Bruxelas.PT - O Estado de Direito

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 15 de setembro de 2023 | Foto: Tingey Injury Law Firm - Unsplash

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Alfredo Sousa de Jesus, Conselheiro Político no Parlamento Europeu

O que significa o princípio do Estado de Direito
Qual é a importância do Estado de Direito?

O Estado de Direito, na realidade, é um princípio fundamental de direito. Assegura que qualquer cidadão, na prática, beneficia de toda uma série de direitos e garantias que estão relacionados a esse princípio, ou seja, o direito a ter, por exemplo, acesso a um Tribunal justo que vai aprovar uma decisão independente, que não é politizada, e a possibilidade de introduzir um recurso a essa decisão, ou seja, um processo sem uma componente de arbitrariedade.

É um dos princípios fundadores da União Europeia. É um princípio que está consagrado inclusivamente no próprio Tratado da União Europeia, no seu artigo 2º, que elenca toda uma série de valores, uma série de princípios, e que incluiu precisamente o Estado de Direito. Ou seja, o facto de termos no artigo 2º o Estado de Direito refletido no Tratado, representa realmente a importância que este princípio tem para a União Europeia.

E sendo um princípio estruturante que fundamenta a própria União Europeia, porque é que ainda há tantos problemas em cumpri-lo?

Na realidade a União Europeia, num contexto internacional, aparece realmente como uma espécie de exemplo de democracia, ou seja, somos basicamente um clube constituído por 27 parceiros. Mal comparado, é como se fosse um clube de leitura ou um clube de desporto. São 27 parceiros que a determinado momento decidiram unir-se e terem regras comuns, regras que têm que ser respeitadas. Uma dessas regras é precisamente o Estado de Direito.

É que ao contrário de outros países, como Cuba, a Venezuela, a China ou a Coreia do Norte – onde estamos a falar de regimes autocráticos ou de ditaduras – na União Europeia, obviamente, nós não temos esse problema.

Mas porque é que é importante manter a vigilância sobre o Estado de Direito? Porque nós, na União Europeia, felizmente, nunca vamos ter uma situação em que vamos passar de um regime democrático para uma ditadura. Mas há um processo gradual, uma espécie de erosão – alguns autores falam de uma espécie de pintura impressionista, ou seja, pequenos toques, de pequenas pinceladas – que pode facilmente transformar uma sociedade normal e democrática num regime mais autocrático.

É o que se tem verificado, por exemplo, na Hungria ou na Polónia. Estamos a falar de dois países com um Primeiro-Ministro que foi eleito, com eleições absolutamente normais – não estamos a pôr isso em causa – mas que estando no poder podem aprovar uma série de normas, uma série de leis, que acabam, de certa forma, por corroer o Estado de Direito.

Nós estamos a gravar este programa no Parlamento Europeu onde já foi decidido que a Hungria não é bem um Estado de Direito. O que é que isto significa?

Estamos a falar de um país que podemos, em termos de ciência política, qualificar como um regime autocrático, no sentido em que efetivamente há um conjunto normativo, que foi aprovado, que acaba por diminuir as garantias e as liberdades existentes.

 Usando outro exemplo concreto: uma das leis que o Governo Polaco aprovou, há uns anos, foi a que antecipava a idade de reforma dos juízes do Tribunal Constitucional. Bem, visto assim, até parece uma norma inócua, diria até que o Governo fez isso numa lógica de permitir aos juízes jubilarem-se mais cedo. Mas o objetivo desta lei é um objetivo meramente político: consiste, na prática, em empurrar os juízes do Tribunal Constitucional – que tinham sido indicados ou eleitos nos Governos anteriores e que não nutriam grande simpatia política pelo Governo atual – empurrá-los para a reforma, obrigá-los a reformarem-se para ser possível nomear juízes de confiança política do Governo atual.

Ou seja, é uma lei que, vista de forma independente, prevê determinadas condições para a reforma de um juiz. Mas quando analisamos tudo, num contexto mais alargado, percebemos que um país não se transforma numa ditadura de um dia para o outro. Mas há certas pinceladas – no exemplo que já usámos – que são feitas pouco a pouco. E uma destas pinceladas, por exemplo, no caso da Polónia foi exatamente esta lei e foi esta lei que justificou determinadas medidas por parte da Comissão Europeia contra o Governo polaco.

Polónia e Hungria. Nos dois casos é mesmo a questão dos Tribunais que está em cima da mesa?

Há várias questões que estão em cima da mesa.

Mas esta é a principal?

É uma delas porque, precisamente no Estado de Direito, um dos elementos fundamentais é termos decisões judiciais que são independentes, que não sejam arbitrárias, que sejam justas.
Os quatro principais critérios do Estado de Direito
Mas os Tribunais e o sistema de Justiça não são a única componente do Estado de Direito. Há, por exemplo, questões relacionadas com os órgãos de Comunicação Social.

São quatro, os critérios. A independência dos Tribunais, as medidas anticorrupção, a liberdade de Imprensa e o que os ingleses chamam de checks and balances, ou seja os equilíbrios, que também estão relacionados, de certa forma, com o poder Judicial porque se temos um poder Executivo forte, como é o caso na Hungria ou na Polónia, ainda mais se justifica termos contrapoderes e equilíbrios com outros poderes, seja o poder Judicial, seja o Parlamento Nacional. Esse é um dos critérios que a Comissão Europeia costuma utilizar para fazer a avaliação do Estado de Direito em cada país.

Sendo que essa avaliação é feita pela Comissão e sendo que agora até existe um relatório anual.

Exatamente. A Comissão lançou um relatório anual em que faz uma análise exaustiva da situação dos 27 países com base nos quatro critérios que acabámos de referir, ou seja, a independência dos Tribunais, a liberdade de Imprensa, as medidas anticorrupção e os equilíbrios de poder.

Para formalizar, para escrever esse documento, a Comissão enceta um diálogo permanente com as autoridades nacionais, com ONGs, com diferentes órgãos como por exemplo as ordens profissionais, no sentido de apurar qual é a situação do país. E no fim faz uma espécie de mapeamento do Estado de Direito em todos os 27 países da União Europeia. Uns estão mais evoluídos do que outros, obviamente.

Repare que não há situações que sejam exclusivas da Hungria ou da Polónia. No último relatório, no que se refere à independência da Justiça, havia referências explícitas a situações em França ou a situações em Espanha. Ou seja, voltamos à questão das pinceladas que já falámos, individualmente parece uma coisa completamente inócua, mas num contexto maior cada situação passa a ter outra dimensão.
As sanções por incumprimento do Estado de Direito
A Comissão Europeia avalia e depois, se houver um Estado-Membro que não cumpre o que é que acontece a esse país?

Há diferentes mecanismos que podem ser ativados. O primeiro mecanismo, que na realidade é um pouco como o botão da bomba atómica, existe, mas ninguém quer usá-lo, é o artigo 7º do Tratado, ou seja, é um procedimento que é feito pelos membros do Conselho e através do qual se faz a avaliação da situação desse país. Tanto a Polónia como a Hungria já foram alvo de um procedimento de artigo 7º e esse procedimento, na prática, tem duas componentes.

Primeiro uma componente preventiva, que basicamente é um processo de auscultação do país. A Hungria, por exemplo, é chamada à reunião do Conselho e justifica-se, explica qual é o propósito das normas que estão a ser alvo de crítica. Por norma o processo fica por aí, ou seja, os outros países – e apesar de constatarem que a situação não é propriamente a melhor – não querem assumir a responsabilidade de serem eles a entrar num processo mais forte, porque sabem que a qualquer altura podem ser eles a estar na mesma situação.

E o que seria o processo mais forte?

O processo mais forte está definido no artigo 7º ponto 2 e é, precisamente, um mecanismo que prevê a aplicação de sanções a um país. Pode inclusivamente haver a decisão, por exemplo, de suspender o direito de voto desses países.

Mas isso leva-nos àquela situação em que a Hungria e a Polónia vão tendo sucessivos casos de violação, são sucessivamente analisados, mas o processo não avança mais.

Isso é outra questão. Ou seja, para além do mecanismo do artigo 7º, há todos os processos de infração, ou seja, a Comissão Europeia considera que efetivamente há um problema da natureza jurídica e decide apresentar um recurso junto do Tribunal de Justiça Europeu.

Portanto, e só para ficar claro: se fosse uma questão relativa a suspender o direito de voto, seria no Conselho, se for um processo de infração, será na Comissão?

Exatamente.

Outra das questões que se tem colocado ultimamente é a questão da condicionalidade do Estado de Direito no que diz respeito ao Orçamento Comunitário. O que é que isto significa?

Na realidade, esse processo é provavelmente aquele que tem dado mais garantias à Comissão Europeia de que o Estado de Direito está a ser respeitado. A Comissão pode, nesse caso, abrir um processo contra um país para referir que, se até determinada data, o Governo não respeitar uma série de condições estabelecidas, o dinheiro fica congelado.

O dinheiro dos fundos europeus?

Sim. Estamos a falar de fundos agrícolas, de fundos ambientais, de fundos regionais e também dos fundos mais recentes do Next Generation EU. Ou seja, na prática é a Comissão a agir e “a tocar no sítio onde dói mais” aos Estados-Membros, que é no porta-moedas. Na prática os fundos são distribuídos e alocados, mas o que a Comissão faz é suspender esse pagamento.

Isso já aconteceu?

Já aconteceu com a Polónia e já aconteceu com a Hungria. E no caso do Next Generation EU, o primeiro pagamento à Polónia nunca chegou a ser feito porque está momentaneamente suspenso até à Polónia aprovar uma série de medidas. Ou seja, na prática é condicionar o pagamento. Aquele dinheiro é deles, ninguém lhes pode tirar esse dinheiro. Mas o pagamento está condicionado.

Para consulta:

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