Em direto
Guerra na Ucrânia. A evolução do conflito ao minuto

Tertúlia sobre a final da Taça de Portugal de 1969 juntou nomes conhecidos de antigos jogadores Imagem: Nuno Patrício - RTP

Taça de Portugal 1969: o futebol como arma de protesto

A 22 de junho de 1969, o futebol foi um instrumento ao serviço da revolta estudantil que teve origem na Universidade de Coimbra. A Académica, composta por muitos estudantes universitários, juntou-se ao protesto dos estudantes e chegou à final da Taça de Portugal. Depois do luto académico na meia-final, a Federação Portuguesa de Futebol tentou mascarar a luta da Académica dentro do campo e a RTP foi proibida de passar imagens do jogo, mas no fim da partida os estudantes foram ouvidos e tiveram no desporto uma arma importante para fazer valer a sua mensagem.

Uma tarde para mais tarde recordar. Dois meses depois do início da crise académica em Coimbra, em que os estudantes liderados por Alberto Martins pediam melhores condições de estudo, reforma de muitas estruturas académicas e educação para todo o povo, a Académica foi o espelho visível da luta destes estudantes.

Depois de interpelar Américo Thomaz na inauguração do edifício das matemáticas em Coimbra, para falar sobre os problemas dos estudantes, foi preso e logo a seguir libertado. Deu-se o início de uma crise académica vista por muitos como um presságio do que estaria a acontecer cinco anos depois.

Foi decretado o luto académico em Coimbra e foi feita greve aos exames. A Académica, naquela altura composta por muitos estudantes universitários, juntou-se à luta e teve na Taça de Portugal um bom meio para difundir a mensagem.

Na tertúlia “Final da Taça de Portugal de Futebol em 1969” foram relembrados os momentos em que os estudantes foram em massa para o Estádio do Jamor para ver a Académica a defrontar na final da competição o Benfica.

Mário Campos (antigo jogador da Académica), António Simões e Toni relembraram essa partida e o ambiente que o rodeou. Depois de representar a Académica, dois anos antes numa final da Taça frente ao Vitória de Setúbal, Toni encontrava-se do outro lado da barricada nesse dia de 1969.

Já no Benfica, o jogador relembra que a entrada dos jogadores da Académica foi diferente da habitual. A televisão não transmitiu a partida e os grandes homens do regime não estiveram presentes. O antigo jogador relembrou que todos esses fatores deram um significado especial àquela partida. Não era apenas futebol, havia muito mais em jogo.

António Simões, na altura no Benfica, corroborou as palavras do colega. “Senti qualquer coisa de diferente. O ambiente não era tão natural. Percebi que naquele dia o futebol tinha um peso político”.

Apesar de dois clubes em campo, Simões recordou em campo esteve presente apenas uma. “Este jogo tornou-se num momento memorável, num marco extraordinário pela força que teve, politicamente falando”.

Foto: Painel juntou nomes como Mário Campos (Académica), António Simões e Toni (Benfica) - Nuno Patrício

Os três jogadores estiveram em campo naquele dia 22 de junho e os três concordam que naquele dia se deu um passo importante para mostrar um “regime podre”.
A Academia em peso no Jamor
Sem imagens da RTP em direto para transmitir a partida, Mário Campos, relembra o seu passado em Coimbra. Hoje é médico, mas na altura estudava na universidade, no segundo ano de medicina, e lembrou um país triste, a preto e branco, que não tinha ideia da luta travada em Coimbra.

“Estava em Coimbra e andava no segundo ano de medicina e isso era a Académica. Setenta por cento eram estudantes universitários. Na final havia sete estudantes universitários e oito eram internacionais A”.

O antigo estudante relembrou também a ameaça do Ultramar e o receio de ter de sair do país. “Estudando e passando não se ia para o Ultramar”.

Um jogo com um grande peso político. Um desporto de massas que teve um papel pedagógico. Frente-a-frente Benfica e Académica. A Briosa já havia mostrado frente ao Sporting estar ao lado dos estudantes, quando, na meia-final da Taça, vestiram de branco com fumos negros.


Foto: Mário Campos na tertúlia sobre a final da Taça de Portugal de 1969 - Nuno Patrício

A façanha seria para repetir na final, mas a Federação de Futebol proibiu qualquer atrevimento. A Académica não desarmou e decidiu entrar a passo no Jamor. A Federação pediu que o Benfica entrasse à mesma velocidade para não levantar questões.

Sem poder utilizar o equipamento alternativo como forma de luto académico, a equipa de Coimbra entrou a passo, usou um adesivo no emblema e mostrou as capas abertas, quando normalmente se apresentam traçadas.

Toni relembrou que aquele jogo se tornou numa manifestação. “Dentro do jogo, os manifestantes divertiram-se. As manifestações não eram coisas normais naquela altura. Foi uma final que marca a história. É mais do que uma final, foi mais do que um jogo de futebol”.

No estádio estiveram 500 estudantes. E no intervalo, tarjas a pedir melhores condições de estudo e educação para o povo foram levantadas, apesar da presença da PIDE no recinto. Os três jogadores relembram que apesar de não se ter ideia em Lisboa do que estava a acontecer, muitas das tarjas começaram a ser passadas de mão em mão, inclusivamente por adeptos do Benfica, que não deixaram a mensagem dos estudantes esmorecer.

Milhares de comunicados foram distribuídos por quem estava no estádio.
“A censura mais feroz”
Relembra José Veloso, também ele convidado para fazer parte da tertúlia. Na altura era o fotógrafo da Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra e esteve presente em muitos dos momentos-chave da crise académica.

Lembrou a ação de Alberto Martins para com Américo Thomaz, no edifício das matemáticas, e falou da figura triste das grandes figuras do Estado que saíram e deixaram os estudantes a falar sozinhos.

Foto: António Veloso foi fotógrafo presente no movimento estudantil em Coimbra - Nuno Patrício

Diz ser um dos momentos mais marcantes da sua vida e relembrou a final da Taça. “Havia a censura mais feroz naquela altura. Lembro-me [no estádio] de ter dado uma volta e ver jipes de choque, com metralhadoras por cima. Tive o maior medo da minha vida”.

Siderado com a magnitude do acontecimento, o fotógrafo revelou que não teve coragem para tirar aquela que seria uma das fotografias da sua vida e pensou: “o que é que estes tipos pensam que vai acontecer aqui”?
O festejo da Briosa e a mobilização para a Guiné
Durante a tertúlia os três antigos jogadores recordaram muitas histórias que o grande público pode não conhecer. Mário Campos, jogador da Académica nessa partida, lembrou o pedido que foi feito à equipa caso os Estudantes levassem a taça para casa.

Um telefonema para Vítor Campos, irmão de Mário, minutos antes do jogo pedia aos jogadores que depois de terem a taça na sua posse a dessem a Alberto Martins, presidente da Direção-geral da Associação Académica de Coimbra, que se encontrava no topo sul do Jamor.

“A Académica se ganhasse ia festejar pelo estádio e quando chegasse à bancada onde estava Alberto Martins iria pedir-se para haver uma invasão de campo”.

Mostrando algum alívio pelo triunfo do Benfica, Mário Campos explica o sentimento. “Seria muito perigoso, devido à presença de muita polícia no estádio, tínhamos medo que houvesse uma tragédia”.

Já António Simões falou do momento em que esteve muito perto de ingressar na Académica. “Estive muito perto de ir jogar para a Académica já que em 1965 fui mobilizado para a Guiné. Completamente aflito, procurei por alguém que obedecesse à lei e pudesse trocar comigo”.

O antigo jogador explicou que tanto ele como o Benfica pagaram 150 contos na altura para poder não ir para o Ultramar e que o grande objetivo passou por se transferir para a Académica, ao abrigo da lei escolar.

Foto: Nuno Patrício

“Para que se tenha ideia, nos primeiros três anos no Benfica, ganhava 50 contos por época”.
O futebol é uma arma política
Os três antigos jogadores partilham todos a mesma opinião. A crise académica de 1969 e a utilização da final da Taça de Portugal como arma política foi um primeiro passo para terminar o regime, uma prova de que o futebol é muito mais que um mero desporto.

“Parece que aquele jogo foi o primeiro passo para perceber que o regime estava a ficar podre. Foi um privilégio, através do futebol, uma coisa que nós amamos, ter a oportunidade de contribuir para que dali nascesse algo importante que foi o 25 de Abril”, disse António Simões.

“Para além do plano desportivo, algo de grande estava a acontecer”, concluiu o antigo jogador.

Toni diz que, para si, aquela partida tem uma conotação fortíssima com o início da queda da ditadura em Portugal. “O futebol deu o seu grande contributo e os estudantes associaram-se a esse evento. Ter participado nesse jogo é para mim um privilégio muito grande”.

Mário Campos, irmão de Vítor Campos, capitão da Académica naquela partida, corroborou a opinião dos amigos e falou no poder do futebol enquanto arma política.

“O futebol, nesse dia, foi a visibilidade. O desporto é uma grande arma política”.

Declarando que nunca teve medo da repressão política após a Académica aderir ao movimento, Mário Campos apelidou os líderes estudantes de “heróis”.

“Não tivemos receio da repressão, éramos estudantes universitários, estávamos perfeitamente conscientes do que estávamos a fazer. A causa dos estudantes era de tal maneira evidente e justa que pensávamos que nada nos poderia acontecer”.
Eusébio estragou a festa dos estudantes
Com o significado político e social que a partida teve, pouco se fala do futebol jogado. No fim dos 90 minutos, Benfica e Académica empataram a um golo e foi preciso o prolongamento para encontrar um vencedor.

Manuel António marcou o primeiro golo da partida, a menos de dez minutos do fim e deu esperança à Briosa, só que António Simões empatou aproveitando uma defesa incompleta do guarda-redes Viegas.

“A vitória da Académica teria tido um peso muito diferente. Não me importava que a Académica tivesse ganho, caso isso fosse um passe ainda maior para o derrube do regime”, declarou o antigo médio.

No prolongamento coube a Eusébio dar a vitória ao Benfica, num fim de jogo em que os três antigos jogadores relembram a cumplicidade entre as duas equipas. Houve troca de camisolas entre encarnados e estudantes e, na volta de honra, José Augusto ofereceu o troféu a Vítor Campos, que o levantou em direção aos mais de 500 estudantes presentes no Jamor em sinal de vitória.