Na margem sul do rio Mondego junto à Figueira da Foz, no renovado estaleiro naval da AtlanticEagle Shipbuilding, foi retomada a construção do `ferry` encomendado por Timor-Leste, cujo contrato a administração garantiu que irá cumprir.
Chega-se àquela zona historicamente ligada à construção naval por uma estrada em mau estado, rodeada por edifícios devolutos ou destruídos, onde os mais de seis hectares dos antigos Estaleiros Navais do Mondego, fundados em 1944, são hoje um "oásis" de desenvolvimento, passados que estão os tempos de dificuldades, com o determinante apoio de uma sociedade detida a 100% por capitais públicos timorenses, que adquiriu 95% da empresa.
A expressão "oásis" foi declarada à reportagem da agência Lusa pelo diretor financeiro da empresa, Duarte Sousa, representante do sócio maioritário, que, em conjunto com Bruno Costa, sócio minoritário, administrador responsável pela área operacional - e quarta geração de uma família sempre ligada à construção naval - lidera hoje a recuperação do estaleiro.
Ao fundo, ancorado a um pontão no Mondego e de frente para o porto comercial da Figueira da Foz, flutua o `ferry` Haksolok, encomendado em 2014 pelo governo timorense - e cuja gestão passou, depois, para a Região Administrativa Especial de Oecusse-Ambeno (RAEOA) - para fazer a ligação marítima entre o enclave de Oecusse, no oeste do país, a ilha de Ataúro e Díli, a capital de Timor-Leste.
O navio, cuja construção esteve parada cinco anos (desde 2018, por dificuldades financeiras e dívidas a credores, a que se juntaram os estragos no estaleiro provocados pelo furacão Leslie, que levou a empresa a um Processo Especial de Revitalização, aprovado em tribunal em 2020), ameaçava tornar-se um ícone, no mau sentido, do ocaso da construção naval na Figueira da Foz.
Ao invés, a embarcação de 73 metros de comprimento e 12 de largura, projetada para poder transportar quase 400 passageiros e 26 veículos ligeiros, tem hoje, visíveis, operários afadigados no seu interior, aparentemente em sintonia com a administração na determinação do cumprimento dos prazos estabelecidos para a sua conclusão.
"O sucesso deste navio é fundamental para o sucesso do estaleiro. Vai ser entregue e vamos cumprir com a nova adenda ao contrato que foi já assinada e estamos a cumprir com os prazos. Mas, obviamente, vai ser um marco fundamental a entrega do navio, para demonstrarmos a nossa capacidade e afastarmos esta nuvem", disse à agência Lusa Bruno Costa.
Por outro lado, o diretor operacional da AtlanticEagle Shipbuilding observou que o Haksolok, "embora tenha estado parado, continua com a mesma qualidade de sempre, porque uma coisa de que se orgulha o estaleiro é da qualidade de construção".
Segundo Bruno Costa, entidades externas ao estaleiro e com competência na matéria garantiram que o navio "está extremamente bem conservado", face aos anos que esteve atracado e com os trabalhos parados.
"Nesse aspeto, estamos tranquilos", acrescentou, explicando que após o retomar do projeto foram feitos diversos testes à embarcação -- navegabilidade, estabilidade ou aos equipamentos já instalados, entre outras provas -- com resultados "muito positivos".
Duarte Sousa, por seu turno, garantiu que a entrada de Timor-Leste no capital da AtlanticEagle Shipbuilding não sucedeu apenas para terminar a construção do `ferry`, tratando-se de um investimento "de longo prazo", que, se passa pela construção e reparação naval, já `pisca o olho`, também, aos anunciados investimentos ao largo da Figueira da Foz em eólicas `offshore`, seja na eventual construção de infraestruturas, como de embarcações de apoio e manutenção das mesmas.
"O Estado de Timor, o sócio [maioritário] não faria este investimento que está a fazer aqui se fosse para terminar única e exclusivamente este navio", asseverou o diretor financeiro, uma afirmação corroborada pelo diretor operacional.
"O que temos planeado, acordado, é um investimento de longo prazo, não é para acabar o `ferry` e ir embora, é um investimento para rentabilizar o dinheiro que está a ser aqui posto [por Timor-Leste", vincou Bruno Costa.
Uma visita ao espaço ocupado pelos estaleiros confirma estas afirmações, desde logo pelos edifícios renovados -- com coberturas novas, várias das quais foram destruídas pelo Leslie -- pintados a branco com apontamentos em azul, mas também novas valências, como um refeitório devidamente equipado, uma sala de formação onde já funcionam cursos em parceria com o Instituto de Emprego e Formação Profissional ou instalações para armadores que ali se desloquem, entre outras.
Duarte Sousa observou que se há 18 meses, um ano e meio, o estaleiro estava "como que abandonado", neste momento, garante 35 a 40 postos de trabalho diretos, muitos de operários especializados, uns oriundos dos antigos estaleiros navais de São Jacinto, outros que transitaram dos Estaleiros Navais do Mondego e ainda quatro operários timorenses, em funções ainda de aprendizagem, número que a administração pretende ver aumentado.
Bruno Costa, a esse propósito, destacou a presença dos cidadãos de Timor-Leste -- que, aquando da visita da Lusa, estavam a colaborar na manutenção de uma embarcação -- mas também a perseverança dos seus colaboradores "que não desistiram" dos projetos da AtlanticEagle Shipbuilding.
Já o desenhador João Mendes faz `parte da mobília` do estaleiro da Figueira da Foz, onde entrou em 1990, há 33 anos: "Continua a ser bom estar cá, temos mudado de administração, mas o trabalho é sempre entusiasmante e hoje não é diferente do que era há 30 anos", argumentou.
Sobre o momento atual do estaleiro, João Mendes disse que as instalações "foram todas remodeladas e bem, estão melhor do que alguma vez estiveram", e que o ambiente "é ótimo" e os trabalhadores "estão todos com esperança e vontade" de ver o projeto singrar.
"Só tenho sentimentos positivos, neste momento. Na altura que vim para cá, vim por opção e gosto. Mantenho o gosto", observou.
A AtlanticEagle Shipbuilding foi fundada por Carlos Costa, profundo conhecedor do setor da construção naval, tendo ficado com a concessão do estaleiro da Figueira da Foz em 2012. Quatro anos depois, em 2016, Carlos Costa faleceu, prematuramente, aos 59 anos. Ao sair das instalações oficinais, acompanhado da reportagem da Lusa, o filho, Bruno Costa, olhou para o céu e exclamou: "O orgulho que ele, lá em cima, deve estar a sentir".