Bruxelas.PT - A Política de Ciência e Investigação da União Europeia

por Andrea Neves correspondente Antena 1 em Bruxelas

Episódio original publicado a 15 de março de 2024 | Foto: Johanna Geron - Reuters

Uma conversa da jornalista Andrea Neves com Manuel Aleixo, chefe de Unidade da Direção-Geral da Investigação e Inovação da Comissão Europeia.

Uma política de Investigação e Inovação na Europa
Existe uma política de investigação e Inovação da União Europeia?

Existe. Mas para explicar porque é que existe uma Política de Investigação e Inovação na União Europeia é preciso explicar que existe, nos Tratados Europeus, um objetivo, que é um dos muitos objetivos da União Europeia, de estabelecer um Espaço Europeu de Investigação. E isto é importante porque nós, ao nível europeu, só podemos fazer aquilo que os tratados nos permitem e, sobretudo, nos pedem para fazer.

E quando olhamos para a investigação, vemos que no artigo 179 está previsto o objetivo de criar um Espaço Europeu de Investigação - portanto, há aqui um objetivo que nós temos que prosseguir – e que ao mesmo tempo esta área é uma competência partilhada entre a União Europeia e os Estados-Membros e, portanto, nós não podemos fazer tudo o que nos apetece. Isto é, estamos limitados pela ação dos Estados-membros também.

O que é que isto significa depois, na prática? Ora, para estabelecer uma política de investigação nós temos vários instrumentos. Por um lado, temos políticas propriamente ditas, isto é, ações que levamos a cabo, por vezes pela Comissão Europeia, por vezes, em conjunto com os Estados-membros. E depois temos um outro instrumento, muito importante, que é o Programa-Quadro de Investigação e Inovação, que neste momento é o Programa Horizonte Europa.

Vamos tentar dividir as questões: quando diz que é uma competência partilhada quer dizer que não é uma competência da União Europeia, ou seja, a União Europeia não pode dizer aos Estados-Membros que têm que fazer isto de determinada forma?

É isso e é até ligeiramente mais complicado do que isso. Quando olhamos para a política de investigação que é, de facto, uma competência partilhada, há aqui uma particularidade importante que é o artigo 4º, terceiro parágrafo do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia que estabelece ainda uma limitação adicional: na área da investigação e do espaço o exercício da competência pela União Europeia não pode impedir os Estados-membros de exercer as suas próprias competências.

Portanto, é como diz. De facto, nós não podemos impor nada aos Estados-membros neste domínio. E então como é que agimos? Trabalhando em conjunto.

Se por um lado temos o Programa-Quadro que é juridicamente um regulamento da União Europeia, aprovado pelo Conselho e pelo Parlamento e diretamente aplicável – que diz como é que vamos gastar o dinheiro no apoio à investigação – também temos políticas que desenvolvem o Espaço Europeu de Investigação. O Espaço Europeu de Investigação é como se fosse um mercado interno do conhecimento. É um espaço de livre circulação do conhecimento, de investigadores, de publicações, de dados, de acesso a infraestruturas, etc. e, portanto, isto envolve múltiplas políticas.

Por exemplo, no âmbito das carreiras dos investigadores que é um ponto fundamental para se desenvolver um Espaço Europeu de Investigação. É fácil de perceber que se não temos carreiras atrativas para investigadores na União Europeia não há um espaço de livre circulação do conhecimento. As pessoas não querem ir de um lado para o outro para trabalhar. Isso também limita a nossa capacidade de atrair investigadores de fora da Europa.

E também há outra questão que é muito importante: nós – nós, Europa, nós Estados-membros – formamos investigadores, formamos doutorandos e isso custa dinheiro e é um investimento que os Estados-Membros fazem, muitas vezes, com o dinheiro público ao nível nacional. Ora, se todas estas pessoas que estão altamente qualificadas depois não têm saídas profissionais – e claro que a academia e as universidades não chegam para absorver todas estas capacidades – então estamos a perder, no fundo, um investimento. E estamos a perder capacidades. Portanto, a União Europeia pode dar uma ajuda.
Criar condições de carreira para os investigadoresComo é que a União Europeia pode ajudar a fixar ou a atrair talentos?

Por exemplo, recentemente aprovámos uma Recomendação do Conselho sobre as carreiras dos investigadores. E há uma série de recomendações que os Estados-membros fazem, a eles próprios e à Comissão, para estimular várias questões: por exemplo, para ter uma definição comum do que é a carreira do investigador, para ter escalões comuns na definição da carreira do investigador. E isso é importantíssimo, claro, porque para podermos comparar uma oferta de emprego num lugar e noutro há que existir aqui uma linguagem comum. E essa Recomendação também refere medidas para o apoio aos investigadores que estão no início de carreira, por exemplo, e também para a mobilidade intersetorial, que é muito importante para permitir que o setor privado, da indústria e das PME saibam que existem recursos fundamentais, que podem e que devem usar. No fundo para tentar fazer a ponte entre os dois mundos.

Tenho já algumas questões depois do que acabou de nos explicar: harmonizar significa também harmonizar ao nível das condições e dos vencimentos e dos apoios para a investigação? A União Europeia, através do projeto do Horizonte Europa ou de outros projetos, pode financiar os Estados-Membros ou ajudar os Estados-membros a financiar os investigadores?

É uma pergunta aparentemente simples, mas na verdade é complicada. A primeira coisa que eu devo apontar é que nós não podemos harmonizar esses aspetos por causa das limitações que temos em termos de competências europeias. Essas competências não são só nacionais, mas em muitos países são até regionais e, portanto, há grandes limitações sobre aquilo que nós podemos fazer. O que esta Recomendação do Conselho faz é estabelecer uma série de parâmetros dizendo, por exemplo, que os salários dos investigadores têm que ser atrativos. E não só os salários, mas as condições de trabalho em geral, e isso pode significar coisas diferentes em países diferentes porque o custo de vida é diferente, por exemplo.

Mas se um investigador não conseguir uma oportunidade de financiamento para o seu projeto dentro do seu país, pode apresentar esse projeto à União Europeia?

Pode. O Programa-Quadro vai financiar projetos de forma competitiva, portanto, os investigadores apresentam projetos e vão estar em concorrência com todos os investigadores ao nível europeu e até internacional, porque o programa Horizonte Europa permite que investigadores de fora da Europa também participem.

Nós não queremos, forçosamente, que haja aqui um efeito de substituição, isto é, que um investigador que não consiga apoio internamente vá para o programa Horizonte Europa. Nós sabemos que isso acontece ou acaba por acontecer mas o que devia existir era um efeito adicional do programa e uma dimensão diferente do financiamento nacional. E como? Primeiro pondo a investigação num nível de concorrência europeu, isto é, os candidatos não estão só a concorrer dentro do seu próprio país, mas estão a concorrer ao nível europeu o que tem uma dimensão de, no fundo, estimular a excelência que é importante.

Mas há também um outro efeito muito importante que é o de estabelecer e encorajar as redes de investigação, as ligações entre investigadores, entre instituições ao nível europeu. E isso é um valor acrescentado muito importante do programa. Se nós virmos, o valor puramente financeiro do programa representa talvez dez por cento do financiamento público europeu – já nem falo do privado – portanto, não é assim um volume tão grande – claro que é significativo e é o maior programa do género – mas é importante apontar que o grosso do financiamento para a investigação é nacional.

Portanto, o valor acrescentado do programa europeu é justamente este efeito excelência, de estabelecer redes de investigação, de trabalhar em conjunto. E isto é fundamental para a ciência, porque a ciência não se faz isoladamente. Aquela imagem do cientista isolado no seu laboratório, isso é uma fantasia, a ciência não acontece assim.
O programa Horizonte EuropaJá fomos falando, através desta nossa conversa, do que é o horizonte Europa, mas vamos definir melhor este programa da União Europeia: o que é exatamente o Horizonte Europa?

O Horizonte Europa é o Programa Europeu de apoio à investigação. O Programa Horizonte vai financiar projetos de investigação e outras ações de apoio à investigação – que não são necessariamente projetos de investigação – ao nível europeu. E como é que o faz? Fá-lo através de um processo competitivo ao nível europeu, isto é, um investigador português estará a competir com um investigador alemão, ou finlandês, ou grego, ou sueco. Mas essa competição pode ser feita de várias formas.
O apoio à investigaçãoE como pode a União europeia apoiar a investigação?

Uma primeira forma é a de apoiar os investigadores individuais financiando projetos de investigação que como nós designamos são bottom-up, isto é, é o investigador, ele próprio, que vai apresentar um projeto de investigação que não corresponde a nenhum tema pré-definido. Isto acontece, por exemplo, no Conselho Europeu de Investigação onde o investigador pode apresentar um projeto de investigação livremente, sobre qualquer tema. Portanto, pode ser sobre as ciências da vida, a matemática, o direito, as ciências sociais, etc. Esses projetos vão ser avaliados e, se aprovados, o investigador recebe uma bolsa que lhe vai permitir constituir uma equipa para prosseguir a investigação nesse tema e não se exige – exige-se que o dinheiro seja bem gasto, óbvio, isso é escusado dizê-lo – mas não se exige a apresentação de determinados resultados. Isto é, o que é necessário é levar a cabo a investigação, não é que desemboque numa patente, por exemplo. Estamos a falar mesmo de investigação fundamental. Depois, outra forma de apoiar a investigação é através de projetos colaborativos.

Nacionais ou transnacionais?

Transnacionais, sempre. E esse é um aspeto muito importante.

Serão projetos colaborativos que envolvem entidades académicas, universidades, entidades de investigação, organismos de investigação, empresas e indústria. Neste caso temos projetos top-down, ou seja, temos temas específicos e, em determinados temas, vamos abrir convites à apresentação de propostas para desenvolver investigação numa determinada área. Normalmente aqui já se exige algum tipo de resultado, porque aqui já estamos numa aplicação mais prática da ciência e da investigação.

Ou seja, investigar e eventualmente, uma empresa a seguir produzir.

Pode ser, embora não se exija ainda isso nesta fase, mas o próprio projeto vai definir o objetivo. Nestes casos há vertentes fundamentais: juntar o talento, juntar as capacidades ao nível europeu, ir buscar esse talento onde ele existe.
O apoio à inovaçãoE no que se refere à inovação, que apoios existem da União Europeia?

É claro que também temos uma dimensão de apoio à inovação com formas diferenciadas. Eu não quero aqui agora entrar em grande detalhe, mas há projetos de apoio à inovação já mais próxima do mercado e há também projetos colaborativos. Mas neste âmbito também temos uma outra dimensão, muito importante, que é o apoio ao scale-up de uma empresa, por norma de uma empresa inovadora, normalmente uma empresa na área mais do deep tech, e um apoio financeiro importante ao scaling-up dessa empresa. Fazemos isto no âmbito de um instrumento que se chama Conselho Europeu de Inovação.

Com base numa agenda de inovação pré-definida?

Temos as duas possibilidades, temos instrumentos com temas pré-definidos, e temos um convite aberto a qualquer tema que o candidato queira apresentar.

E até se refere que as empresas portuguesas têm conseguindo alguns subsídios dentro destes projetos.

Sim, Portugal tem um desempenho genericamente bastante bom no Programa - Quadro mas claro que pode sempre melhorar.

Interrompi a sua explicação porque ia falar de uma quarta vertente, numa quarta forma de apoiar a investigação e a inovação…

Mas a interrupção foi muito pertinente, porque essa quarta dimensão é justamente o apoio aos países que têm um desenvolvimento mais difícil ou que estão menos desenvolvidos em termos de investigação e inovação. É um instrumento que a nós chamamos widening e que se destina a apoiar em particular os Estados-Membros que aderiram depois de 2004 e ainda dois Estados-membros mais antigos que são a Grécia e Portugal e que foram identificados como países que precisavam de um apoio suplementar.

Convém explicar que não estamos aqui no domínio da Política Regional ou da Política de Coesão. Não há aqui envelopes nacionais. São projetos competitivos e são projetos nos quais o coordenador do projeto é sempre uma entidade do país do widening – pode ser, por exemplo, uma universidade portuguesa – e estes projetos destinam-se a melhorar a capacidade do país e a melhorar o desempenho do país no Programa Horizonte Europa.

Dos países do widening Portugal é dos que tem melhor desempenho. Nos últimos anos, Portugal tem melhorado muito o desempenho no Programa - Quadro.

Mas neste caso, quem é que apresenta o projeto? É o país, são as pessoas ou são as empresas?

Há um pouco de tudo. Normalmente, é uma entidade no país do widening, uma universidade, um organismo de investigação, uma empresa… e depois há tipos de projetos diferentes. Eu dou-lhe um exemplo, porque há muitos tipos diferentes e há muitos objetivos diferentes, mas todos têm em comum a necessidade de fazer uma parceria entre uma entidade de um país do widening e uma entidade de um país mais avançado, digamos assim – não é forçosamente mais avançado, mas uma entidade bem estabelecida naquele domínio de investigação. Mas vamos ao exemplo concreto: há um tipo de projetos que se chamam timing e esses projetos de timing destinam-se a criar um centro de excelência de investigação num domínio qualquer.

Esta entidade vai encontrar um parceiro – ou mais do que um parceiro – vai apresentar um projeto e esse projeto, se for financiado, vai receber 15 milhões do programa Horizonte e vai ter um investimento complementar do Estado-Membro que tem que ser, pelo menos, do mesmo montante. Portanto, é o próprio país que decide aplicar os fundos estruturais apoiando este projeto de investigação.

E assim chegamos a 30 milhões apoiados por fundos comunitários.

Mas esses fundos comunitários, na parte dos fundos estruturais, são fundos que foram atribuídos ao país e a decisão sobre como os aplicar é nacional.

Eu poderia dar muitos exemplos – e é sempre arriscado dar um exemplo porque escolhemos um e não escolhemos outro – mas eu dou um exemplo que pode ser consultado publicamente: a Universidade de Coimbra tem um projeto de timing, um centro de excelência financiado da forma como eu acabei de explicar, que se chama MIA. É um instituto multidisciplinar na área do envelhecimento com o qual a Universidade de Coimbra, deliberadamente, prosseguiu uma estratégia inteligente de desenvolver capacidades científicas seja na área da medicina, seja na área da genética, etc... e o facto de o fazer tem resultado na atração de projetos, na capacidade de ganhar concursos nesta área, que é vasta, e no atrair de talento que vem de fora.

E há projetos muito interessantes e em muitas áreas diferentes, desde investigação marítima, à arqueológica, etc…

Através destes projetos pretendemos estimular os ecossistemas de inovação, porque sem um ecossistema que integre todo o tipo de entidades que são necessárias não é possível, realmente, fixar as empresas e fixar a inovação.

Para consulta: 
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