De jornalista a ministro, de deputado à Assembleia Constituinte a professor catedrático de Direito, de candidato a Lisboa a líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa passou 15 anos a protagonizar o comentário político antes de chegar à Presidência da República, em 2016. Rafael Marchante - Reuters

Marcelo Rebelo de Sousa. O político que falhou mas chegou a Presidente

31 de agosto de 1989. Corria a campanha para as eleições autárquicas e Marcelo Rebelo de Sousa disputava com Jorge Sampaio a liderança da capital. Nesse dia, protagonizou um dos gestos mais irreverentes entre tantos outros que viriam a distinguir a sua atuação política em décadas seguintes. Mas o mergulho no Tejo não lhe valeu a vitória. Anos mais tarde, na liderança do PSD, entre 1996 e 1999, os resultados foram pouco surpreendentes e Marcelo nunca chegou a ser testado em eleições legislativas. Mas o malogro político deu lugar ao comentador que conseguiu catapultar-se para a Presidência da República, aproveitando um espaço mediático e televisivo semanal que o aproximou dos portugueses. Percorremos os principais momentos da vida do atual Presidente da República, que este ano se recandidata a Belém.

Durante mais de dez anos, Marcelo Rebelo de Sousa foi elemento privilegiado do espaço mediático português através do comentário televisivo. Mesmo sem cargo político formal, o antigo líder do PSD entrava pela casa dos portugueses e exercia um enorme poder de influência sobre a vida política nacional. Com essa aparição dominical que liderava audiências, indicava que a carreira política, depois dos fracassos, não teria ainda terminado.


Não terminara. A 9 de março de 2016 surgiu a mudança, a materialização desse poder. Marcelo saiu à rua e deslocou-se a pé até à Assembleia da República para assumir a Presidência da República. Mais um gesto de informalidade e improviso que viria a marcar a relação com os portugueses nos cinco anos seguintes.

Mas a caminhada até Belém começou muito antes desse dia.
A ligação a Marcello Caetano

Marcelo Rebelo de Sousa nasceu em Lisboa a 12 de dezembro de 1948. Com raízes familiares em Celorico de Basto, em Braga, o futuro Presidente da República nasceu e viveu desde sempre muito próximo dos centros de poder. Marcello Caetano, que viria a ser o sucessor de António de Oliveira Salazar e o último Presidente do Conselho do Estado Novo, foi o padrinho de casamento dos pais e era um grande amigo da família Rebelo de Sousa.

Não foi o padrinho de batismo, mas foi Marcello Caetano quem conduziu Maria das Neves, a mãe de Marcelo Rebelo de Sousa, até ao hospital para dar à luz o filho. E foi dele que herdou o nome. O pai, Baltasar Rebelo de Sousa, médico de profissão, foi figura de relevo do regime, tendo sido deputado à Assembleia Nacional e ministro para a Emigração, Saúde e Ultramar, entre outros cargos ocupados durante os últimos anos do Estado Novo. Após o 25 de Abril, à semelhança de outros ministros e governantes, o pai de Marcelo procurou refúgio no Brasil.

Nos tempos da faculdade de Direito, a ligação e a proximidade da família Rebelo de Sousa ao Estado Novo deixava Marcelo, ainda que aluno brilhante, mal visto entre os colegas posicionados mais à esquerda. Em 1969, ano de crise académica, o jovem estudante começa timidamente a manifestar o desagrado em relação ao ministro da Educação, José Hermano Saraiva, continuando, ainda assim, a manter uma relação de proximidade com Marcello Caetano e com o regime. A rutura com o “padrinho”, de quem herdara o nome, surge depois.

Na biografia de Marcelo Rebelo de Sousa (ed. A Esfera dos Livros, 2012), o jornalista Vítor Matos conta que a separação entre os dois “Marcelos” surge após a publicação de dois artigos de opinião, primeiro no jornal “A Capital” e depois no jornal “Tempo”, com a crítica da reforma do ensino universitário e ao regime vigente.

Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa trabalhava no Gabinete de Estudos e Planeamento e Ação Educativa do ministro da Educação, Veiga Simão. Após a publicação dos artigos, Marcello Caetano envolveu-se diretamente no afastamento do jovem Marcelo Rebelo de Sousa, na altura um simples tarefeiro, das suas funções. O chefe de Governo iria endereçar uma carta ao ministro sobre esse assunto em particular. A partir de 1973, data da fundação do Expresso, deixa de haver qualquer contacto entre ambos, confirma Marcelo Rebelo de Sousa numa entrevista em 2018.
Do Direito e do jornalismo à política
A difícil relação com a política não o afastou dos movimentos associativos, nomeadamente católicos. Destaque para o “Grupo da Luz”, de inspiração católica, destinado a promover os valores religiosos nas vertentes sociais, económicas e políticas, de que faz parte a partir de 1970, ao lado de António Guterres, que viria a aderir ao PS, e de Adelino Amarado da Costa, do CDS, que morreria no desastre de avião que também vitimou Francisco Sá Carneiro no final de 1980.

Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa (1971), doutorou-se em Ciências Jurídico-Políticas em 1984, na mesma faculdade, com uma tese sobre “Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português”. Apesar de almejar a uma carreira académica, Marcelo Rebelo de Sousa também vai deixar a sua marca no jornalismo. Nos anos 70, dedica-se a esta área com especial vigor e está na fundação do semanário Expresso, onde virá a ser redator e editor de política, subdiretor e diretor, entre outras funções. Na década seguinte, cria e dirige o jornal “Semanário”.

Marcelo Rebelo de Sousa ajuda a fundar e adere ao PPD/PSD em 1974. No ano seguinte, é eleito deputado à Assembleia Constituinte e participa nos trabalhos que culminam com a Constituição de 1976.

Mesmo distante, nunca se afastou realmente dos centros de decisão e o jornalismo mistura-se, por vezes, com a ação política. Uma acusação que surge até mesmo dentro do próprio partido. Em 1980, Francisco Sá Carneiro desmente uma notícia do Expresso sobre a sua posição pessoal sobre o apoio ao general Ramalho Eanes para a Presidência da República. “Aquilo que se passou é o contrário do que o Expresso, ou melhor, o Marcelo Rebelo de Sousa, relata”, refere.

“Já não é a primeira vez que o Marcelo Rebelo de Sousa se serve do Expresso para fazer determinada política partidária ou pessoal”, acrescentava o antigo líder social-democrata. (Francisco Sá Carneiro, 1980, “Textos” – Sétimo Volume).

Integra o Governo pela primeira vez em 1981 e foi secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros no executivo de Francisco Pinto Balsemão. No ano seguinte passa a ministro dos Assuntos Parlamentares. Nos anos seguintes protagoniza, ao lado de Durão Barroso, Santana Lopes, José Miguel Júdice e Luís Fontoura a oposição interna no seio do PSD que viria a ficar conhecida como “Nova Esperança”, num momento em que Mário Soares era primeiro-ministro.

Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa terá dado preferência a Cavaco Silva durante o célebre congresso na Figueira da Foz, em 1985. No entanto, a ambição de um dia vir ele próprio a liderar os social-democratas terá criado alguma indecisão. De acordo com Santana Lopes, ouvido a propósito da biografia assinada por Vítor Matos, Marcelo Rebelo de Sousa avisou na altura: “Se vem o Cavaco fica lá dez anos”.

Marcelo viria a confirmar esta premonição anos mais tarde. Numa entrevista em 2015, Marcelo Rebelo de Sousa atribui a Cavaco Silva a distinção de ter sido o primeiro político do pós-25 de Abril que “sabia de economia” e “o primeiro a saber lidar com a televisão”, o que também ajuda a explicar os dez anos que ainda passaria na Presidência da República após um interregno entre 1995 e 2005.
Derrota em Lisboa

Nos anos de Cavaco Silva como primeiro-ministro, Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por encabeçar a candidatura do PSD à Câmara Municipal de Lisboa. O anúncio da candidatura de Marcelo surpreendeu as hostes do Partido Socialista, que via o tempo passar sem conseguir fechar um candidato de peso.

Na altura esperava-se a candidatura socialista de João Soares ou de Nuno Portas, mas foi o próprio secretário-geral do PS, Jorge Sampaio, que decidiu avançar. Arriscava tudo e testava em Lisboa a liderança e a força como líder partidário quando ainda mal tinha ainda começado.

Numa “geringonça” autárquica, Jorge Sampaio recebe o apoio do PCP e lança a candidatura “Por Lisboa”. Do lado do PSD, o então primeiro-ministro, Cavaco Silva, demoniza o acordo entre socialistas e comunistas, alegando ainda que fora desenhado um entendimento obscuro para liderar o país em coligação (PS e PCP), tal como se previa agora para a capital. Nesse contexto, as campanhas não ficam indiferentes a um evento internacional de larga escala que entretanto se desencadeia: a queda do muro de Berlim. Entretanto, o candidato social-democrata colocara-se no centro das atenções ao conduzir um táxi pela cidade de Lisboa e com o mergulho no Tejo.

Mas nem o fantasma do comunismo nem as manobras de diversão mediática bastam para derrotar o também futuro Presidente da República Jorge Sampaio. A 17 de dezembro de 1989, a coligação encabeçada pelo PS vence com 49,1%.

É no rescaldo deste insucesso político que Marcelo Rebelo de Sousa atinge um dos objetivos por si delineados desde sempre: torna-se, em 1990, professor catedrático de Direito na Universidade de Lisboa, prosseguindo a carreira académica que nunca abandonara realmente.

No meio universitário foi presidente do Conselho Diretivo, tendo sido presidente do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas desde 2005 até ser eleito Presidente da República. O professor Marcelo não mais deixaria de ser professor.
Os anos de liderança no PSD

Mas o fracasso em Lisboa e o maior foco a nível académico não significou a morte política. Depois dos dez anos de liderança de Cavaco Silva e da demissão do seu sucessor, Fernando Nogueira, é a vez de Marcelo Rebelo de Sousa ser eleito presidente do partido, isto depois de António Guterres, pelo PS, ter conseguido uma vitória nas eleições legislativas de 1995.

Um mês antes de ser eleito líder do PSD, num congresso em Santa Maria da Feira, Marcelo Rebelo de Sousa recusava perentoriamente a hipótese de ser candidato: “Nem que Cristo desça à Terra!”. Seria eleito para a liderança dos social-democratas e reeleito dois anos depois.

Entre 1996 e 1999, o PSD sob liderança de Marcelo Rebelo de Sousa viabilizou três Orçamentos de Estado do Governo socialista então minoritário. Outra das marcas significativas dos anos de Marcelo foi o reatar das relações institucionais entre o PSD e o PCP, de costas voltadas há mais de 20 anos, facto que fez questão de recordar numa entrevista ao Expresso, anos mais tarde. Em 2015, já em pré-campanha para as eleições presidenciais e dias após a formação da “geringonça” – Governo socialista minoritário apoiado no Parlamento por Bloco de Esquerda, PCP e Os Verdes entre 2015 e 2019, Marcelo Rebelo de Sousa sublinhava a importância de bons relacionamentos institucionais para a política.

“Quando eu entrei em funções como líder do PSD, o partido estava de relações cortadas com o PCP há 20 anos e eu reatei-as. (…) Naquela altura, eu além de ter um relacionamento institucional francamente bom com o PS no Governo — o que não nos impediu de fazer forte oposição em dois referendos, mas permitiu que fizéssemos uma revisão constitucional — tinha um bom relacionamento com o CDS e com o Partido Comunista”, frisava Marcelo Rebelo de Sousa.

Os dois referendos – os primeiros da era democrática em Portugal, ambos em 1998 – tiveram uma posição firme do líder dos social-democratas. A primeira consulta popular, a 28 de junho de 1998, versava a questão do aborto. A segunda, a 8 de novembro do mesmo ano, sobre a questão da regionalização e instituição de regiões administrativas. Em ambos os casos, os referendos não tiveram efeitos vinculativos, dada a reduzida participação dos portugueses, mas foram palco para que Marcelo Rebelo de Sousa se pudesse destacar a fazer oposição às posições assumidas pelos socialistas.

Na altura, o chefe de Governo, António Guterres, optou por apoiar o “não” na questão do aborto, aludindo a questões de índole moral e religiosa. Não obstante, os dois referendos conferiram a Marcelo Rebelo de Sousa uma mediatização importante enquanto líder do PSD.

Mas Marcelo nunca viria a ser candidato a primeiro-ministro. Na origem da demissão a poucos meses das eleições legislativas de 1999 esteve a quebra de confiança entre o líder social-democrata e Paulo Portas, à altura líder do CDS-PP, com quem procurava fazer renascer a Alternativa Democrática (AD) para chegar ao Governo e derrotar o PS.

Em causa esteve, concretamente, o caso Moderna. Paulo Portas tinha sido diretor de sondagens da universidade e estava no centro do escândalo. No âmbito desse caso, Marcelo Rebelo de Sousa nunca se solidarizou com o líder do CDS-PP, a quem pretendia coligar-se. A situação culminaria com Paulo Portas a revelar conversas privadas com o líder do PSD numa entrevista televisiva.

Marcelo Rebelo de Sousa tinha apostado em força na solução de coligação com o CDS-PP contra grandes figuras a nível interno, desde logo Cavaco Silva e Durão Barroso. Ao ver consumado o fim dessa solução política, a decisão de demissão não tinha qualquer retorno.

A rutura com o centrista causou estrondo e o PSD ficou sem líder a poucas semanas das eleições europeias e a apenas meses das eleições legislativas, escrutínios que os social-democratas acabariam por perder, já com Durão Barroso na liderança.

Dez anos mais tarde, em 2009, altura em que se questionava a continuidade de Manuela Ferreira Leite na liderança do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa voltou a ser questionado se regressaria à liderança do PSD “nem que Cristo descesse à Terra”.

“Seria uma grande surpresa para mim e um mau sinal para o partido. Há gente mais jovem… Rui Rio, Pedro Passos Coelho”, disse o então professor e comentador político. Nessa altura cumpriu e não se candidatou à liderança dos social-democratas.
De comentador a Presidente

Foi no ano seguinte à saída da liderança do PSD, em 2000, que Marcelo Rebelo de Sousa se estreou a sério no comentário político, com um espaço de comentário na TVI, no Jornal Nacional. Em 2004, abandona a estação de Queluz após uma polémica com o Governo social-democrata de Santana Lopes, que criticava amplamente todas as semanas.

Na altura, um dos ministros mais visados por Marcelo Rebelo de Sousa, Rui Gones da Silva, com a pasta dos Assuntos Parlamentares, queixava-se: “Em toda a Europa trata-se de um caso único. Não há país algum com uma pessoa a perorar 45 minutos sobre política, sem ser sujeita ao contraditório e apenas a defender os seus interesses pessoais”.

Miguel Pais do Amaral, então dono da estação televisiva, apela a Marcelo para que seja menos crítico do Executivo e Marcelo Rebelo de Sousa bate com a porta. Chega a ser ouvido pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, numa audiência a seu pedido, onde se queixa de constrangimentos à liberdade de expressão.

Em 2005, volta ao comentário político semanal, aos domingos, em “As Escolhas de Marcelo”, na RTP, programa que se estende por cinco anos até ao início de 2010. A TVI voltaria a contratar o antigo líder do PSD para os comentários semanais, onde Marcelo Rebelo de Sousa esteve até 2015, ano em que apresentou a candidatura à Presidência da República.

Em “O efeito Marcelo: o comentário político na televisão” (ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2019), a investigadora Rita Figueiras escreve que Marcelo Rebelo de Sousa “desenvolveu uma nova forma de fazer comentário”, com “uma linguagem acessível a quase todos” que “democratizou o acesso opinião esclarecida e massificou um produto de nicho”, até então apenas consumido pelas elites.

Com a vertente de informação mas também de entretenimento a cada comentário, Marcelo Rebelo de Sousa personificou a figura do “comentador estrela” com grande capital simbólico: não ocupando qualquer lugar de poder, movia-se nos círculos de decisão, com “estatuto de definidor de agenda”.

É com esse estatuto e capital simbólico que anuncia, a 9 de outubro de 2015, a candidatura às eleições presidenciais de 2016. Numa campanha sem cartazes ou grandes ações de destaque, Marcelo afirmou-se desde logo como favorito entre os restantes candidatos e acabou por garantir a vitória à primeira volta, com 52 por cento dos votos, derrotando candidatos como António Sampaio da Nóvoa, Maria de Belém e Marisa Matias.

Cinco anos depois de ter sido eleito Presidente da República, em pleno contexto pandémico, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a 7 de dezembro de 2020 a recandidatura a Belém, pouco mais de um mês antes do escrutínio.