Várias dezenas de artistas e outros trabalhadores ligados ao setor cultural em Cabo Verde manifestaram-se hoje em Santa Maria, ilha do Sal, reclamando apoios do Estado devido à pandemia de covid-19, face aos "10 meses sem trabalho".
A denominada Marcha dos Agentes Culturais, organizada pelos trabalhadores do setor para ter lugar esta tarde em todo o arquipélago, alertando para as consequências do encerramento desde março das atividades e eventos culturais devido à covid-19, envolve um problema com particular impacto na ilha do Sal, a mais turística de Cabo Verde.
Em Santa Maria, as ruas repletas de turistas de várias nacionalidades e os bares e restaurantes sempre preenchidos com música ao vivo, deram lugar, nos últimos meses, ao silêncio e ao vazio. Os turistas são poucos e por isso parte dos espaços permanecem fechados, enquanto que os que abrem, com lotação mais reduzida e devido às regras de proteção, não tem música ou outros eventos, reclamando por isso.
Sandir Palavra, DJ e trabalhador na área da realização de eventos no Sal, liderou a organização da marcha de apelo que em Santa Maria percorreu a rua pedonal, outrora cheia de turistas e animação, num protesto nacional envolvendo músicos, artesãos, artistas de teatro e dança, literatura, das artes plásticas e da fotografia ou do cinema, bem como os técnicos, de luz e som, mas também proprietários de espaços culturais e de diversão.
"Ou seja, este é um protesto de todos os que trabalhamos à volta da cultura", explicou Sandir, recordando a falta de trabalho que afeta milhares de pessoas no setor, muitas no setor informal e por isso sem acesso ao regime de `lay-off` ou a outros apoios.
"Dez meses sem trabalhar e sem ter nenhuma alternativa não é muito bom", aponta.
Além de apoios do Estado para os trabalhadores do setor da cultura sem rendimentos, reclamam a possibilidade de reabertura de espaços, nas zonas que o permitem, para potenciar o acesso dos cidadãos nacionais aos eventos culturais, até porque turistas estrangeiros ainda não chegam.
"Estamos no Sal, o Sal está com um caso ativo [de covid-19] agora. Pedimos por exemplo a reabertura pontual [de espaços para diversão], com calma, que dê algum sustento para nós. E não de uma forma em que não conseguimos trabalhar", queixou-se Sandir Palavra.
E no Sal, que recebia quase meio milhão de turistas estrangeiros anualmente, antes da pandemia, estes agentes culturais alertam para as consequências futuras do momento atual do setor: "Não é para matar a cultura e quando os turistas chegarem aqui não encontrarem nada".
Munidos de cartazes como "Cultura é bandeira de Cabo Verde", "Kultura é um direito" ou "10 meses sem trabalhar", músicos com os seus instrumentos, cantores de microfone na mão e técnicos com os seus equipamentos, percorreram a rua pedonal, em silêncio, algo a que não estão habituados.
"Não temos sustento, então temos de sair à rua e manifestar, chamar à atenção para o nosso problema", explicou à Lusa a cantora Jenifer Solidade, há 10 anos a viver da música em Cabo Verde.
Participou no protesto pensando mais nos colegas que estão há quase um ano sem trabalhar, e sem apoios por estarem no setor informal, até porque se sente uma "privilegiada".
É que trabalhou, ainda que pontualmente, em agosto e no final do ano.
"Há bocadinho de descaso com o nosso trabalho, visto que a pandemia atingiu todos os setores, mas o nosso está gravemente afetado porque não há um apoio. Temos filhos, temos responsabilidades", desabafa, reconhecendo que muitos colegas estão a pedir empréstimos ou ajuda da família para pagar contas, mas também "há quem fique a dever".
"Como é que se vive? Sobrevive-se. Não é viver é sobreviver", afirma Jenifer Solidade, por entre cartazes que descrevem: "Cultura: Primeiro a fechar, último a reabrir".
O ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde, Abraão Vicente, afirmou esta semana que o setor "não está legalmente fechado" e que todas as atividades culturais foram "devidamente regulamentadas" desde outubro, no quadro da pandemia.
Acrescentou que aquele ministério "contactou formalmente" os vários agentes do setor "disponibilizando gratuitamente os seus espaços para a organização dos eventos", mas que "não houve respostas".
Além disso, recorda Abraão Vicente, as empresas do setor da cultura "devidamente registadas" foram "incluídas em todos os incentivos fiscais", mas também nas medidas do regime de `lay-off` e no acesso ao crédito, como as restantes.
"A grande maioria dos artistas residentes no país que fazem, por exemplo da música, a sua ocupação a 100% já receberam, ou receberão nos próximos dias, um valor financeiro de apoio incluído nas medidas extraordinárias anunciadas pelo senhor primeiro-ministro em dezembro, no quadro da aprovação do Orçamento do Estado. Já foram transferidas cerca de cinco milhões de escudos [45 mil euros] entre o Natal e esta data", escreveu o ministro, numa mensagem que divulgou três dias antes da manifestação.
Insistindo que a prioridade é a crise sanitária, Abraão Vicente sublinhou que a "verdade não pode ser escamoteada".
"O Governo tem agido em nome do interesse público e por isso mesmo determinou por lei as regras sanitárias que qualquer organização deve cumprir para organizar eventos, `shows` ou qualquer outra atividade cultural. Está publicado em Boletim Oficial. Facto indesmentível é que vários eventos tiveram lugar dentro da `normalidade` pandémica", afirmou.
Cabo Verde regista um acumulado de 12.664 casos da doença e 115 mortos.
A pandemia de covid-19 provocou pelo menos 1.979.596 mortos resultantes de mais de 92,3 milhões de casos de infeção em todo o mundo, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP.