Recentes declarações quer das lideranças europeias quer do presidente Donald Trump apontam para o fim abrupto do TTIP - Tratado Transatlântico de Livre Comércio, um documento em que o ex-presidente norte-americano Barack Obama se envolveu de forma enérgica. Obama quis selar o compromisso antes de deixar a Casa Branca, mas o timing apertado ditou o seu congelamento. O que é que fica de todo esse esforço de cinco anos? O CETA, o acordo entre a Europa e o Canadá que esta quarta-feira recebeu luz verde do Parlamento Europeu.
A União Europeia e os Estados Unidos representam 800 milhões de habitantes/consumidores, pouco menos de 50 por cento do PIB mundial, 33 por cento do fluxo global de mercadorias e 42 por cento da prestação de serviços.
O actual presidente norte-americano já fizera saber durante a campanha a sua oposição a estes acordos globais, que vê como um mau negócio para a sua América. Sinal disso é o anúncio da renegociação do NAFTA, o acordo entre os Estados Unidos, Canadá e México.
É uma posição que contraria o que parece serem os interesses da grande indústria e das multinacionais norte-americanas. Trata-se, de facto, de um recuo para os planos que estavam a ser desenhados para décadas.
CETA, primo afastado ou irmão gémeo do TTIP?
O que fica então de todo esse esforço negocial em que as multinacionais pareciam ter vergado os burocratas de Bruxelas? Um negócio ali ao lado, o CETA, no original Comprehensive Economic and Trade Agreement, o tratado comercial entre a União Europeia e o Canadá que parece um decalque do clausulado do TTIP e que foi esta quarta-feira aprovado pelo Parlamento Europeu.
Sob a capa de um articulado que visa regular o comércio de mercadorias e de serviços, acesso aos contratos públicos, proteção das indicações geográficas, o processo de resolução de conflitos e, em última instância, libertar as vias de trocas entre os dois lados do atlântico – tal como se pretendia com o TTIP – o CETA acaba por reproduzir em papel oficial todas as preocupações suscitadas pelas linhas do acordo entre estados Unidos e União Europeia.
Rezam as más línguas que é agora perfeitamente indiferente que o TTIP siga em frente, que já não é necessário, visto que o CETA abrange não apenas as empresas e o território canadiano mas todas as empresas que coloquem no Canadá – não a sua sede, não é necessário tanto, mas – uma sucursal.
Eliminação das tarifas aduaneiras e o desbaste das barreiras regulamentares e tarifárias são dois aspectos que surgem desde logo no preâmbulo do CETA – o TTIP também usa esta bandeira como “boa publicidade”. Nada é entretanto referido acerca da possibilidade mais do que real de que venha a verificar-se um corte na regulamentação existente e que fornece aos cidadãos alguma segurança a nível laboral, social e ambiental.
E é aqui que revemos no CETA as críticas antes deixadas ao TTIP: um acordo negociado em segredo, abertura da via negocial aos interesses das grandes multinacionais, abertura dos corredores de Estrasburgo à influência – quando não à predominância – dos lobbies financeiros (já o TTIP dedicara um dos seus mais importantes capítulos ao que chamou de cooperação para a regulamentação), cedência nos princípios europeus de protecção ambiental e alimentar (com o carimbo de permissão à comercialização de produtos e carne canadiana alterados geneticamente - OGM) ou criados à base de hormonas antes proibidas no Velho Continente.
E a velha questão do dirimir das divergências entre empresas e Estados através do mecanismo conhecido no tratado transatlântico por ISDS (Investor State Dispute Settlement), os tribunais arbitrais dominados pelas multinacionais a que essas empresas podem recorrer sempre que considerarem que a legislação aprovada por governos democraticamente eleitos coloca em risco lucros presentes ou futuros.
Em termos de envergadura, o CETA acaba por ultrapassar o TTIP. São 1.598 páginas, distribuídas por 13 capítulos. Em termos de objectivos parece à primeira vista mais modesto. O acordo assinado em 30 de Outubro passado aponta para um impacto anual de 12 mil milhões de euros para a União Europeia e de oito mil milhões para o Canadá.
Talvez os números subam em flecha se os norte-americanos, órfãos do TTIP, apostarem no CETA como novo Cavalo de Troia para cavalgar os mercados europeus. Parece ser esta a percepção de todos quanto abjuraram o TTIP.
Juncker saúda acordo com ecos no PS, PSD e CDS
Anteriormente um defensor do TTIP, o presidente da Comissão Europeia saudou já a aprovação no Parlamento Europeu do CETA. Para Jean-Claude Juncker, trata-se aqui de “um acordo progressivo que é uma oportunidade para moldarmos juntos a globalização e influenciarmos a preparação de regras globais de comércio”.
“O voto no Parlamento Europeu é um importante marco no processo democrático de ratificação do acordo alcançado com o Canadá [que] permite que entre provisoriamente em vigor” um acordo que “foi sujeito a um profundo escrutínio parlamentar”, acrescentou Juncker, num elogio esperado que mereceu o coro do Governo português. PSD, PS, CDS-PP, MPT e o deputado Marinho Pinto votaram a favor; Bloco, PCP e a eurodeputada do PS Ana Gomes votaram contra.
Margarida Marques, a secretária de Estado para os Assuntos Europeus, considera que se trata de um acordo “muito positivo” para o país. A governante sublinhou numa declaração registada pela Lusa que a balança comercial com o Canadá é “tradicionalmente favorável a Portugal, quer em bens, quer em serviços”, mas que há um grande potencial por explorar.
Numa entrevista de Junho de 2016 para a RTP, a governante socialista via, da mesma forma, o TTIP como um desafio à maior capacidade de penetração das empresas e dos produtores nacionais no mercado norte-americano.
Mas o PS não está isolado no apoio ao CETA: PSD e CDS-PP não escondem o seu apoio a este tipo de tratados.
Para Portugal, a questão assume entretanto contornos políticos particulares, já que os partidos da chamada “geringonça” não estão alinhados com o PS sobre a aprovação deste tipo de tratados comerciais. E há-de chegar o momento em que será necessário ratificar o CETA nos parlamentos nacionais de cada um dos Estados-membros, apesar de poder vir a ser aplicado a partir de Abril de forma provisória.
O economista Francisco Louçã, fundador do Bloco de Esquerda e antigo dirigente bloquista, referia em Junho passado em relação ao TTIP que, do ponto de vista do BE, não haveria à esquerda muito espaço de manobra para negociar os termos do Tratado Transatlântico com o PS, que tem aqui – como no CETA – uma posição semelhante à do PSD.
Uma voz dissonante no Parlamento Europeu foi a da socialista Ana Gomes, que alinhou com BE e PCP na barreira ao CETA. Os argumentos rondaram o índex há muito tecido pelos críticos; por exemplo, os contornos da negociação, que assinalam ter sido feita em segredo logo desde o início, em 2009, para apresentarem depois os contornos finais do documento em 2014.
O CETA em perguntas e respostas rápidas
O que quer dizer CETA?
O acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Canadá é conhecido como CETA, acrónimo, em inglês, de 'Comprehensive Economic and Trade Agreement'.
O acordo está dividido em 13 capítulos, em 1.598 páginas, e Bruxelas e Otava estimam que terá um impacto anual de 12 mil milhões de euros para a UE, com 508 milhões de habitantes, e de oito mil milhões de euros para o Canadá, que tem 35 milhões de habitantes.
Quando começou a ser negociado?
A Comissão Europeia e o Governo do Canadá começaram a negociar em maio de 2009. O acordo foi conseguido em 2014 e o executivo comunitário publicou a ata da negociação em agosto de 2015.
O acordo foi assinado no dia 30 de outubro de 2016, em Bruxelas.
Qual o enquadramento do acordo?
A UE é o segundo parceiro comercial do Canadá, atrás dos Estados Unidos, enquanto o Canadá ocupa o lugar número 12 para a UE. Em 2014, os países da União exportaram para o Canadá bens no valor de 31.700 milhões de euros e compraram bens canadianos avaliados em 27.400 milhões.
Canadá e países da UE pertencem a organizações como a NATO, OCDE e OSCE, entre outros.
O CETA é o primeiro acordo económico da UE após o Tratado de Lisboa a incluir um capítulo inteiramente dedicado aos investimentos.
O que prevê o acordo?
O tratado regula o comércio de mercadorias e de serviços, o acesso aos contratos públicos, a proteção das indicações geográficas e o processo de resolução de litígios relativos a investimentos.
O CETA eliminará praticamente todos os direitos aduaneiros e prevê o reconhecimento mútuo dos "certificados de avaliação da conformidade" em vários produtos: desde artigos elétricos até brinquedos. Assim, devem baixar os custos para os produtores que exportam para o Canadá.
As empresas europeias poderão candidatar-se a concursos públicos para o fornecimento de mercadorias e serviços.
O Canadá ganha mais e melhor acesso a um mercado de 500 milhões de pessoas.
As empresas portuguesas podem economizar mais de 500 milhões de euros por ano em impostos e aumentar a sua quota de acesso a concursos públicos no Canadá, em mercados como as telecomunicações, energia e transportes.
A proteção de patentes europeias no Canadá passa de 20 para 22 anos, reforçam-se direitos de autor, é melhorada a validação de títulos universitários e profissionais e facilitada a expatriação de trabalhadores.
O tratado cria um novo modelo de resolução de litígios em matéria de investimentos de caráter permanente e um mecanismo de recurso, que substituirá o antigo sistema de arbitragem.
O que fica de fora do acordo?
Não entram no CETA os serviços públicos, serviços audiovisuais e serviços de transporte, e aplicam-se restrições a outros setores como o audiovisual.
Certos produtos agrícolas ficam fora do tratado, como aves e ovos. Os produtos considerados sensíveis estarão sujeitos a quotas.
Também permite as exportações canadianas de organismos geneticamente modificados (OGM) ou carne de vaca tratada com hormonas.
c/ Lusa