Antes da independência, quem procurasse ouvir de forma clandestina as emissões radiofónicas de "A Voz da Frelimo [Frente de Libertação de Moçambique]", difundidas a partir da Tanzânia e da Zâmbia, encontraria no seu genérico o hino "Avante Povos Oprimidos", disse à agência Lusa Marco Roque de Freitas, etnomusicólogo da Universidade Nova de Lisboa, autor de "A Construção Sonora de Moçambique".
Este é um dos muitos "hinos revolucionários" criados durante a luta de libertação e no período de transição, 21 dos quais foram registados para a posteridade num vinil duplo, gravados nos estúdios do Rádio Clube de Moçambique cinco dias antes da proclamação da independência, a 25 de junho de 1975, e com o objetivo de serem transmitidos nesse dia.
Estes hinos constituíram o primeiro objeto cultural de Moçambique independente, afirmou o investigador.
Segundo Marco Roque de Freitas, o vinil materializou hinos criados na Tanzânia durante a luta de libertação e outros já desenvolvidos no processo de transição, sendo uma parte de um repertório mais vasto de músicas que tanto eram entoadas nas zonas libertadas da Frelimo e nas bases militares, onde o canto coral fazia parte do quotidiano, como por presos políticos nas suas celas, com as melodias a embalarem alguns guardas do regime colonial e a deixarem outros "irritados".
Apesar de haver alguns hinos com um ritmo marcial que apontavam para o contexto de luta de libertação, as obras publicadas apresentam fortes influências da música religiosa, especificamente a prática coral protestante, afirmou à Lusa o investigador Marco Roque de Freitas, que escreveu um artigo científico em que analisa estas obras.
Não obstante a música religiosa ter sido fortemente ostracizada após a independência -- o primeiro Presidente moçambicano, Samora Machel, chegou a protestar na rádio a passagem de músicas que diziam "Deus isto, Deus aquilo" -, ela está intrinsecamente ligada à paisagem sonora que entoa a luta de libertação.
Para perceber essa relação, segundo Marco Roque de Freitas, é preciso recuar até ao século XIX e à Conferência de Berlim que estipulou o respeito pela liberdade religiosa em África, que levou a um aumento da presença de missões metodistas, episcopais e presbiterianas que já se encontravam em Moçambique.
Segundo o investigador, estes missionários, em particular a missão suíça presbiteriana, criada no final do século XIX, tiveram também um papel na disseminação de princípios de liberdade e igualdade, com Eduardo Mondlane, primeiro presidente da Frelimo, a ter iniciado a sua formação naquela missão.
Para o etnomusicólogo, os chamados hinos revolucionários surgem de uma adaptação e assimilação ao quotidiano moçambicano de repertórios religiosos ensinados nas igrejas.
"Os hinos têm uma matriz completamente religiosa. Se começam a aprender desde pequeninos a olhar para um missal e cantar, rapidamente começam a mimetizar essa experiência musical e adaptam músicas. Em alguns casos, quase que podemos trocar a palavra Frelimo ou Samora Machel por Deus ou Jesus e passa a um hino religioso", disse.
O tipo de coro e a forma como cantam também são em tudo semelhantes às músicas protestantes, sendo a estrutura mais presente a de pergunta-resposta, muito comum nas celebrações católicas.
Se nas missas se diz "Deus está convosco" e se responde "Ele está no meio de nós", no "Hino da Mulher Moçambicana", quando o naipe de baixos pergunta "Quem é?", as restantes vozes respondem: "Aquela que mobiliza e organiza o nosso povo".
Os hinos davam também a entender que a luta não era contra um povo, mas contra um regime, que tinha nomes e figuras, que acabariam memorizadas por quem ouvia aquelas músicas.
Samora Machel Júnior ainda criança, filho do primeiro Presidente moçambicano, estava em Itália e, ao deparar-se com um jovem chamado Caetano, virou-se para ele e questionou-o: "É você que está a matar o nosso povo em Moçambique? Olha, nós vamos matar-te agora".
A história recuperada por Marco Roque de Freitas é contada por Deolinda Guezimane, primeira secretária-geral da Organização da Mulher Moçambicana, que recorda que tiveram de explicar à família do jovem Caetano que as crianças no seu país, por causa das canções revolucionárias, conheciam certos nomes, como Salazar e Marcelo Caetano.
Com uma iliteracia altíssima na altura da independência (93% da população era analfabeta), os hinos eram um reportório que viajava de boca em boca, com a prática de canto coral a transportar os valores promovidos pela frente de libertação, mas também, na transição, a explicar o significado de dias que passariam a ser feriados nacionais -- o início da luta de libertação (25 de setembro), o Dia da Independência (25 de junho) e o Dia da Mulher Moçambicana (07 de abril).
Para a Frelimo, os hinos também ajudavam a marcar a sua narrativa sobre os acontecimentos -- "quase como um jornal" -, como é o caso de "Frelimo a yina mwisho", cantado em língua shimakonde e que denuncia "reacionários", entre os quais, Joana Simeão, Kavandame e Simango, acusados de estarem num complô com as autoridades coloniais, notou o investigador.
Depois da independência, os textos passaram a ser impressos nos jornais e Samora Machel considerava que todos os moçambicanos deveriam saber cantá-los. Aliás, o primeiro Presidente de Moçambique socorria-se de "Ife Ana Frelimo" (um hino não registado no vinil), quando percebia que a atenção do seu público dispersava durante os longos comícios, contou o investigador.
A sua presença pós-independência era tão evidente que até crianças de tenra idade os conheciam.
Uma ex-professora em Moçambique, entrevistada por Marco Roque de Freitas, conta que a sua filha, ainda no infantário, "sabia já os hinos de cor", alguns cantados em línguas locais.
Com a morte de Samora Machel e a entrada no Fundo Monetário Internacional, já em 1987, os hinos passaram a ser prova de sonhos que não se concretizaram e deixaram de ser ensinados na escola ou cantados nas fábricas.
Face à dificuldade de separação entre a Frelimo enquanto movimento de luta e o partido político que emana dele, a relação do povo com os hinos é hoje difícil.
"Aqueles hinos deveriam pertencer a um capital comum, a um histórico comum da libertação do país, mas estão associados à Frelimo partido que, num contexto multipartidário, torna-se complexo", diz Marco Roque de Freitas.
No artigo científico que escreve sobre os hinos, Marco Roque de Freitas recorda que, para alguns moçambicanos, foi nessa transição do socialismo para o capitalismo que o homem novo que se prometia nas músicas morreu.
"Para outros, este nem chegou a nascer, tendo definhado na incubadora das ideias e utopias", concluiu.