Um armazém secreto contém mais de seis mil fragmentos de madeiras calcinadas de Notre-Dame. Alguns têm centímetros, outros ultrapassam a meia dúzia de metros de comprimento, todos provenientes do incêndio de 2019. A análise destes destroços por parte de especialistas de arqueobotânica faz parte de um amplo projeto de investigação que ajudou a reconstruir a catedral parisiense, reaberta neste início de dezembro.
Os investigadores garantem que os destroços da famosa catedral do século XII são testemunhos valiosos do passado e dão algumas respostas sobre o clima medieval, a origem das madeiras e os trabalhos de carpintaria da época.
Embora Notre-Dame se tenha tornado um símbolo de França, os investigadores dizem que pouco se sabe do ofício da madeira e de onde provinha o fornecimento das árvores para as obras na época.
Embora Notre-Dame se tenha tornado um símbolo de França, os investigadores dizem que pouco se sabe do ofício da madeira e de onde provinha o fornecimento das árvores para as obras na época.
Com o incêndio a 15 de abril de 2019, a história da estrutura medieval com mais de 800 anos quase desapareceu, mas os investigadores Alexa Dufraisse e Thanh-Thuy Nguyen Tu, do Centro Nacional de Investigação Científica de França (CNRS), embrenharam-se nas cinzas e no que restava da madeira medieval para conhecer os seus segredos.
E como é que o desastre patrimonial como o incêndio de 2019 em Notre-Dame permite contribuir para o conhecimento sobre a construção, recursos ou clima do séc. XII?
Uma vez que as vigas calcinadas já não podiam ser reutilizadas para a reconstrução do monumento, foi decidido que seriam disponibilizadas à comunidade científica, tornando-se assim uma fonte excepcional de informação, "um verdadeiro arquivo material e patrimonial", destacam os investigadores.
Estes especialistas integram o grupo de trabalho Bois et Charpente (Madeiras e Estruturas) lançado por ocasião do projeto científico liderado pelo CNRS e pelo Ministério da Cultura, logo após o desastre. Tinha, em grande medida, “o objetivo de aprender mais sobre a composição da madeira que data dos tempos medievais, de modo a identificar a sua origem, da qual muito pouca informação está disponível”, argumentam.
Dufraisse explica que a “estrutura da catedral foi muito danificado. Quase todos os pedaços de madeira foram fragmentados ou queimados”.
O trabalho decorre num armazém, em lugar não revelado, que guarda mais de seis mil fragmentos de madeiras calcinadas. Uns podem ter alguns centímetros, enquanto outros, cerca de seis metros de comprimento ou mais.
A origem das madeiras
Nguyen Tu e Dufraisse, em entrevista a uma publicação da Universidade de Sorbonne, argumentam que “na ausência de arquivos textuais procuram dados examinando a composição desses pedaços de madeira”.
“Analisámos as árvores exploradas que tinham uma morfologia de 50 centímetros de diâmetro, 25 metros de altura, vigas de 25 a 30 centímetros por 25 a 30 centímetros e sete a 15 metros de comprimento. Também explorámos o ADN dessas árvores. Apesar do aumento da temperatura causada pelas chamas, a assinatura química da madeira não foi alterada. Esses dados iniciais permitiram-nos começar a identificar possíveis formas da sua origem geográfica”, sublinham.
Das mais de 2.600 peças datadas, concluíram que pelo menos um quarto remonta à Idade Média e a maioria aponta ser do século XIX, referente um grande projeto de restauração da catedral da época.
Investigação. Gravação arqueológica de madeira carbonizada: descrição, esboço, grau de carbonização, fotografias e atribuição cronológica plausível | Alexa Dufraisse - Ministério da Cultura
Dufraisse alega que esta “é uma tarefa a muito longo prazo” e ainda não foi possível confirmar a origem das árvores. “Até agora, conseguimos estudar apenas a assinatura química de 40 peças de madeira. Mas esses resultados iniciais tornaram possível identificar várias respostas. Primeiro, a de considerar que a madeira não viria da bacia parisiense”.
Nguyen Tu acrescenta que “havia sinais de flutuação nos pedaços de madeira, destacando um resíduo de montagem que pode sugerir que essa peça ou tronco tenha sido transportado por via navegável. Além disso, o estudo sobre o registo químico dos primeiros 40 pedaços de madeira mostrou que as árvores cresceram em solo argiloso, o que efetivamente excluiu certas áreas geográficas, como o Marne ou o Champagne. Desta forma, para já, é impossível definir uma origem geográfica com precisão”.
"Os barcos podem ter trazido a madeira ao longo do Sena de mais longe. Os solos contêm níveis de estrôncio e isótopos de neodímio que variam de região para região, mas permanecem constantes ao longo dos séculos - especialmente nas profundezas e são aproveitadas pelas raízes dos carvalhos. E ao mapear estes locais aproximamo-nos das possiveis origens", explica o cientista.
Para os investigadores, “estas pistas geográficas associadas às características morfológicas das madeiras exploradas no período medieval também dão mais respostas sobre como as florestas foram manejadas durante esse período histórico e como a economia, circulação e comércio de madeira estavam a ocorrer”. E sublinham: “Estes são dados históricos valiosos”.
Madeira como Arquivo do Clima
Notre-Dame começou a ser construída por volta de 1160 durante o reinado de Luís VII, mas atravessou o final do século XII e início do século XIII. É dedicada à Virgem Maria e está situada na Île de la Citè, em Paris, rodeada pelas águas do Rio Sena.
Madeira como Arquivo do Clima
Notre-Dame começou a ser construída por volta de 1160 durante o reinado de Luís VII, mas atravessou o final do século XII e início do século XIII. É dedicada à Virgem Maria e está situada na Île de la Citè, em Paris, rodeada pelas águas do Rio Sena.
O seu telhado e o grande pináculo eram apoiados numa estrutura complexa de vigas de carvalho conhecida por “floresta”,
por causa do grande número de troncos necessárias para a instalação. Estima-se que foram necessários 800 ou mesmo mil carvalhos para construir a cobertura.
Entre os destroços estão fragmentos parcialmente queimados capazes de fornecer dados de dendrologia. Este estudo analiza “cada anel do tronco que reflete um ano de crescimento, com a largura, densidade e composição isotópica onde foram conservados detalhes sobre a temperatura, precipitação e eventos climáticos”.
Sabe-se então que “os carvalhos de Notre-Dame cresceram entre os séculos XI e XIII e os anéis das árvores das madeiras da catedral revelam o registo das condições climáticas medievais”. Ocorria um período de clima quente conhecido por “Anomalia Climática Medieval”, ou “Período Quente Medieval”.
A cientista aponta algumas razões para o “Período Quente” como a existência de atividade solar, erupções vulcânicas e dinâmica atmosférica natural.
Embora as madeiras em Notre-Dame tenham atingido temperaturas até 1.200ºC no incêndio, foi possivel preservarem alguns dados isotópicos. Assim, os “arquivos naturais” apresentaram-se “inestimáveis para a reconstrução de climas pré-industriais”.
“Os padrões de crescimento nos carvalhos de Notre-Dame, combinados com análises isotópicas, revelam não apenas as flutuações climáticas, mas também detalhes sobre a sociedade parisiense, práticas florestais e técnicas de construção medieval", afirmam. Cruzar os dados químicos dos solos, entender a evolução da fertilidade desses mesmos solos e conjugando com informações desta floresta arqueológica é uma abordagem nova neste estudo.
A seção transversal da madeira de carvalho arqueológico, mais ou menos carbonizada ao redor das bordas, revelando os anéis de crescimento anuais | Alexa Dufraisse - Universidade da Sorbonne, Ministério da Cultura
As madeiras de Notre-Dame acabam por vir dar informações raras permitido os cientistas interpretarem que o crescimento destes carvalhos aproveitaram o periodo quente da “Anomalia do Clima Medieval”.
Nos próximos anos, o somatório dessas calibrações, permitirão que os cientistas “corrijam” os valores isotópicos, rastreando assim a variabilidade climática natural durante o extenso período de construção de Notre-Dame, sublinha Dufraisse.
Analisar a "floresta"
A estrutura de carvalho de Notre-Dame de Paris é "uma das maiores obras-primas da carpintaria gótica da França", dizem os especialistas. E analisar a “floresta” é como viajar no tempo e devolver parte da sua herança e conhecimento ao público, acrescentam.
A “floresta” da Notre Dame é um "marco muito importante na história do design de estruturas. Algumas das suas disposições estruturais únicas são consideradas as mais avançadas do seu tempo", destacam os cientistas.
A forma das vigas intriga a equipa de especialistas da madeira.
Os troncos longos e estreitos podem indicar que os carvalhos "cresceram num ambiente denso e competitivo", diz Dufraisse. Isso "sustenta a hipótese da "silvicultura", a ideia de que as árvores foram propositadamente reservadas ou cultivadas para a catedral. E a idade em corte – cerca de 100 anos – sugere que as pessoas estavam a planear a Notre Dame já há várias gerações, antes do início da construção", aponta a investigadora.
Emmanuel Maurin, cientista de madeira, investiga também as marcas dos construtores nas vigas de apoio do telhado. Para este especialista, as madeiras teriam sido trabalhadas no solo e depois acompanhadas por instruções para uma montagem precisa. Eram depois encaixadas de forma rigorosa por homens que trabalhariam a mais de 30 metros acima do chão. “Era uma espécie de IKEA da Idade Média”, remata.
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