Cinquenta anos depois dos últimos trabalhos arqueológicos, os investigadores regressaram ao tholos do Barro, uma construção funerária milenar localizada no município de Torres Vedras, para atualizar conhecimentos e perceber quais as técnicas de construção utilizadas na maior câmara deste género conhecida na Península Ibérica.
"Estes monumentos já são arquiteturas. Podemos dizer que as primeiras estruturas arquitectónicas que aparecem na história da humanidade seguindo cânones são os monumentos megalíticos" explica à RTP Ana Catarina Sousa, professora e investigadora do Centro de Arqueologia (UNIARQ) da FLUL.
O fenómeno do megalitismo - do grego mega, que quer dizer grande e lítico, diz respeito a pedra - pressupõe o uso de grandes blocos de pedras colocadas na vertical que produziam um expressivo impacto visual na paisagem. Os construtores pertenciam a comunidades sedentarizadas que já tinham com uma organização social complexa. Para além da agricultura e da pastorícia, na viragem do quarto para o terceiro milénio a. C., a prática da metalurgia generaliza-se no território português. O uso do cobre - do grego, khalkos - marca um novo periodo da vida comunitária conhecido por Calcolítico. Assiste-se também ao aumento do contacto entre povoados que favoreceram a circulação de ideias e técnicas construtivas que difundiram as marcas megalíticas no território nacional.
Escavação arqueológica dento da câmara funerária | Carla Quirino - RTP
"Os tholos são das últimas construções do megalitismo no centro e sul do território português e surgem essencialmente a partir de 2900 a.C.", sublinha Ana Catarina Sousa, também diretora da escavação. "São estruturas semi enterradas e difíceis de identificar. As plantas são normalmente circulares e o interior - a câmara - é utilizado como um espaço tumular para a comunidade depor os seus mortos. Há cinco mil anos teríamos um montículo, não se sabe se seria de pedras ou materiais perecíveis, mas estaria provavelmente coberto por terra, formando uma falsa cúpula. A câmara onde eram feitas as inumações ficava ocultada por essa espécie de meia laranja. O acesso ao interior era feito por um corredor que, neste caso, tem quatro metros de comprimentos e e seria único espaço que ficaria visível".
"Estas necrópoles coletivas eram muito importantes para as comunidade desta época", explica Daniel van Calker, Mestre em Arqueologia da FLUL. "Refletem os modos de vida e os modos de morte. Porque foram os vivos que construíram para os mortos. Reflete um propósito simbólico que era altamente valorizado por estas comunidades. Havia um investimento na morte. A comunidade unia-se para a construção de uma coisa verdadeiramente eterna, que é uma forma de encarar a morte", sublinha.
A campanha arqueológica
A câmara funerária foi esvaziada em 1909, ano em que o monumento foi identificado pelo Padre Paul Bovier-Lapierre, arqueólogo e pré-historiador francês. A Lapierre juntou-se Felix Alves Pereira, conservador do Museu Etnológico Português (atualmente Museu Nacional de Arqueologia), e concretizaram a primeira escavação. Até hoje não foram encontrados os cadernos de campo que contem os detalhes dos trabalhos iniciais.
Na primeira metade do séc. XX laborou ali uma pedreira que cortou o Monte da Pena do lado sul e oeste, parando a escassos metros da entrada do monumento, deixando uma espécie de promontório calcário onde está implantado o tholos. A subtração das duas vertentes pode ser uma das possiveis explicações para a ausência dos restantes blocos de pedra da construção. Do lado Este, a abertura de uma estrada no início do séc. XX, também afetou parte da ocupação humana naquele cabeço.
Maquete exposta no Museu Municipal Leonel Trindade. Uma das diversas interpretações do monumento que surgiram no séc. XX | Carla Quirino - RTP
A última vez que arqueólogos estudaram o sítio foi em 1971. Esses estudos debruçaram-se apenas numa pequena área exterior ao monumento onde foi identificada uma ocupação da Idade do Bronze, ou seja, mil anos depois da construção megalítica, havia uma nova comunidade humana a utilizar a elevação.
O regresso ao terreno, 50 anos depois, trouxe os arqueólogos munidos não só de colherins, pás, picos e baldes, mas também de drones. André Texugo, bolseiro de doutoramento da FCT em Arqueologia, empenhou-se na realização de um levantamento fotogramétrico, técnica que cruza dados e imagens obtidas pelos registos aéreos com informação topográfica georeferenciada para desenvolver modelos digitais de alta precisão dos objetos de estudo.
"Se o sítio arqueológico for tapado ou na impossibilidade de deslocação, por exemplo, esta tecnologia é uma ferramenta poderosa para (re)visitar o tholos, (re)analisar a estrutura ou ensaiar possiveis hipóteses construtivas, permitindo novas interpretações. Conseguimos saber exatamente a posição de determinada pedra ou cerâmica através da leitura de pontos no terreno referenciados com GPS. Conseguimos também obter a representação dessas pedras, tal e qual a realidade, contribuindo para o registo de plantas do monumento com uma precisão centimétrica" destaca André Texugo. "Os vários modelos 3D do tholos permitem reconstituir as diferentes etapas da escavação. É como se pudessemos voltar a escavar tridimensionalmente", acrescenta André Texugo.
Modelo digital de superfície | André Texugo
Para além do registo rigoroso do sítio, a escavação revelou novidades sobre o monumento e a área envolvente.
Nos últimos dias da campanha arqueológica foi identificado o buraco na área central da câmara onde encaixaria um poste de sustentação da falsa cúpula. "Este buraco de poste, de planta retangular, poderia ser acompanhado por mais buracos que segurariam postes secundários de sustentação. Mas esses ainda não foram encontrados", diz Ana Catarina Sousa, que sublinha: "Este dado ajuda a clarificar o processo construtivo".
O corredor, lugar de passagem para colocação dos mortos, não tinha registos conhecidos de qualquer intervenção. "As últimas inumações eram normalmente feitas no corredor, depois da câmara ter sido usada intensamente e já não ter espaço. Era a última parte a ser utilizada para fins funerários", explica a professora.
Foi precisamente nessa área que Cátia Delicado, bolseira de doutoramento da UNIARQ/CIAS (Centro de Investigação de Antropologia e Saúde), encontrou inúmeros dentes e diversos fragmentos de osso. "É importante estudar estes restos humanos porque podemos obter muitas informações sobre as comunidades aqui sepultadas. Por exemplo os dentes erodidos podem ser indicadores de uma alimentação à base de cereais".
Estes materiais seguem agora para laboratório. Serão datados por radiocarbono para estabelecer uma cronologia mais precisa da utilização da estrutura funerária.
Ana Catarina Sousa destaca um fragmento de copo em osso decorado com uma linha sob a gola, encontrado na área. Este tipo de artefacto votivo "é característico da Estremadura portuguesa e está associado à primeira metade do terceiro milénio, entre 2900-2500 a.C.. É um indicador do período Calcolítico".
Fragmento de um copinho produzido a partir de um osso longo de vaca. Destaca-se a decoração sob o bordo | Carla Quirino - RTP
Durante esta campanha, foi encontrada a estrutura de contenção do monumento feita com grandes blocos de pedra formando anéis em torno da câmara, onde assentaria a cobertura do tholos, conhecida por mamoa.
Fora do momento megalítico, foram identificadas novas áreas associadas a uma ocupação posterior, com cerâmicas da Idade do Bronze, mas ainda é cedo para perceber que tipo de utilização aconteceu naquele período.
Investigar, conservar, valorizar
O arranque da campanha arqueológica de 2021 surge na sequência "das visitas guiadas que o serviço educativo do museu faz aqui com os alunos", explica à RTP Isabel de Luna, arqueóloga e conservadora do Museu Municipal Leonel Trindade (MMLT). "Apercebemo-nos de que esta área tinha fragilidades em termos de segurança, por causa da falésia deixada pelos trabalhos da pedreira, a sul do tholos. Entendeu-se que deveria ser colocada uma vedação para segurança do público e para impedir a circulação de veículos motorizados que podem causar danos à estação arqueológica. Também queremos erguer uma placa que explique ao público o que é este sítio".
Para intervir na área do monumento megalítico, a Direção Geral do Património Cultural exigiu um estudo prévio do imóvel com a caracterização do tholos.
"O monumento já sofreu bastantes derrocadas e isso é um alerta para encontrarmos soluções para estabilizar a estrutura", salienta ainda Ana Catarina Sousa, acrescentando que documentar o estado de conservação do monumento também foi um dos objetivos da campanha.
"Há um projeto de valorização que decorre a par da investigação arqueológica. Agora que se retirou a vegetação, a estrutura fica mais exposta, fica mais fragilizada" sublinha Isabel de Luna, que também dirige a campanha arqueológica. "Esta e as futuras intervenções têm que corresponder a um projeto integrado de conservação e consolidação da estrutura para colocar o monumento visitável. Por exemplo, criar plataformas para as pessoas poderem fazer visitas sem danificar a estação arqueológica".
Machados em liga de cobre associados ao período Calcolítico, MMLT | Carla Quirino - RTP
O espólio exumado do tholos e da área envolvente reparte-se pelo Museu Nacional de Arqueologia e o MMLT.
O tholos do Barro está classificado como Monumento Nacional desde 1910.