Bruxelas.PT - A Política de Saúde da União Europeia

por Andrea Neves - correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 3 de Maio de 2024 | Foto: Patty Brito - Unsplash

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Manuela Teixeira Pinto, Representante Permanente Adjunta de Portugal junto da União Europeia.

A saúde como competência nacionalA saúde é uma competência nacional?

A saúde é uma competência historicamente nacional. Portanto, compete aos Estados-Membros a definição das suas políticas de saúde, a organização dos seus sistemas de saúde, dos seus cuidados de saúde e a definição do seu financiamento e, nesta medida, consideramos que é uma competência nacional.

No entanto, a União Europeia tem vindo ao longo do tempo a ganhar também competências nesta área. Aconteceu com o Tratado de Maastricht, em 1992, que, ao expandir as competências da União Europeia, introduziu a saúde pública. E este é um ponto importante: não estamos a falar de saúde em geral, estamos a falar especificamente da saúde pública e, portanto, o Tratado introduziu a saúde pública como uma das áreas da ação da União.

Essa competência foi reforçada, depois, no Tratado de Amesterdão. Estávamos naquele período da crise das vacas loucas o que também ajudou a perceber que havia limitações para fazer face a esta crise se dependesse apenas de respostas nacionais. Esta questão foi reforçada ainda mais com o Tratado de Lisboa em 2009, que veio dizer que a União deve zelar pela promoção da saúde pública, da prevenção das doenças e do acesso aos cuidados de saúde dos cidadãos europeus.

Mas tudo isto sempre numa lógica de que a ação da União Europeia é complementar a ação dos Estados-Membros. Insiste-se sobretudo no reforço da cooperação entre Estados-Membros e sobretudo também naquilo que tem a ver com a cooperação transfronteiriça porque a saúde, tal como a doença, não conhece fronteiras e portanto, sempre que é preciso uma atuação que envolve mais do que um ou dois Estados-Membros, é nessa área que a União Europeia atua essencialmente.

E quando se deu a pandemia percebeu-se claramente que nenhum Estado podia tratar da questão da saúde pública sozinho.

Exato. A pandemia foi de facto um momento chave e foi um momento completamente disruptivo, porque foi algo que teve uma dimensão para a qual nenhum de nós estava preparado, e não só a nível nacional, mas pelo facto de que a saúde – e também nesta crise sanitária isso aconteceu – não conhece fronteiras. A pandemia teve uma dimensão avassaladora e revelou as fragilidades dos sistemas nacionais, mas também da resposta coletiva e, portanto, nessa medida percebeu-se que não só os sistemas não eram robustos, nem fortes o suficiente para darem resposta a nível nacional, mas que mesmo coletivamente houve uma necessidade de adequar mais as ações a nível europeu para que a resposta pudesse ser mais eficaz em todo o espaço da União Europeia.

Ou seja, apesar de a União Europeia ter uma atividade que é complementar aos Estados-Membros, os países podem em momentos como esses quase que delegar a competência na própria União Europeia?

Delegar, entre aspas, exatamente. O que acontece é que se percebe, claramente, que a resposta só será eficaz se for uma resposta coletiva, ou seja, o desafio tem consequências de tal ordem, para além das nossas fronteiras, que é impossível responder-lhe de maneira isolada. E isto até pode ser usado como um exemplo – embora tenha havido outros ao longo da história da União Europeia – porque todos nós sempre dizemos que a União Europeia avança quando há crises e, de facto, este é também um momento em que isso aconteceu. Portanto aqui percebemos claramente que precisávamos da União Europeia e que sem a União Europeia não seria possível dar uma resposta a esta crise.
A União Europeia da SaúdeSabemos que quando há sondagens do Eurobarómetro ou quando se ouve a opinião dos cidadãos, todos eles dizem que a União Europeia devia ter mais competências na área da saúde e fala-se numa União Europeia da Saúde. Poder-se-á avançar para essa União?

Depende daquilo que nós quisermos entender como a União Europeia da Saúde, e concordo inteiramente que, de facto, o cidadão percebe a vantagem – aliás, ela foi muito visível quando estávamos todos em plena crise com e todos naquela situação de emergência que vivemos – e, portanto, o cidadão, como qualquer um de nós, percebe a mais-valia de ter uma ação europeia nessa área.

Mas voltando à sua pergunta sobre a União Europeia da Saúde: efetivamente em 2020 – e estávamos ainda em plena crise da covid-19 mas já tendo presente todas estas lições, entre aspas, que podíamos já tirar da dificuldade que foi dar resposta no tempo da pandemia ou no auge da pandemia – a Presidente da Comissão Europeia apresentou a ideia de criar uma União Europeia da Saúde.

E o que é que ela considerava que era esta União Europeia da Saúde? No fundo era termos uma União Europeia que estivesse mais preparada para responder a crises – e no fundo é uma resposta quase que imediata à pandemia que estávamos a viver – e a Presidente veio dizer, por exemplo, que devemos reforçar as competências dos organismos que a União Europeia já detém nesta área.

Agências europeias?

E não só. Mas a Agência Europeia do Medicamento foi, de facto, uma das que neste contexto da ideia da União Europeia da Saúde foi mencionada pela Presidente. E a ideia é que a Agência Europeia do Medicamento, que já tem um papel muito importante nesta área, passasse a ter um papel ainda mais importante naquilo que tem a ver com alertas precoces, por exemplo, no que respeita à eventual escassez de medicamentos nestas situações de crise. Portanto, no fundo foi preparar a própria Agência para que seja capaz de dar uma resposta mais eficaz nestas situações.

E o mesmo aconteceu com o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças – que é o centro da União Europeia que normalmente faz análise científica de dados em relação a uma série de doenças infecciosas – ou seja, também ele foi reforçado no sentido de criarmos – eu vou dizer isto de uma maneira muito genérica – uma rotina para estarmos alerta para situações de crises sanitárias, para introduzir essa questão na rotina, do dia a dia e do trabalho destes organismos.

E portanto, este era o primeiro, digamos, bloco daquilo que a Presidente da Comissão Europeia propôs.

O segundo bloco era a reforma do Pacote Farmacêutico, ou seja, pegar em toda a legislação farmacêutica – já vou explicar isto melhor porque é um pacote que está neste momento a ser negociado e ainda não temos nenhuma decisão tomada.

Depois a Presidente anunciou igualmente a ideia de fazermos um Espaço Europeu dos Dados de Saúde – é também algo sobre o qual se tem falado muito – e que, no fundo, seria uma iniciativa – que também está na sua fase final de negociação – para termos um grande sistema europeu onde todos os nossos dados de saúde estão. Depois, é evidente que tem que se definir as formas de gestão deste sistema mas, no essencial, seria – dando um exemplo muito concreto – que eu ou a Andrea, em qualquer Estado-Membro da União Europeia, pudéssemos ter acesso ao nosso dossier de saúde, ou qualquer profissional de saúde tenha acesso aos nossos dados de saúde – e não estamos a falar sobre aquelas situações de emergência em que eu viajo e posso ir ao médico, - estamos a falar de uma situação em que qualquer médico, no espaço europeu, tem acesso ao meu dossier de saúde, aos meus exames, às minhas análises e portanto, eu posso ter um tratamento muito mais direcionado, muito mais rápido e muito mais eficiente.

Evidentemente isto depois tem todas as nuances de saber se o cidadão autoriza ou não autoriza. Esta seria a primeira dimensão do espaço europeu dos dados de saúde.

A segunda dimensão será a de utilizar estes dados de saúde, este mega conjunto de dados da população europeia, mas já anonimizados – ou seja, sem nomes das pessoas – e que possam ser usados para investigação médica, para melhor ajudar na tomada de decisões relativas à saúde pública, etc., etc. Ou seja, no fundo, o que nós queremos com esta segunda dimensão é termos mais dados de saúde disponíveis para que tenhamos melhor investigação na Europa, maior inovação, políticas de saúde mais direcionadas e, portanto, no fundo teríamos uma circulação, entre aspas, destes dados e seria este o grande Espaço Europeu dos Dados de Saúde.
A preocupação da União Europeia com o cancroSendo que durante os últimos tempos também houve um reforçar da preocupação da União Europeia com a saúde mental, por exemplo, e com os rastreios do cancro. Há uma maior dimensão desse tipo de preocupações?

Sim e tocou em duas áreas muito importantes que também faziam parte do macroplano da União Europeia da Saúde, portanto, duas áreas que a União Europeia considera fundamentais neste domínio.

Por um lado, o cancro que continua a ser uma causa de mortalidade enormíssima e, portanto, a União Europeia tem ações muito específicas, direcionadas não só a prevenir, mas também ao rastreio precoce, ao tratamento e depois a reintegração e a todo o cuidado que seja relativo aos doentes de cancro.

Mas são recomendações aos países…

Sim, essencialmente são recomendações mas também há financiamento ao abrigo do Horizonte Europa e daquilo que nós chamamos a Missão Cancro. Portanto, há também financiamento europeu para apoio ao desenvolvimento destas ações.

Há várias recomendações, nomeadamente por exemplo, no caso do cancro – doença na qual a prevenção é essencial – por exemplo, conseguirmos ter menos de cinco por cento da população europeia sem tabaco 2040 é um dos objetivos – tudo isto acaba por ter metas que é sempre a forma mais fácil de nós conseguirmos avançar nas políticas – conseguirmos a redução do consumo nocivo do álcool, a redução da poluição ambiental e a redução da exposição a substâncias cancerígenas. Tudo isto no que diz respeito à prevenção, à deteção precoce, e uma das preocupações da União Europeia – e das medidas que adota e das recomendações que faz – é que o foco no rastreio seja também um foco no combate às desigualdades no acesso, porque nem todas as pessoas têm o mesmo acesso e esta é uma grande preocupação que tem também a ver com a pedagogia, a educação, o facto de as pessoas estarem cada vez mais sensibilizadas e todas poderem ter acesso ao rastreio do cancro.

Portanto, não se pode dizer apenas que há orientações. Há orientações, mas há também fundos para que os Estados possam seguir essas orientações?

Sim, exatamente.
A preocupação da União Europeia com a saúde mentalE o que é que está previsto em relação à saúde mental?

Em relação à saúde mental é basicamente o mesmo, ou seja, a União Europeia também tem investido imenso nesta área e neste momento podemos dizer que a saúde mental é, na ação europeia, encarada em pé de igualdade com a saúde física.

Os dados da União Europeia apontavam – já antes da pandemia – para o facto de que uma em cada seis pessoas sofria de questões de saúde mental. Este é um número muito avassalador e, portanto, a saúde mental é encarada, neste momento, em pé de igualdade com a saúde física e há uma série de ações em curso, sempre nessa lógica – ou seja, no fundo podemos voltar ao início desta conversa – de uma ação complementar aos Estados-Membros e de reforçar a própria cooperação entre os Estados-Membros com duas vertentes essenciais: abordar a saúde mental como uma questão em si própria e, no fundo, dar às pessoas os cuidados e as medidas de prevenção sempre que há risco relativo à saúde mental, mas, ao mesmo tempo, de integrar a saúde mental em toda em todas as políticas setoriais, quer seja no emprego, na educação, nas escolas, no ambiente, etc. No fundo é termos a consciência de que a saúde mental deve estar presente em todas as áreas.
A Estratégia Farmacêutica da União EuropeiaFalámos há pouco da Estratégia Farmacêutica e a necessidade de evitar a escassez de medicamentos que foi algo que durante a pandemia, com as vacinas, apesar de ser um caso diferente, porque não havia ainda as vacinas, mas tem se posto este caso, por exemplo, com antibióticos para crianças. É importante que a Europa esteja preparada para que essa escassez não aconteça. E como é que isso se faz?

Esse é, de facto, um dos pontos que está em negociação e uma das propostas que a Comissão apresentou na revisão do seu Pacote Farmacêutico.

Ou seja, uma das primeiras lições da pandemia foi precisamente essa – na altura foi a escassez de máscaras, sobretudo – a de que é fundamental que nesta proposta haja um controlo apertado de uma lista de medicamentos considerados críticos ou melhor, de substâncias consideradas críticas que depois integram os medicamentos…

Críticas no sentido de essenciais?

Críticas no sentido de essenciais, críticas no sentido de que podem pôr em risco, de facto, a saúde pública se não existirem e, portanto, é uma lista enorme, de substâncias – mas de dispositivos médicos também – e estamos a falar de tudo aquilo que é crítico para o sistema de saúde e para o prestar dos cuidados de saúde à população no seu conjunto.

Mas também falamos de necessidades específicas médicas porque temos, por exemplo, questões como doenças raras ou resistência antimicrobiana – que é um problema grave que temos neste momento – ou seja, no fundo, é termos instrumentos que nos permitam atuar numa situação de crise em todos estes contextos.

E uma das preocupações é a de nós conseguirmos monitorar com antecedência esta lista, termos a noção do que é que precisamos e garantir juntamente com a indústria – depois isto há-de ser tudo negociado – que não haja rutura dessas substâncias consideradas críticas para a saúde pública.
Cuidados médicos noutro país da União EuropeiaUm cidadão de um Estado-Membro tem o direito a ser tratado no outro Estado-Membro?

Neste momento já tem: um cidadão tem o direito a ser tratado em outro Estado-Membro - se nós viajarmos e formos a um outro país e precisarmos de cuidados médicos – sim. Não só tem o direito, como depois tem um cartão europeu que lhe permite ter acesso à prestação de cuidados médicos num outro Estado-Membro nas mesmas condições e como se fosse nacional desse Estado-Membro, depois obviamente isto tem nuances de acordo com as legislações de cada país. Mas nenhum cidadão europeu ficará sem cuidados médicos quando se desloca no espaço europeu.
One Health ou Uma Só SaúdeHá um conceito – que não é novo, mas que se tem falado mais – que é o de Uma Só Saúde, que é também algo em que a União Europeia está a trabalhar, está a tentar trabalhar neste nível mundial, o que é este conceito de One Health ou de Uma Só Saúde?

Uma Só Saúde é um conceito que, no fundo, junta a saúde humana, a saúde animal e a saúde dos ecossistemas, ou seja, a saúde do ambiente no fundo, isto é, o reconhecimento de que nós todos vivemos no meio ambiente que nos influencia e somos influenciados por ele e que a saúde humana e a saúde animal estão também intimamente ligadas. Seria uma abordagem a esta cadeia, no fundo. E por outro lado, é uma abordagem que reconhece também que na nossa condição de saúde, aquilo que se consideram os determinantes de saúde, ou seja, as nossas condições ambientais, as nossas condições de educação, as nossas condições socioeconómicas, etc., etc., influenciam também a nossa saúde.

Estamos aqui a falar de uma abordagem geral à saúde, colocando o homem, os animais e o meio ambiente no fundo…

Porque tudo interfere, aliás há doenças que passam dos animais para as pessoas e vice-versa…

Exatamente como foi o caso da gripe das aves e agora há uma maior consciência desta realidade: não há realidades estanques.

Ou seja, chamar pessoas que não são necessariamente da medicina humana, mas podem ser da medicina animal ou até, por exemplo, pessoas que trabalham as questões do ambiente, para trabalhar em conjunto para uma saúde melhor para todos nós.

É isso mesmo até porque já se percebeu que essa é a forma de atuar. E depois é extrapolar isto a nível mundial porque, mais uma vez, a saúde e a doença não conhecem fronteiras – não é só a União Europeia – no Mundo é exatamente a mesma abordagem.
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