da RTP.
Proximidade na relação com o Governo: vantagens e problemas

Para lá dos afetos, Marcelo Rebelo de Sousa foi também um Presidente próximo do Governo. “Acho que o que é transversal ao mandato de Marcelo Rebelo de Sousa é ele ter sido ao mesmo tempo um promotor e um garante da estabilidade institucional”, explica Pedro Adão e Silva, no que designa de “bloco central de palácios” entre São Bento e Belém.

“Com um Governo que estava no Parlamento, ancorado num entendimento à esquerda, foi muito importante essa ancoragem coexistir com uma outra coligação complementar entre o Palácio de São Bento e o Palácio de Belém, que reequilibrou o sistema ao centro. Marcelo foi sempre um fator de estabilização, de promoção da estabilidade, porque complementou um compromisso político atípico na história da democracia portuguesa”, refere.

Para Felisbela Lopes, investigadora de Ciências da Comunicação e comentadora da atualidade na RTP, diz que se trata de um “Dupond-Dupont” entre Belém e São Bento: “Desde o início houve sempre uma cumplicidade que é muito visível através dos media. E também é uma cumplicidade interessada de ambas as partes: tínhamos um Governo na primeira legislatura, com apoio parlamentar à esquerda. A esquerda sustentava o Governo e a Presidência da República servia a António Costa para falar ao centro e mais à direita. António Costa percebeu logo que, através de Belém, poderia ter aqui uma espécie de quadratura do círculo. Na Assembleia da República encontrava um modo de falar para a esquerda, na Presidência da República encontrava uma forma de falar ao centro e à direita”.

Algo que serviu também Marcelo Rebelo de Sousa, explica a investigadora: “O Presidente também podia falar mais à esquerda através do Governo. Vindo da direita, fazia também o posicionamento ao nível ideológico, beneficiando assim de ter algo que o modelo presidencial português não permite: uma ação efetiva nas políticas governamentais. Não raras vezes tivemos um Presidente que ocupava terrenos que eram do Executivo, algo que entre um Presidente da República e um outro Governo provocaria uma colisão frontal”.

No artigo “Quando um Presidente da República vive no limite do semipresidencialismo”, de Felisbela Lopes e Paula Espírito Santo, salienta-se que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou um novo estilo de liderança que motivou “uma redefinição dos eixos de centralidade noticiosa, associados a um elemento novo de rápida reconversão de polos de atenção e a um escrutínio mais célere, imediato e atento por parte da opinião pública em relação a assuntos de interesse nacional”.

“O Presidente da República amplifica a sua estratégia de construção de um modelo e estilo de liderança próprios de proximidade entre si e as comunidades, porque conta com o apoio permanente dos media”, concluem as investigadoras.

“Houve uma espécie de coligação complementar à coligação parlamentar. Em alguns momentos até foi além da cooperação institucional: por vezes foi o Presidente a enunciar medidas que o Governo tomou ou até densificar posições que o Governo assumiu. Mas também funcionou como uma espécie de válvula de escape do sistema, um lugar que institucionaliza o protesto e o conflito, e que é capaz de acomodar esse protesto, ao receber corporações, grupos, associações que estão em protesto, em crítica ao Governo”, complementa Pedro Adão e Silva.

“Quando o sistema está sob pressão, é importante haver esses momentos de alguma oxigenação do sistema, ouvindo e escutando o protesto. Isso é um enorme contraste com Cavaco Silva”, acrescenta o sociólogo.

Apesar da relação institucional “saudável” entre ambos, Pedro Norton considera que, de forma geral, a aproximação de Belém a São Bento também teve pontos negativos e pode mesmo ser prejudicial para o sistema político.

“Diria que houve genericamente uma relação muito próxima e de suporte a uma solução governativa especial de um Governo minoritário. Isso obviamente tem um lado positivo, que foi o de assegurar a estabilidade política ao longo de toda a legislatura anterior. Independentemente das nossas preferências políticas, eu sou dos que acham que a estabilidade é um bem em si mesmo”, explica o comentador da RTP, considerando, no entanto, que “muitas vezes Marcelo deixou que se criasse a perceção que não sabia guardar as distâncias devidas em relação ao Governo”.

Ao aproximar-se do Governo, Marcelo “deixou que se criasse um problema que é real, porque abriu um espaço à sua direita, ao deixar-se transformar também no candidato do primeiro-ministro”, complementa Pedro Norton, considerando que “uma proximidade tão óbvia entre os titulares dos dois cargos mais importantes do país abre um espaço aos críticos do sistema que, com alguma razão, apontam a inexistência de reais alternativas políticas e que sublinha no fundo que há aqui uma crise de representação”.

Pedro Norton considera mesmo que a primeira consequência desta proximidade “percebida como excessiva” pode surgir com estas eleições presidenciais de 2021. “Estou a pensar no resultado que, por exemplo, André Ventura pode obter como único candidato com expressão e peso à direita de Marcelo Rebelo de Sousa. Esse será um primeiro teste”, antecipa.
Os momentos que marcam o mandato

Questionados sobre os principais momentos que marcaram os últimos cinco anos, os três comentadores mencionam os incêndios de 2017, o caso de Tancos, a resolução dos problemas no sistema financeiro no início do mandato e a pandemia de Covid-19 como os eventos mais marcantes, entre outros. Em todos, os traços distintivos de Marcelo foram evidenciados. Alguns destes momentos foram mesmo mencionados no discurso de recandidatura, em dezembro de 2020.

Os incêndios de 2017 marcaram um momento “particularmente singular” na presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, com uma “atuação pronta e estendida no tempo” por parte do Presidente da República, refere Felisbela Lopes.

Pedro Norton destaca, em declarações à RTP, os incêndios de 2017 e o roubo de armas em Tancos como dois momentos marcantes da presidência. “Pedrógão como momento marcante, muito definidor da forma como Marcelo Rebelo de Sousa exerceu o seu mandato, estabelecendo uma relação muito direta, muito próxima com o eleitorado. Foi provavelmente o momento mais emblemático dessa forma de exercer o seu mandato”.

No célebre discurso de Marcelo Rebelo de Sousa a partir de Oliveira do Hospital, após os incêndios de outubro de 2017, o Presidente viria a forçar a demissão da ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa e obrigar o Governo a um recuo, com o próprio primeiro-ministro a  um mea culpa depois de uma declaração ao país que foi criticada, explica Felisbela Lopes.

“António Costa soube rapidamente voltar atrás e dizer que gostava de ter feito um discurso mais emotivo. Tentou emendar-se e tentou ficar mais próximo das populações”, diz a investigadora.

Mas noutro caso distinto foi o Presidente da República quem recuou. “No caso da Procuradoria-Geral da República tivemos o contrário, com Marcelo a aproximar-se da posição do Governo, a comprometer-se com a solução escolhida ou decidida pelo Governo. Aliás, tivemos uma réplica desta situação com o Tribunal de Contas recentemente, mas não foi tão visível”, sublinha Felisbela Lopes.

Marcelo Rebelo de Sousa terá sido também crucial ao nível diplomático e financeiro nos primeiros meses de mandato, que coincidiram com o primeiro ano da “Geringonça”. O Presidente aproximou-se de “países que eram importantes para nós, particularmente a Alemanha, ao dar alguma tranquilidade no plano externo de que esta solução governativa iria ter continuidade. E que Portugal estava mesmo com uma vontade férrea de sair da austeridade”.

Ao nível da banca, Felisbela Lopes destaca o papel importante de Marcelo Rebelo de Sousa “na estabilização” nos casos da Caixa Geral de Depósitos e do BANIF, por exemplo. Considera que o Presidente foi “uma força permanente, quer em esclarecer e obrigar a uma administração do banco público a ser o mais transparente possível, dando conta, por exemplo, dos seus bens e do que eram os seus rendimentos”.

“O próprio Marcelo identificou esse como tendo sido um momento difícil da sua presidência, o que no fundo acaba por revelar algumas dificuldades que se calhar o conjunto dos portugueses não tinha assim tão presente”, destaca Pedro Adão e Silva.

Pedro Norton foi um dos ex-administradores da Caixa Geral de Depósitos que acabou por se demitir no final de 2016, em solidariedade com o então presidente do banco público, António Domingues. Em declarações à RTP a propósito do mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, o comentador preferiu não abordar esse tema diretamente relacionado com a atividade profissional, mas destaca antes o impacto – negativo - da atuação do Presidente noutra instituição bancária.

“O episódio mais recente, a propósito das transferências para o Novo Banco em que Marcelo não resistiu, por um lado a dizer o que os portugueses queriam ouvir, mas sobretudo a vir dar suporte relativamente acrítico ao primeiro-ministro, no caso, na altura, desautorizando Mário Centeno e quase criando uma crise política”, considera.

Outro dos momentos considerados marcantes é o caso Tancos, Felisbela Lopes destaca “o modo como o PR sempre pressionou o processo para que fosse mais claro”, tendo sido também “decisivo” no desenlace deste processo. Pedro Norton refere que Tancos foi um momento em que a Presidência “serviu como um polo equilibrador do poder do Governo”, acrescenta.

Felisbela Lopes destaca por fim a atuação de Marcelo nos meses de pandemia: “O país mudou substancialmente e nós tivemos sempre uma atuação atenta do Presidente da República, que quis a querer ter um papel ativo nos últimos decretos de renovação do estado de emergência. O Presidente chamou a si um certo envolvimento. Os decretos, ao colocarem aqui a obrigação de informar a Presidência da República de forma permanente, fazem com que o Presidente também seja um ator deste processo, uma parte interveniente”.
Cinco anos mais difíceis

"Foi aqui também que demos prova de que somos capazes, novamente a partir do nada, planeamos, reconstruimos, reerguemo-nos, Lisboa renasceu e a esta praça tornou se uma das mais belas da Europa. Mostrámos ao mundo de então de que fibra somos feitos e do que somos capazes".

"Hoje, em 10 de junho de 2016, desta mesma praça, que é símbolo maior do nosso imaginário coletivo, partimos, uma vez mais, rumo ao futuro. Somos portugueses, como sempre, triunfaremos."

Marcelo Rebelo de Sousa
discurso a 10 de junho de 2016, no Terreiro do Paço, Lisboa


Ao olhar para o futuro, para um possível segundo mandato de Marcelo Rebelo de Sousa, a investigadora Felisbela Lopes vai buscar as palavras do passado. “Se Marcelo for reeleito, vai encontrar um Portugal carente de proximidade, após tanto tempo em que estivemos confinados e afastados uns dos outros”, argumenta.

A investigadora diz mesmo que é possível estabelecer um paralelismo com 2016: “Se quando ganhou as eleições, Portugal estava a sair de uma austeridade pesada, estava a sair de um momento em que grande parte da população viveu aflita, agora pode iniciar o segundo mandato um momento em que há problemas ao nível da saúde mental, em que estamos mais afastados uns dos outros. Há imensas famílias que perderam familiares devido à Covid-19, e isso vai deixar marcas. Famílias que perderam os empregos, famílias que perderam rendimentos. O Portugal no início de um segundo mandato vai ser um Portugal deprimido”.

Felisbela Lopes lembra o primeiro discurso do 10 de Junho em que Marcelo apelava aos portugueses “para reerguerem, para se levantarem do chão”. “Esse discurso, curiosamente, vai ser atual”, sublinha, em declarações à RTP.

“Houve uma promessa que Marcelo fez no discurso de recandidatura. Que deveríamos esperar um segundo mandato semelhante ao primeiro, mas num contexto diferente. Julgo que devemos esperar do Presidente um contributo para a superação dos problemas, de alguém que não junta problemas aos que já existem”, considera o sociólogo Pedro Adão e Silva.

Se, por um lado, se pode esperar uma “descrispação institucional”, o PR deverá por outro lado dar primazia ao fator de “aproximação das pessoas às instituições do regime”, algo “muito importante nos momentos de maior dificuldade económica e social”, complementa o comentador da RTP.

Pedro Norton destaca, por sua vez, que os segundos mandatos contam geralmente com uma atuação mais “livre” por parte do Presidente reeleito, uma vez que não se propõe a um novo escrutínio cinco anos mais tarde.

“A questão é saber o que Marcelo Rebelo de Sousa vai fazer com esses graus de liberdade. E de facto as circunstâncias são muito diferentes. Marcelo vai encontrar um país que ainda está a atravessar uma crise sanitária muito complicada, crise que vai seguramente aprofundar-se nos próximos meses. Na primeira parte do mandato vai agravar-se a situação económica, provavelmente a situação social e, digo eu, talvez também a situação política. Não é de excluir que na primeira parte do seu mandato tenha de lidar com uma crise politica”, alerta o comentador da RTP.

Confirmando-se a reeleição, os próximos cinco anos serão uma prova ao chefe de Estado, considera Pedro Norton: “A questão vai ser perceber se as qualidades que fizeram de Marcelo Rebelo de Sousa um Presidente tão popular em tempos de maior bonança vão ser suficientes ou as mesmas que vai precisar de ter num cenário que será seguramente muito mais desafiante do ponto de vista político. Marcelo não foi ainda testado como Presidente em época de crise. Quase de certeza que esse teste virá”, acrescenta.