António Mateus, a tua vida profissional na área de jornalismo tem-te permitido estar presencialmente em alguns momentos-chave da história mundial. Coincidência ou fruto de um trabalho de bastidores que te coloca nestes cenários?
AM - Ambas. As primeiras vezes que estive em zonas intensas foram todas em África.
A primeira foi em Moçambique, ainda na década de 80, em que este país vivia nessa altura um período de guerra civil bastante intenso, uma guerra civil a que a maior parte das pessoas à distância não davam o devido valor, foram mudando à medida que o impacto dessa guerra alastrou a uma escala mais do que local, passou primeiro para regional e depois para uma escala global.
Isto porque estava também em causa a luta contra o apartheid, um sistema de segregação racial em que a figura de Nelson Mandela se tornaria indiscutível.
És jornalista de televisão, habituado a transmitir as informações através de notícias, mas muito fica por contar.
Já escreveste vários livros, sete no total, incluindo o mais recente, “Zona de Impacto”, do qual vamos falar a seguir. Todos eles são, de alguma forma, a solução que encontraste para mostrar ao mundo que existe muito mais para além das notícias que diariamente nos chegam a casa?
Quando nós narramos uma guerra como jornalistas, nós podemos narrá-la de uma forma proximal ou à distância. Ambas são válidas. Ambas são muito importantes.
Aquela com a qual eu me identifico mais: alguns de nós identificamo-nos mais com a compreensão do impacto direto e na altura sobre a população civil, por um lado, e por outro a verificação da realidade e da convergência entre as declarações políticas à volta dessa guerra e aquilo que acontece efetivamente no terreno.
Ora, nessa altura eu estava a trabalhar com o repórter de imagem Cláudio Calhau e pudemos verificar, sem margem para dúvidas, que não era verdade, que essas armas ainda não tinham sido entregues.
Aliás, em rigor, quando estávamos a retirar-nos da Ucrânia cruzámo-nos no caminho com a entrega das primeiras dessas munições e portanto é importante, é tão importante que os jornalistas, que fazem jornalismo de guerra e não sobre a guerra, tenham essa generosidade, porque acabam por pôr a sua vida diretamente em risco ao tentarem apurar, em rigor, a veracidade daquilo sobre o qual falam ou escrevem.
Mas o livro poderá, de alguma forma, ser uma segunda parte daquilo que tu apresentas diariamente em televisão?
Este livro é uma tentativa que eu espero que toque os leitores no sentido de uma guerra além dos bens materiais que se perdem, além das vidas que se perdem e nos retira aquilo que para mim é mais precioso, que é a subtração da dignidade humana.
Durante mais de 100 dias, das três vezes em que viahou até à Ucrânia, António Mateus percorreu cerca de 40 mil quilómetros, muitos deles na “linha vermelha”, bem na frente de batalha entre ucranianos e russos. Locais onde ser jornalista não é diferente de uma vítima civil ou de um soldado.
Durante quanto tempo estiveste na Ucrânia até à data?
Até à data, nós já estivemos na Ucrânia, eu digo “nós” porque estes trabalhos jornalísticos são sempre com o companheiro repórter de imagem. Nas primeiras rotações, as três primeiras, a que se reporta este livro, estivemos 100 dias, no total, fizemos mais de 40 mil quilómetros e, por opção nossa, sempre próximo ou dentro da linha da frente da linha de combate propriamente dita.
Nós temos em conta que hoje em dia a guerra, se por um lado é mais fácil tecnologicamente cobri-la, por causa da internet ou da ligeireza dos meios que nos permitem registá-la e chegar até aos telespetadores de forma direta, instantânea, por outro lado os nossos telemóveis, por exemplo, são armas de guerra, são usadas como tal. Pois o registo das imagens permite ao inimigo e quem está do outro lado e que pode atingir a zona onde estamos, identificar exatamente onde é que estamos e voltar a flagelar com artilharia ou com atiradores furtivos essas zonas.
Ao controlarmos isso, não distorcemos a realidade daquilo que estamos a reportar, isto é, não nos vinculamos a um lado ou ao outro, o que é extremamente difícil. Isto não é a guerra do Solnado.
Não se pode estar a cobrir uma guerra de um lado e depois saltar para outra, seja qual for a fação.
Ucrânia: uma escolha pessoal
Ir cobrir o conflito do lado ucraniano foi uma decisão pessoal, refere António Mateus. Não porque gosta mais dos ucranianos do que dos russos, mas sim pela liberdade informativa. Lembra que já trabalhou por várias vezes em países onde o controlo era feito por autoridades pró-russas, ou mesmo russas e o que lhe era permitido, enquanto jornalista era extremamente condicionado.
"Eu optei a cobri-la, no que me toca, pelo lado da Ucrânia, eactamente porque ninguém interferia sobre aquilo que eu emitia todos os dias, eu e os meus companheiros de imagem. E isso só nós, nós os dois e mais o fixer (guia local), é que decidimos para onde é que íamos, o que é que fazíamos, qual era o ângulo de abordagem e qual era a reportagem final que metíamos no ar todos os dias".
Mais do que um título chamativo, o nome escolhido por António Mateus para o seu mais recente livro é uma espécie de resumo do que viu, sentiu enquanto ser humano e registou enquanto repórter. Um nome que “todos os dias” faz jus ao que encontrou nesta terra de sonhos desfeitos.
Muitos deles, diziam: nós não saímos daqui porque não queremos. No dia em que o meu marido vier, no dia em que o meu filho vier, eu quero que ele saiba que eu estou aqui. Eu quero que ele saiba onde é que está a nossa casa.
Destreza, segurança e clareza
Durante mais de 100 dias, António Mateus e os vários repórteres de imagem (Cláudio Calhau, João Oliveira, Rodrigo lobo e Sérgio Ramos) que o acompanharam nestas aventuras, deram a conhecer aos portugueses e ao mundo, através dos diretos e reportagens, muito da realidade ucraniana. Mas para estar num cenário de guerra há todo um trabalho prévio, que no terreno se torna fundamental.
Mostro três coisas essenciais ou procuro mostrar três coisas essenciais. Primeiro, que nós que temos experiência de fazer jornalismo em zonas de guerra. Não é à distância sobre a guerra.
Sabemos que é preciso destrezas que não nos são dadas quando temos uma carteira profissional de jornalista.
Percorrer diariamente zonas onde decorrem combates, pressupõe nós termos a noção do que é que são armadilhas de guerra, o que é que são munições por explodir, o que é que põem em perigo as forças de segurança onde nos movemos.
Quando nós estamos em direto - é importante que os jornalistas também mantenham esta noção - a nossa emissão é um óculo que pode ser observado por toda a gente, incluindo quem ataca aquelas zonas.
É verdade. E eu penso que essa [humanidade] é talvez das coisas que me, até hoje jornalista há 40 anos, ainda é a coisa que mais me arrasta de volta para esses sítios.
Não é aquilo que nós dizemos em inglês, os adrenaline junkies, ou seja, os viciados em adrenalina, não é? Não é de maneira nenhuma.
Por exemplo, nós temos nesta altura, na altura em que estamos a gravar este registo, temos uma reportagem nomeadas da RTP para um prémio de Direitos Humanos. Nessa reportagem, sem entrar em pormenores sobre ela, por razões óbvias, foi-nos pedido para nós não fazemos reportagem dentro de um hospital pediátrico que tinha sido bombardeado e imediatamente.
Tanto eu como o repórter de imagem, que me acompanhava nessa altura, obviamente respeitámos sem reservas nenhumas.
Falámos com o diretor clínico do hospital e mesmo tendo ele entendido porque estávamos ali, disse-nos que não aceitava que registássemos imagens. Tinha medo de que o nosso registo fosse de aproveitamento do sofrimento das crianças.
Obviamente isso é uma linha que nunca cruzaremos.
Saímos e estávamos os dois a falar cá fora, ver como é que então, em alternativa, iríamos fazer outra reportagem ou uma reportagem que não envolvesse o expor essa dignidade das crianças. E a certa altura veio uma enfermeira ter connosco dizer-nos: olhem, o senhor diretor está a chamar-vos de volta porque há uma criança, em rigor, um adolescente, que soube que estavam jornalistas estrangeiros aqui, e pediu para falar convosco".
De uma forma educadíssima, o diretor disse: Eu peço-vos só sensibilidade no registo de imagem, porque ele está com agrafos no tronco, está muito exposto.
O jovem com ferros nas pernas, da cirurgia, e eu não sabia qual foi a recolha de imagem que o repórter de imagem, o meu companheiro, fez.
Quando eu vi as imagens que ele tinha feito, eu tive um orgulho enorme, mesmo.
Ele fez todo o registo, quer da entrevista com o rapaz, quer do envolvimento, sem nunca mostrar a cara dele, sem nunca mostrar as coisas mais cruas da operação, mas induzindo na imagem com ternura uma coisa que é associada ao sofrimento. E eu quase arriscaria dizer com poesia no sofrimento.
Se nós não formos a estas zonas, às pessoas, aquilo passa a ser um problema que não existe.
Nesta altura, por exemplo, as pessoas perguntam-me a guerra da Síria já acabou? e eu digo lhes não, ainda está pior. Então porque é que isso desapareceu do foco mediático? Porque vieram outras depois. E é incrível como é que aquele miúdo tem a noção de que se nós não formos ali, até aquela zona, as pessoas deixam de se preocupar.
Este livro é um acordar da urgência, não do desatar dos nós políticos, mas do atar do nó da dignidade humana, porque essa diz nos respeito a todos.
Mais do que um relato num livro, são histórias marcantes e chocantes que ficam gravadas na memoria de António Mateus, como é o exemplo as violações sexuais, em grupo, feitas por militares russos a mulheres ucranianas.
Na linha vermelha de guerra
No mundo da comunicação social, o dever de informar está implícito a qualquer situação e a guerra não é exceção. Mas se é um quase um dever dar a conhecer o que se passa lá fora não é obrigatório mandar um jornalista para situações em que o risco de vida está implícito.
Perigos que alguns jornalistas assumem, não por heroísmo, mas por vontade e vocação de informar melhor a realidades mais escuras, como é o caso de António Mateus.
Andaste na linha da frente de batalha, a chamada linha vermelha, como já referiste, onde sabias que o risco era real. Como é ir para estes locais e o que é que te motiva ir para lá?
Primeiro é ter uma experiência. Desde a minha adolescência, quase, de andar em zonas militares, sinto me perfeitamente confortável, quase como em casa, no meio militar.
Primeiro porque o meu avô era militar. Segundo, o meu pai era militar.
Houve alguma vez em que pensaste é desta? Não vou sair daqui. Como é que é viver isto?
A minha resposta de instinto foi para já e mais uma vez. E por isso, quando eu conto isto à minha família, eles ficam mais serenos.
O meu primeiro instinto foi o meu mano, o repórter de imagem. Ele continuava a filmar, ainda que ainda ficou mais focado, a filmar. Sereno. Justiça e honra lhe seja feita. Ele quis sempre ficar a filmar e a procura dos melhores planos e a zona estava a ser bombardeada.
Pior. Ele, como estava focado a filmar, não se apercebeu de que a zona onde nós estávamos estava uma série de munições que não tinham explodido próximo de nós.
O que é que se ganha na verdade para ir um cenário como este? Dinheiro, prestígio?
Certamente que não, porque as ajudas de custo são praticamente as mesmas que ir fazer um jogo de futebol a Espanha ou França, por dia. Não tenho pejo nenhum em dizê-lo.
Por isso mesmo é tão difícil também eu, muitas vezes, ter companheiros repórteres de imagem que queiram ir, nesse tipo de atividade profissional, porque, como dizem e com razão, isto é uma atividade profissional. E uma atividade profissional é remunerada. Eles não são missionários.
E perguntam-me: Então porque é que tu vais? Eu vou, para já, porque estou em fim de carreira e já tenho 40 anos de jornalismo. Tenho 63 anos e hoje em dia grande parte do meu pagamento, da minha remuneração, da minha gratificação e brio profissional. Graças a Deus, há muitos de nós que nos alimentamos de brio e de solidariedade humana.
Um conflito em que a solução, do ponto de vista do jornalista da RTP. vai sempre arrastar indiscutivelmente para uma quebra de dignidade para uma das partes.
Que solução poderá haver para este conflito?
AM - A solução vai sempre arrastar uma quebra de dignidade para uma das partes e é indiscutível. E porquê a Rússia?
Moscovo, Vladimir Putin, já anexou cinco regiões da Ucrânia. Mesmo a nível legislativo com a aprovação pela ratificação pelo Parlamento. Portanto, a Rússia desistir de tomar o controlo daquilo, sob o ponto de vista jurídico e de face de Putin, está fora de questão. Para Volodymyr Zelensky, isso vir a tornar-se uma situação fixa e a cedência de uma parte substancial do seu território, do território nacional, é uma perda de face e também deselegância perante o seu povo.
Porque a Ucrânia, para defender a recuperação deste território que lhe foi subtraído, já perdeu dezenas de milhares de vidas. Já sofreu a destruição de uma parte substancial das suas infraestruturas, e é dizer ok, em nome da paz nós cedemos o Algarve e o Baixo Alentejo. Se calhar o governo de Lisboa ficaria numa situação intragável perante o eleitorado português. E a mesma situação se passa com Zelensky neste conflito.
Este livro é a tua contribuição na esperança de mostrar ao mundo que a guerra, independentemente de ser na Ucrânia ou no Médio Oriente, apenas serve o propósito de destruição de vidas indiscriminadamente. É assim?
Vão passar dez anos da morte daquele que terá sido, no meu tempo de vida, o líder político mais marcante, que foi Nelson Mandela. E Nelson Mandela trouxe muitas coisas à humanidade não só em termos políticos.
Para mim, a coisa mais importante que ele me legou, nos dez anos que o acompanhei, foi o primado da dignidade.
Estou a falar do quê? A Carta de Direitos do ANC, o partido que está no governo na África do Sul desde 1994, estipulava aquilo que também coincide com a nossa situação em Portugal, que é o valor mais importante é a vida, a vida.
Nelson Mandela, quando chegou a presidente e foi desenhada a nova Constituição sul-africana, depois de grandes debates internos no país, essa hierarquia foi invertida. E foi invertida em benefício do quê? Da dignidade.
Porque o ponto-mestre dele e que vingou é de que não adianta eu estar vivo se não tiver dignidade. Qual é o ponto de eu viver sem dignidade? Eu, António Mateus, não quero estar vivo se não tiver dignidade. E, portanto, este livro é um despertar de dignidade e um despertar da minha sensibilidade para a dignidade dos outros.
Na dignidade não há outro. A dignidade somos nós.
E, portanto, no dia em que os nossos governantes políticos, no dia em que os nossos sistemas educativos nos despertarem a todos para a urgência de valorização da dignidade do outro, aí para mim estamos na pista certa. Enquanto não fizermos isso, andamos cada um a pensar em si e é aquilo a que assistimos.