Existe uma Cidadania Europeia?
Podemos dizer que existe, de facto, uma Cidadania Europeia?
Eu acho que sim, que existe. Considero que os cidadãos que vivem na Europa devem sentir-se cidadãos europeus porque a União Europeia lhes dá aquilo que um Estado Nacional também lhes dá.
Os europeus têm direitos que derivam do facto de existir a União Europeia e de viverem na União Europeia. A União cria um conjunto de direitos para cada um dos cidadãos europeus, através da sua legislação, e também porque os cidadãos podem participar, diria até que devem participar, na vida da União Europeia.
A forma mais óbvia é participando nas eleições, desde logo nas eleições para o Parlamento Europeu, como é evidente, mas eu diria também nas eleições nacionais, porque ao elegerem os seus Governos, os cidadãos estão também a eleger os seus representantes no Conselho da União Europeia e no Conselho Europeu. No Conselho da União Europeia, porque é aí que estão representados os Governos, e no Conselho Europeu, porque é aí que estão representados os Primeiros-Ministros.
Mas também podem participar através de iniciativas de cidadãos. Atualmente, é possível que um conjunto de cidadãos se dirija à Comissão Europeia com um determinado pedido para uma iniciativa legislativa numa determinada área.
Esta interação que existe entre os direitos que a União Europeia nos dá, enquanto cidadãos europeus, e a nossa participação cívica junto da União Europeia, na minha opinião, faz com que seja evidente que existe uma Cidadania Europeia. Depois compete-nos a nós utilizá-la, ativá-la e fazer o melhor possível como qualquer cidadão, em qualquer Estado Nacional.
A União Europeia impacta a vida dos cidadãos em praticamente todas as áreas.
Sim, hoje em dia, a União Europeia tem competências diferentes, dependendo das áreas. Há áreas nas quais tem uma competência exclusiva. Isso quer dizer que são áreas nas quais apenas a União Europeia pode legislar. Lembro-me, por exemplo, da área da política comercial ou, por exemplo, da política monetária desde a criação do Euro. Por isso, apenas a União Europeia pode atuar nessas áreas.
Mas depois há áreas de competência partilhada. São áreas nas quais a União Europeia pode atuar e, quando decide atuar elas tornam-se, na prática, áreas de competência da União Europeia.
Competências da União Europeia e competências nacionais
Ajude-me a explicar esta questão um pouco melhor: há áreas de competência exclusiva e nesse caso a legislação é determinada pela União Europeia e o Estado-Membro tem necessariamente de a seguir. É isto?
O Estado-membro tem sempre de seguir a legislação da União Europeia. A questão não é essa. O Estado-membro não pode é atuar nessas áreas. Essa é a diferença.
O processo de construção europeia é um processo que acaba por ser relativamente interativo com o Estado-Membro e há áreas nas quais está assumido, e por boas razões, que apenas a União Europeia pode atuar.
Eu vou dar um exemplo: nós, atualmente, temos uma moeda única, o Euro. É evidente que a política monetária tem de ser uma competência europeia, porque os Estados-Membros não podem exercer política monetária, estando eles numa moeda única.
A política comercial é competência europeia por razões parecidas. Porque nós temos uma mesma tarifa comercial com os chamados países terceiros, fora da União Europeia. Dentro da União Europeia não existem barreiras e por isso é evidente que a política comercial tem que ser decidida em comum, e assim o é.
E em relação às competências partilhadas?
Essas são áreas onde existe vantagem ou pode existir vantagem, para a União Europeia, em atuar em conjunto, mas não são – à partida – competências exclusivas. Isto é verdade para as matérias ambientais, por exemplo. Enquanto a União Europeia não atuar em conjunto – e também já agora eu aproveitava para reforçar que quando eu digo “a União Europeia atuar” não me refiro a algumas figuras escondidas nos edifícios aqui em Bruxelas, refiro-me aos Estados-Membros que aceitam que é melhor tomar certo tipo de decisões em conjunto – mas enquanto a União Europeia não atuar em conjunto, os Estados-Membros podem atuar nessas áreas. A partir do momento em que a União Europeia decide que vai atuar em conjunto nessas áreas, elas passam a ser competências da União Europeia.
Depois há outras áreas de competência, digamos, paralelas, em que a União Europeia e os Estados podem atuar, e depois há áreas de competência nacional. Mas mesmo nas áreas de competência nacional – e eu estou a lembrar-me, por exemplo, da área da educação, que é uma área típica de competência nacional, ou do turismo e da cultura – a União Europeia pode atuar se for para promover objetivos comuns, para reforçar objetivos comuns.
Foi o que tivemos com as vacinas?
Sim. Eu não referi a área da saúde porque a área da saúde, tipicamente, é uma área de competência nacional, é verdade, mas existem áreas que são de competência partilhada no que se refere à defesa da segurança e da saúde pública. E aí a União Europeia pode atuar.
Mas eu diria que é um bom exemplo. É um exemplo de uma situação na qual os Estados-Membros rapidamente chegaram a um acordo e em que, apesar de a saúde não ser uma competência europeia, era importante atuar em conjunto para poder ter uma resposta conjunta.
E porquê? Porque essa resposta conjunta era muito mais eficaz. E não era só uma questão de eficácia, era uma resposta mais eficaz mas também mais justa. Ou seja, a atuação em conjunto, no tempo da COVID-19, permitiu algo de fundamental para este equilíbrio que nós tentamos sempre ter ao nível da União Europeia e que se exprime numa sensação de justiça entre os Estados-Membros.
Neste caso conseguiu-se impedir que, por exemplo, um país tivesse as vacinas numa data e outro apenas tivesse as vacinas um ou dois anos depois. Isso teria criado divisões. Teria levado a tensões, eu diria quase intoleráveis, e por isso foi decidido agir em conjunto.
Os cidadãos querem que a União Europeia tenha mais competências
Eu referi o exemplo dá saúde porque quando se tenta ouvir a opinião dos cidadãos, por exemplo no Eurobarómetro ou na Conferência sobre o Futuro da Europa, esse é um dos exemplos mais referidos pelos cidadãos que dizem que gostavam que a União Europeia tivesse mais competências nesta área da saúde.
É verdade, e houve um exercício muito interessante, a Conferência sobre o Futuro da Europa que, aliás, foi feito durante a Presidência Portuguesa.
A Presidência Portuguesa conseguiu finalmente desbloquear a situação e promover algo que há muito tempo não se fazia: ouvir os cidadãos.
Exatamente, e foi um exercício muito alargado de auscultação dos cidadãos.
E uma das mensagens claras que saiu dessa Conferência foi a de que a União Europeia deve poder também agir na área da saúde, o que poderá vir a implicar, no futuro, se os Estados-Membros estiverem de acordo, uma alteração ao Tratado da União Europeia para que a saúde possa passar a ser uma competência partilhada.
De uma maneira geral, quando vemos as sondagens que são feitas aos cidadãos europeus, no Eurobarómetro, vemos que os cidadãos europeus gostam, querem e percebem que é útil a atuação em conjunto. Obviamente, também devemos dizê-lo, quando as competências estão na União Europeia isso implica que os Estados-Membros – e por isso, também os seus cidadãos – estejam preparados para poderem fazer compromissos e chegar a acordos a 27.
Mas a mais-valia de ter uma decisão a 27, de ter a implementação de uma decisão dessas a 27 é, de uma maneira geral e na minha opinião, muito superior aos eventuais custos de termos que chegar a um compromisso. A cultura do compromisso é essencial na União Europeia. Estes 27 Estados-Membros não poderiam estar, em conjunto, num grau muito elevado de integração – como é a União Europeia – e a decidir questões difíceis em todas as áreas políticas, se não estivessem imbuídos também deste valor do compromisso. E é importante, porque só assim se conseguem atingir os valores mais elevados da União Europeia.
E eu falo não apenas dos valores que são fundamentais, como a questão da paz e da segurança, mas refiro-me mesmo à prosperidade económica, ao desenvolvimento. A União Europeia tem dado um contributo fundamental. E o que nós vemos é que há cada vez mais – pelo menos temos esta sensação através dos inquéritos que são feitos – a consciência de que também noutras áreas – como é o caso da saúde – há interesse em que a União Europeia possa atuar, mas isso implicará necessariamente mudar os Tratados.
Ou seja, não basta fazer uma conferência com cidadãos que dizem que querem que a União Europeia tenha mais competências. Isso é impossível, sem mudar os Tratados por unanimidade.
Sim. Transformar competências que não são europeias em competências que possam ser europeias implicará a revisão dos Tratados. Mas a União Europeia tem uma grande margem de atuação, se os Estados estiverem de acordo, e vimos isso durante a COVID-19. Apesar de a saúde não ser uma competência europeia, os Estados-Membros puderam, em conjunto, atuar no seio da União Europeia.
Os Estados-Membros podem transformar uma competência partilhada numa competência da União Europeia, ou uma competência nacional numa competência da União Europeia?
Sim, quando os Estados decidem atuar é verdade que as competências partilhadas passam a ser competências da União Europeia. Por isso passam a ser só exercidas a nível da União Europeia.
As iniciativas de Cidadania Europeia
Regressemos à questão das Iniciativas de Cidadania Europeia. São iniciativas em que, como disse, os cidadãos podem pedir à Comissão Europeia para legislar, mas tem de ser sobre assuntos que interessem a mais do que um Estado-Membro. Não pode ser sobre o problema que acontece numa região de Portugal, por exemplo?
Não. Essas iniciativas têm de reunir um certo número de Estados-Membros e um número mínimo de cidadãos que podem solicitar à Comissão Europeia que atue numa determinada questão. Depois, cabe à Comissão apresentar uma proposta. É uma fórmula que não tem sido usada muitas vezes.
O que a Comissão Europeia também faz, com frequência é, antes de apresentar uma proposta, fazer inquéritos em vários Estados-Membros. Faz parte das obrigações da Comissão Europeia perceber qual é o interesse geral dos cidadãos europeus, para que possa apresentar uma proposta que seja relativamente equilibrada. A Comissão Europeia não vai apresentar uma proposta que apenas responde a uma parte dos cidadãos europeus ou só a um ou dois Estados-Membros.
Por vezes nenhum Estado-Membro está 100 por cento contente com a proposta que é apresentada pela Comissão Europeia ou até mesmo com o resultado final, mas o conjunto é maior do que apenas a soma das partes e isso, penso eu, tem sido uma das boas características da União Europeia ao longo dos anos.
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