As duas vidas de André Ventura

Primeiro dia de outubro de 2017, eleições autárquicas em Loures. Terá sido esta a data em que abortou o projeto político do André Ventura social-democrata (no seio da família PSD) e teve início a gestação do André Ventura populista, liberal e conservador preparado para ocupar a franja da extrema-direita portuguesa.

Nesse escrutínio local, Ventura ficaria atrás de comunistas (que arrebatam o poder municipal) e socialistas com apenas 21,55 por cento dos votos. Apesar de ter garantido ao PSD um aumento de mais de quatro pontos percentuais em relação aos resultados de 2013, o discurso negativo contra a comunidade cigana – que Ventura jogou como um trunfo – não foi suficiente para ganhar a autarquia. “Não foi suficiente” ou “jogou contra a candidatura”, a leitura depende do escopo ideológico. Um ano depois renuncia ao mandato de vereador e o Chega nasce meio ano depois, a 9 de abril de 2019, com a bandeira hasteada na questão cigana.

Com questões ligadas às assinaturas para legalizar o partido e muita sola gasta a caminho do Tribunal Constitucional, o Chega deu os primeiros passos numa coligação que viu nas Europeias de maio de 2019 – escassos dois meses após ser reconhecido como 24.º partido português – a experiência possível para se estrear numa primeira primeira pesagem da inclinação dos portugueses para projetos políticos mais radicais. Não correu bem, se tivermos em conta que a coligação Basta! (Chega, PPM e Partido Cidadania e Democracia Cristã) não garantiu qualquer dos 21 lugares reservados aos deputados portugueses em Estrasburgo.

No entanto, menos de cinco meses depois, nas Legislativas de 6 de outubro, o Chega, então a solo, garante um lugar de deputado na Assembleia da República através do círculo de Lisboa. André Ventura acaba de meter o pé na porta da alta esfera política. Já fora membro de vários órgãos distritais do PSD (e da JSD) e conselheiro nacional dos social-democratas de 2015 a 2017, ocupou durante um ano o cargo de vereador na Câmara de Loures, mas agora entrava na alta esfera. O objetivo desta nova vida, garante, é liderar um dia a direita portuguesa, mas sabe que para isso é necessário que o partido atinja os dois dígitos. Para já, André Ventura assegurou através de um acordo que o PSD tomasse o poder aos socialistas nos Açores. Uma receita que quer repetir no Continente – Ventura garante que sem o Chega Rui Rio nunca chegará a primeiro-ministro.

O aproveitamento da aritmética eleitoral açoriana permitiu dar um primeiro passo no arquipélago que estava sob domínio do PS há duas décadas. Nas contas de somar de Ventura, seguir-se-á de forma natural, e com a mesma fórmula, o Continente. No entanto, as contas nacionais deverão assumir outro grau de complexidade e Ventura já fez saber que “o Chega não vai ser a muleta de nenhum partido”. Por seu lado, Rui Rio condiciona uma coligação a um cenário de moderação do Chega. Mas, ao repto do líder social-democrata “coligamo-nos se o Chega se moderar”, André Ventura ripostou com um “coligamo-nos se o PSD se radicalizar”. Adivinha-se uma equação complexa para a união das duas formações e a solução poderá implicar uma certa de dose de autofagia, estando por saber de que lado.

Entretanto - e dado que a política não admite pausas contemplativas, para garantir que o Chega continue a crescer até chegar a esses dois dígitos -, André Ventura sabe que tem para já de aproveitar a embalagem e manter a máquina em movimento. A 29 de fevereiro de 2020 anunciou a candidatura às Presidenciais de 2021. O objetivo: vencer Ana Gomes e obrigar Marcelo Rebelo de Sousa – que apelida de Presidente corta-fitas – a uma segunda volta, “para que a luta [nessa] segunda volta seja entre o regime e o anti-regime e não entre o PS um e o PS dois, vincou em entrevista conjunta ao Público e Rádio Renascença.
Porque os holofotes brilham mais sobre Belém
A eleição para a Presidência não é um palco qualquer e André Ventura não esconde ao que vem com estas eleições. Não é a vitória da corrida a Belém que está de facto no seu horizonte: é a consolidação do partido no panorama político. Com pouco mais de ano e meio de vida, o Chega não pode dar-se ao luxo de perder um palco destes.

Ambicioso, Ventura decidiu a determinada altura colocar uma fasquia para a sua candidatura: ficar à frente de Ana Gomes. Não o conseguindo, demite-se. A garantia vem de um político que diz ter fundado o partido para romper não apenas com os poderes instalados, mas romper também com o politicamente correto, a política habitual dos que não cumprem o que prometem, de acordo com a análise do líder da extrema-direita portuguesa.

Um desafio que poderia ser interessante, não fora com os números de recentes sondagens a colocar a candidata socialista independente muitos pontos à sua frente, Ventura, que muitas vezes acusa outros partidos e candidatos de “não assumirem as suas responsabilidades” e não manterem a palavra, ter-se já visto obrigado a reformular as regras deste mano-a-mano: se ficar atrás de Ana Gomes dará ao partido a hipótese de o julgar pelo resultado presidencial. Um recuo face ao “demito-me” inicial.

“Posso voltar ou não voltar”. Em entrevista à RTP, André Ventura realinhava as palavras de forma a permitir nuances interpretativas à primeira promessa e assim salvar a face em caso de uma “derrota” frente a Ana Gomes. O “demito-me” foi trocado por um “se não ficar à frente de Ana Gomes demito-me e fico à disposição do partido”, o que retira dramatismo à promessa inicial mas que não deixará de constituir uma primeira prova de fogo à sua liderança. E, simultaneamente, uma prova do algodão que poderá atirá-lo – à nascença mas definitivamente – para a jarra dos políticos que não cumprem o que prometem.
L’État c’est moi ou O Chega sou eu
Tudo no Chega é Ventura, de momento o partido não tem existência sem o seu líder, razão que poderá ter sido, depois da bravata inicial relativamente à candidata Ana Gomes, suficiente para não arriscar mais do que o necessário e salvar o pescoço da nova extrema-direita numa eleição em que, aparentemente, nada há a ganhar ou perder para qualquer dos contendores de Marcelo Rebelo de Sousa.

Presidenciais à parte, há em André Ventura um culto da personalidade e esse culto da personalidade do líder é já uma marca de água do Chega, como ficou evidente na dramatização que marcou os discursos da II Convenção Nacional do partido, em setembro, num momento em que, face às dificuldades em eleger a sua lista para os órgãos do partido, chegou a pairar no ar a ideia de demissão. Perante o cenário de abandono de Ventura e a imediata orfandade do partido, a reação emotiva dos militantes que participavam na reunião de Évora mostrou ao país, mais do que uma sentida lealdade, a devoção que os liga ao seu líder. Uma veneração como há muito não se via na esfera política portuguesa.

Presente nas formações fascistas e de extrema-direita, o culto da personalidade é um capital de que André Ventura é consciente e cujo aproveitamento não quererá desperdiçar. Numa entrevista ao Observador a propósito da corrida presidencial, respondia aos jornalistas, relativamente à determinação de Ana Gomes (socialista independente) e Marisa Matias (BE) – sendo presidentes da República – de não darem posse a um Governo que integrasse o Chega, que essas candidaturas podiam ir mais longe: “Porque é que não me prendem? É mais fácil. Resolve-se o problema todo. O homem [André Ventura] vai preso. Despacha-se o assunto. Não há mais Chega”.

Esticar a corda funciona aqui para Ventura como a prova da sua medida política: André Ventura, o escolhido; André Ventura, a ameaça; André Ventura, o mártir.

Na mesma entrevista, seria questionado sobre uma afirmação quase messiânica que deixou nas redes sociais: “Deus confiou-me a difícil mas honrosa missão de transformar Portugal”. Ventura não afastou estas palavras como uma figura de estilo, uma hipérbole, um folclore aceitável num país dado a sebastianismos. Defensor de uma Europa de matriz cristã, reafirmaria: “Sinto que Deus me colocou neste caminho”. Já antes piscara o olho à fé dos católicos referindo que a sua “missão” estava “ligada a Fátima”.


Mas, dentro de portas, André, o escolhido tem sido posto à prova por um partido aparentemente indisciplinado, incendiado por lutas internas ao nível das lideranças concelhias. De quando em quando sabe-se de uma ou outra saída. A última perda de grande envergadura foi a de Patrícia Sousa Uva, dirigente nacional e sua mandatária nas Presidenciais num momento em que decorrem, precisamente, as Presidenciais. A revista Visão escreve que a demissão tem a ver com “enxovalhos de que foi alvo por parte da distrital do Porto e por discordar da ‘lei da rolha’ anunciada por André Ventura para silenciar os críticos”. Lei da rolha leia-se censura interna a discursos que dissentem do que o líder aprova como discurso oficial do partido.

Um partido novo, o Chega de Ventura sofre agora de dores de crescimento. Dores que não são bonitas de ver: de acordo com a Visão, que recentemente publicou uma reportagem sobre o tema, tanto a estrutura nacional como as estruturas locais do Chega são palco de traições, acusações, ataques, vinganças. Purgas mais ou menos pontuais num partido que para alguns dirigentes terá sido na sua fundação uma promessa de outra coisa que não se concretizou; talvez na essência um projecto de contestação e não o movimento agregador da extrema-direita que alguns garantem ter sido no que se tornou.
Quando Ventura tiver poder, Portugal acorda em ditadura

Citado pela revista, Samuel Martins, ex-dirigente de Leiria, adverte: “Ainda não percebi se o Chega quer a 4ª República ou o 4º Reich, mas espero bem que o André nunca alcance o poder. Ele rodeia-se de gente com uma fé cega, mas ainda não tem os meios. No dia em que os tiver, acordamos em ditadura”. É uma afirmação que está sujeita a verificação, apesar da garantia de Ventura de que o Chega não foi constituído para federar a extrema-direita. “O Chega não é um partido de extrema-direita, é um partido dos portugueses comuns”, disse na entrevista à RTP. “Estamos a lutar para evitar que elementos racistas, xenófobos, fascistas não tenham lugar no partido”.

Estas garantias do líder poderão desiludir a sua família europeia, em particular os parceiros que já lhe deram o beneplácito: por exemplo, Matteo Salvini, líder do partido italiano de extrema-direita Liga Norte, Marine Le Pen, filha do histórico dirigente extremista Jean-Marie Le Pen e presidente da formação francesa Reagrupamento Nacional (anteriormente Frente Nacional). Há pouco menos de meio ano, o Chega aderiu ao “Partido Identidade e Democracia” e a companhia que encontra no seio desta família europeia não são o melhor testemunho para as garantias de Ventura. A investigação da Visão aponta também as facções do Chega, onde encontraremos “intelectuais declaradamente de extrema-direita como Diogo Pacheco de Amorim ou Jaime Nogueira Pinto e uma série de elementos de grupos de extrema-direita nacionalista e fascista, como a Nova Ordem Social, o Escudo Identitário ou o grupo neonazi Blood & Honour”.

Menos encomiástico para André Ventura é o ser apontado como um “ventríloquo de poder do dinheiro e de interesses na sombra”, um epíteto que tocou uma corda sensível do líder, obrigando-o a reagir à reportagem da Visão através da sua conta Twitter num texto sucinto: “não abandonarei os portugueses, por muitas armadilhas que me sejam colocadas no caminho”. A mensagem em que invocaria Deus como a alavanca para outro patamar político, o da governação.


Mas Ventura poderá, para já, escapar a alguns escrutínios, na verdade porque ainda não tem história política. Quanto muito, terá histórico, e ainda assim curto, apesar de ancorado em intervenções radicais e frases bombásticas, outras tantas polémicas envolvendo minorias étnicas e assuntos mais ou menos controversas. Talvez por isso a ambiguidade (de quem pesca à linha) seja ainda a estratégia do seu discurso, lançando a confusão até entre os seus apoiantes.

Exemplos? São vários: o candidato do Chega não define o seu pensamento sobre os homossexuais, que diz terem direito de união como qualquer outro casal, mas que já não terão qualquer direito quando se fala de casamento. Mas Ventura sabe que a brandura não levará o partido a lado algum e há, por isso, outros exemplos mais radicais: a castração dos ofensores sexuais. André Ventura já disse que a pena para esse crime deveria ser, além da prisão, também a castração. Também aqui recuou para o tratamento químico, concedendo porém que lhe “passou pela cabeça a castração física”. Dizia um destes dias que talvez seja menos radical em alguns assuntos do que os militantes do Chega, depois de admitir que em termos de castração física foram os militantes que lhe seguraram a mão.

Escrutinar a ambiguidade que muitas vezes resvala para a incongruência é um terreno que se promete fértil em André Ventura. Numa entrevista ao Observador, dizia-se contra a imigração ilegal “porque é ilegal, meu Deus”. Esgrimir o quadro legislativo foi aqui o argumento, mas torna-se numa armadilha quando Ventura se manifesta contra o aborto, quando o aborto é legal. A retórica populista do líder do Chega não se baseia em pressupostos legislativos, salvo quando estes forem úteis para a sua causa.

Se retomarmos a questão da ilegalização do Chega podemos também aqui sentir o toque do que são as inconsistências de um partido que se agita na tentativa de ganhar espaço. A acusação de Ventura a Ana Gomes e Marisa Matias de que ao ilegalizarem o Chega estariam “a ilegalizar parte do povo português [que votou no partido]” é um anátema que se volta contra si próprio depois de o Chega ter discutido em convenção a ilegalização de partidos de inspiração marxista, uma moção que não passou mas que teve o apoio de metade dos delegados do Chega a essa convenção.
O fantasma do marxismo
“Ser primeiro-ministro. Eu sei que vai acontecer, só não sei é quando”, respondeu André Ventura a um jornalista que o questionava relativamente ao seu projeto político. O seu e o do Chega, uma meta que não é exactamente a de um partido pequeno. Ventura estima que nos próximos anos, eventualmente na próxima legislatura, o partido tenha já alargado o seu espectro eleitoral para lá dos limites de um partido recém-nascido para ocupar o terceiro lugar nas opções dos portugueses. Apenas atrás dos dois grandes, PS e PSD. O criador do Chega promete deixar para trás toda a esquerda que apelida de extrema – PCP e BE – e CDS-PP, a quem Ventura prognostica números tão baixos que os democratas-cristãos ficarão afastados de qualquer solução governativa nos anos que aí vêm.

Fora a questão percentual dos resultados eleitorais, o Chega de Ventura aponta a dois objetivos complementares e ambiciosos: repor os valores da nacionalidade (portugalidade?) e reverter o que apelida de estruturação socioeconómica e cultural marxista do Portugal da III República. O somatório deste projeto resultará no erguer de uma IV República assente num novo texto constitucional.

Para isso, há uma tarefa gigantesca que se apresenta pela frente e que obriga a negociar com os social-democratas: rasgar a atual Constituição.

Ventura promete não desistir de uma revisão constitucional, para o que precisa dos votos do PSD. São necessários dois terços no Parlamento para que possa pôr em prática esse desejo maior que é expurgar o texto fundamental das influências marxistas que ficaram do 25 de abril, nas suas palavras e do Chega, um acordo constitucional refém das imposições dos militares que fizeram a revolução de 1974.

O marxismo funciona para o Chega como uma espécie de Némesis, uma sombra que está presente em cada linha, cada frase, em todos os parágrafos do seu programa político.

Uma leitura do Manifesto e do Programa Político do partido permite filtrar as medidas mais imediatas para decantar uma ideia comum em praticamente todas as áreas: cercar o marxismo. E, ao mesmo tempo, abrir caminho ao liberalismo no sentido mais primário, afastando o Estado das suas iniciativas sociais, das determinações do ensino e formação das novas gerações; não deixar que as actividades económicas e o empreendedorismo estejam presos aos humores da governação.

Segundo a vontade expressa do Chega, o Estado passará a ter um papel meramente regulador, o que, sugere Ventura, impedirá num mesmo passo que dado executivo possa beneficiar “afilhados” e seja um sorvedouro dos rendimentos dos portugueses através da máquina fiscal. Máquina fiscal a que pertenceu André Ventura durante anos, quando exerceu o cargo de inspetor tributário na Autoridade Tributária e Aduaneira.

Se falar de Chega é falar de Ventura, falar de Ventura é falar de Chega, pelo que o agora candidato presidencial está comprometido com as propostas do partido nesta corrida a Belém. Comprometido com o partido que é o seu e do qual é o principal fundador, um partido que no Programa Político se assume “nacional, conservador e liberal”. Um partido “de vínculos históricos, culturais e linguísticos” que remetem à matriz cristã que funda a Europa, reconhecendo dessa forma o papel central da “Igreja Católica não só na estruturação da civilização europeia mas, também, em toda a História de Portugal”. Acrescenta ser um partido que rejeita “todas as formas de racismo, xenofobia e de qualquer forma de discriminação contrária aos valores fundamentais pelos quais se pautam as sociedades de matriz europeia”.

É justo assumir que as propostas do partido são as propostas do candidato. Que propostas são então essas? O Chega defende “o Estado mínimo” em oposição ao modelo atual de um Estado responsável pela “usurpação fiscal”. Manifesta-se igualmente contra a tirania de impor escola pública obrigatória – que diz ser protagonista de uma educação estatizada, marxista e totalitária – ou saúde pública única.

A defesa do “Estado mínimo” não é exclusiva ao Chega, outros partidos da ala liberal do Parlamento português manifestaram igualmente o desejo de afastar a máquina governativa e as suas instituições da economia real, deixando funcionar “a mão invisível” que tudo remete para as leis e auto-regulação de um mercado livre. Trata-se de uma teoria que vem ruindo por todo o lado na atual situação pandémica. Em Portugal não é diferente e André Ventura, como outros deputados liberais, enfiou a “mão invisível” no bolso para reclamar do Governo socialista que não deixasse afundar a economia. Face à crise, de dimensões nunca vistas mas não uma situação inédita, o pensamento liberal do Chega e de Ventura foram remetidos à gaveta.

Logo nos primeiros meses da crise, pedia ao Governo de António Costa o que referia como “complemento social de crise”. Foi apenas o primeiro de vários pedidos desta natureza. Eventualmente será aqui o jogo político a falar mais alto, com o deputado a ajustar-se à posição de defensor dos negócios num amealhar de crédito a ser rentabilizado em futuros escrutínios eleitorais. Uma concessão às circunstâncias, essas circunstâncias tão recorrentes e que tanto preenchem o xadrez da política, um enriquecer de currículo.

Em pontos da governação, esta é a posição de André Ventura:

Novo Banco: na reta final do ano de 2020, o BE apresentou ao Parlamento uma proposta de alteração ao Orçamento do Estado 2021 no sentido de anular a transferência de 476 milhões de euros do Fundo da Resolução destinada ao Novo Banco. Em 24 horas, André Ventura absteve-se, votou contra e por fim a favor da proposta, que foi aprovada com os votos de PSD, PCP, PEV, BE, Chega e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira. A mudança de posição de Ventura mereceu do Bloco uma crítica feroz: “A tripla de quem não tem espinha dorsal, não quer afrontar os poderes do sistema financeiro e não quer ficar fora de nenhuma fotografia que ache apetecível”.

Imigração: defesa do fortalecimento das fronteiras, “dando à polícia e às forças armadas todos os recursos materiais e humanos” e deportação dos imigrantes ilegais. Acrescenta a “deportação de imigrantes que estejam legalmente em território português mas que hajam reincidido no cometimento de delitos leves ou tenham cometido algum delito grave”. A imigração deve ser encarada segundo o critério das necessidades da economia portuguesa.

Saúde: defende que o Estado não deve interferir como prestador de bens e serviços no mercado da saúde, devendo atuar como um regulador desse mercado, missão exercida sobre qualquer estabelecimento de saúde (hospitais, clínicas e centros de saúde).

Educação: à cabeça surge a ideia de extinguir o Ministério da Educação, mantendo também aqui o governo meras funções de regulação e inspecção. “As instalações escolares passariam, num primeiro momento, para a tutela da Direcção Geral do Património que, de seguida, as ofereceria a quem nelas demonstrasse interesse, dando-se prioridade absoluta aos professores nelas leccionando nesse momento”. Seguir-se-ia a “instituição do cheque-ensino”, subsídio directo ao estudante, permitindo a este optar pela escola da sua preferência.

Impostos: a ideia é apenas uma – reduzir a carga fiscal. Por exemplo, no IRS, instituir uma taxa única que seria de 15 por cento no primeiro ano da Legislatura, 13,5 por cento no segundo, 12 por cento no terceiro e dez por cento no quarto.

Comunidade cigana: acabar com o que considera privilégios desta etnia, a saber, principalmente, os subsídios de que beneficia.

Castração química: pretende a introdução de legislação sobre castração química para punir agressores sexuais, culpados de crimes de natureza sexual cometidos sobre menores de 16 anos.

Prisão perpétua: quer introduzir a pena de prisão perpétua para crimes mais graves como aqueles relativos a terrorismo ou homicídios com características específicas.

Eutanásia: no debate presidencial contra o candidato do PCP João Ferreira, André Ventura afirmou ter sempre sido contra a despenalização da eutanásia: “Há uma coisa que para mim é fundamental: é que a eutanásia esteja devidamente regulamentada para que não seja uma brecha que coloque os nossos idosos em perigo (…) eu sempre fui contra a eutanásia, sempre votei contra a eutanásia. Uma posição consistente com o Chega, que escreve no seu Programa Político que “tirania é o poder, sem razão, de roubar o outro da sua vida por qualquer tipo de assassínio, seja aborto, infanticídio, eugenia ou eutanásia”. Não terá, contudo, sido sempre esta a posição do deputado. Um artigo recente do Diário de Notícias lembra que, enquanto aluno da Faculdade de Direito da Universidade Nova, num texto de 2004 da revista da Associação de Estudantes, Ventura referia a descriminalização do aborto, da eutanásia, da prostituição e das drogas leves, considerando: “Quanto a mim, digo que ainda bem que assim é”.

Aborto: no capítulo da Saúde, o Chega defende no seu programa que devem passar a ser pagas as “intervenções cirúrgicas não relacionadas com a saúde, como mudanças de sexo e aborto”, exceto – neste último caso, quando estejam em causa violações, má formação do feto ou quando a vida da mulher esteja em perigo.

Política de subsídios: pretende acabar com o que diz ser o esquema de subsídio-dependência que impera em algumas comunidades em Portugal. Ultimamente virou-se para este fenómeno nos Açores, onde viabilizou um governo regional do PSD. André Ventura diz que deve antes apostar-se em promover o emprego para que as pessoas saiam da zona de pobreza.

Sistema presidencialista: Ventura aponta para Portugal um sistema presidencialista, em que a figura central da governação é o Presidente da República.

Redução de deputados: a redução do número de deputados no Parlamento para o número de 100 é uma das promessas de Ventura assim seja poder, mas que, garante, é também uma proposta que não desagrada ao PSD, com quem admite coligar-se para um futuro governo.

ONU: a Organização das Nações Unidas é considerada pelo líder do Chega como produtora e difusora do marxismo cultural. Acusando a organização de “inoperância”, exige que seja revista a integração de Portugal nas Nações Unidas.

Trata-se, em alguns parâmetros, de um posicionamento que obriga à revisão do texto da Constituição, já que o Artigo 25.º “proíbe penas cruéis, degradantes ou desumanas” (o que se aplica à castração química, e o Artigo 30.º “proíbe penas com carácter perpétuo” (o que se aplicaria à pena de prisão para toda a vida).
Tese, antítese e síntese? Talvez não…

Poderá a progressão de Ventura na política ser fruto de um qualquer processo dialético ou apenas uma adaptação camaleónica que lhe permite surfar a espuma dos dias? Em poucos anos, o agora líder do Chega parece ter vivido duas vidas diferentes, enquadradas em ideais opostos, princípios que se contradizem, valores que não encaixam nem à força de um martelo. Mas, afinal, sem vínculos particulares com um currículo que o comprometa, todas as alternativas lhe são para já permitidas, ainda que, como o próprio reconhece, seja em algumas matérias menos radical do que os fiéis que se revêem nos pergaminhos do partido por si fundado. Uma confusão, militantes que vão ao engano ou um André Ventura ainda a laborar no esboço de um projecto?

Ventura esteve década e meia no PSD. Desiludiu-se, saiu e fundou o Chega – a questão é: rutura com as ideias social-democratas ou evolução para um ideário que é, como o próprio defende, uma referência de muitos dos militantes do seu antigo partido e não só? O líder do Chega orgulha-se de ser um pólo de atração para “muitos eleitores comunistas no Alentejo”. Se olharmos para questões como a da castração que defende para os ofensores sexuais talvez seja impossível encontrar aqui uma linha evolutiva.

A própria tese de doutoramento de André Ventura apenas serve para mergulhar as dúvidas sobre a sua progressão ideológica num nevoeiro ainda mais denso. O professor de Direito rumou à Universidade de Cork, na Irlanda, para defender um trabalho em que adverte para os perigos dos discursos populistas. Uma tese em que defende os Direitos Humanos, em que critica a estigmatização dos muçulmanos – “associados de forma superficial ao terrorismo” – e aponta “a discriminação das pessoas com base na sua origem e nas suas características étnicas e religiosas”. O trabalho académico do líder do Chega data de 2013 e a meia dúzia de anos que o separam do surgimento daquele que é o primeiro partido com representação parlamentar visto como de índole de extrema-direita não são suficientes sequer para falar de amadurecimento de ideias. Não há, entre uma coisa e outra, uma linha direta onde se possa identificar um caminho com princípio e fim.

O programa político do partido surge como o negativo do principal trabalho académico do seu criador, de acordo com o Diário de Notícias, que terá tido acesso à tese e sobre ela questionado Ventura há cerca de um ano. A resposta não poderia ser mais categórica: não há qualquer contradição entre esse texto e as ideias que defende agora.

André Ventura não vê qualquer contradição entre o libelo que o partido acena por exemplo contra a etnia cigana – e a presença islâmica na Europa – e as ideias que expôs em Cork. O mesmo em relação à liderança populista por que optou para fazer crescer o Chega, abrindo caminho a essa ambiguidade de quem pesca à linha um eleitorado demasiado disperso.

"A minha tese não é uma questão de opinião, é uma questão de ciência (…) Sempre distingui muito bem a parte científica da parte opinativa”, justificou Ventura que, acusado de fechar a tese a consulta pública até 2022, assegurou nada haver a esconder e que essa decisão tem a ver com direitos autorais, uma vez que pretendia continuar a publicar o resultado da investigação em livros (publicou partes em dois livros e pretendia publicar outra parte em 2020).

"Uma coisa é a análise dos relatórios, e nos relatórios, é evidente, Portugal é dos mais pacíficos. Outra coisa é a perceção real e os números reais que as pessoas têm do ponto de vista da perceção e da existência", respondeu numa tentativa de dirimir a contradição entre a classificação de Portugal no seu trabalho académico como um dos países mais pacíficos do mundo e a imagem deixada pelo Chega de um país com insegurança crónica.

Há em André Ventura um espectro político ainda por definir, sendo o presidente de um partido recente e com o qual – é o próprio que o admite – entra em contradição na defesa de certos temas. Essa ambiguidade que os críticos poderão assinalar, não como as dores de crescimento de um líder e de uma formação partidária, mas antes como uma estratégia consciente de sedução em 360 graus. Uma estratégia em que Ventura e o Chega têm mais hipóteses de agradar a mais portugueses e na qual, numa altura em que ambos procuram consolidar o seu espaço na política nacional, como diz o povo, tudo o que vem à rede é peixe.