Sebastião Salgado: o Homem pode ser sal da terra

por Andreia Martins, RTP
Pedro A. Pina, RTP Online

No mesmo dia em que a Cordoaria Nacional, em Lisboa, recebe Génesis, Sebastião Salgado conta a viagem pessoal e os trabalhos que lhe traçaram uma carreira de sucesso no filme O Sal da Terra. O fotógrafo brasileiro tem hoje o unânime reconhecimento internacional pela publicação de trabalhos e divulgação nas galerias e museus mais prestigiados do mundo.

O Sal da Terra (The Salt of the Earth, 2014), realizado por Wim Wenders e Juliano Salgado, filho de Sebastião Salgado, já estivera em Portugal. Antes de chegar esta quinta-feira às várias salas de cinema, a película havia encerrado o festival PortoPostDoc, em dezembro do ano passado. 

O filme (distribuído em Portugal pela Midas Filmes) percorre os mais de 40 anos de carreira de Sebastião Salgado como fotógrafo. Esteve entre os nomeados deste ano para o Óscar de Melhor Documentário. Venceu um prémio César de Melhor Documentário (equivalente ao Óscar da Academia em França) e foi galardoado com uma menção especial do júri no Festival de Cannes, na seção Um Certain Regard, em maio de 2014. 

Os primeiros segundos do filme, numa mina de ouro do Brasil, em Serra Pelada, não ocorrem ao acaso. É a metáfora da loucura pelo enriquecimento e poder, que acompanhou a história da humanidade desde a construção das pirâmides do Egito até à Torre de Babel.

Nas escadas íngremes onde mais de 50 mil homens de todos os estratos sociais se arriscam numa total escravatura pelo ouro, Sebastião Salgado é tão louco quanto eles e também arrisca a vida a percorrê-las para as fotografar. É um homem camaleão, camuflável. Convive com as tribos isoladas do México, embrenha-se em comunidades da Amazónia ou Papua Nova-Guiné e arrasta-se nos planaltos da Sibéria para alcançar a fotografia imaginada. De máquina em punho, Salgado transforma-se em figura romântica, defensor dos oprimidos e injustiçados. 

Para além de um “fotógrafo admirável”, o filme retrata um “aventureiro”, como o carateriza Wim Wenders, co-realizador que começa por nos narrar a história. O cineasta alemão, mais conhecido pelos trabalhos As Asas do Desejo (1987), Paris, Texas (1984), Buena Vista Social Club (1999), Pina (2011) ou ainda Lisbon Story ou Viagem a Lisboa (1994), deparou-se acidentalmente com o trabalho de Sebastião Salgado e quis aprofundar a leitura dos retratos e cenários enigmáticos que tanto o haviam perturbado.
“Enviado pelos céus para nos observar” 

Predominantemente a preto e branco e com os discursos e explicações que vão saltando entre o francês, inglês e português, assinala-se a transparência e simplicidade com que Wim Wenders e Juliano Salgado conceberam a montagem do filme. Somos levados a alternar entre bastidores e cena concreta, filmamos o fotógrafo que nos retrata em retaliação numa dança onde ninguém se deixa protagonizar em proveito de um bem maior. 

A banda sonora de Laurent Petitgand, compositor habituado a acompanhar as imagens de Wenders, eleva a musicalidade e ritmo épico das imagens estáticas, mas que explicadas e segmentadas entre si, parecem tomar vida. 

Familiarizamo-nos com o Sebastião antes da fotografia, vindo de uma família humilde. O Rio Doce, em Matogrosso, perto da localidade onde Sebastião Salgado nasceu e “aprendeu a olhar”, ocupa o lugar de centro do mundo.

Wim Wenders e Sebastião Salgado

“Muito malandro para estudar”, ligado aos movimentos políticos e sociais do início dos anos 60, contra a ditadura militar então vigente no Brasil. Especializou-se na área da economia com distinção e teria à sua espera uma promissora carreira no Banco Mundial. Mas a arte de fotografar surgiria no exílio, em Paris, e viria a tornar-se mais apelativa do que os relatórios que trazia das primeiras viagens a África, enquanto economista da Organização Mundial do Café.
 
A nova vocação enquanto fotógrafo levou-o a abandonar por completo a carreira pela qual estudar. Colaborou para jornais e revistas, aprendendo a arte e o engenho de fotografar, e aguçando o traço pessoal que se tornaria tão característico e irreconhecível. O primeiro trabalho de grande fôlego, Outras Américas (1977- 1984), levaria o fotógrafo de volta à América Latina, então fértil em grandes tumultos sociais. 

Conviveu com as comunidades rurais mais isoladas que viriam a marcar o trabalho das décadas seguintes. Numa das longas viagens, conheceu um camponês que lhe confessava com toda a seriedade: “Sebastião, eu sei que foste enviado pelos céus para nos observar”.
Êxodos

A este primeiro trabalho segue-se Sahel – O fim do caminho (1984 – 1986), onde o fotógrafo trabalha próximo dos Médicos Sem Fronteiras nas regiões migratórias em conflito entre a Etiópia e o Sudão. A fraqueza e debilidade dos corpos irreconhecíveis e os erros das organizações internacionais nas questões logísticas custam vidas e levam ao extremo a fome e sofrimento humanos. Sem conseguir escapar aos tumultos políticos e temporais de cada região, Sebastião Salgado avança ainda durante os anos 80 o projeto Workers (1986 – 1991), uma homenagem à humanidade e à máquina, aos homens e mulheres de vários setores que alteram o mundo em sentido prático. 

A Guerra do Golfo acaba por marcar inevitavelmente todo o trabalho, com o incidente dos incêndios dos poços de petróleo por Saddam Hussein, trabalho impressionante numa mise en scène abertamente apocalíptica. O jornalista alemão Peter Sager, de Die Ziet, atribui às fotografias “o estatuto elegíaco que, deriva do próprio tema, mas também da forma como é apresentado. (As imagens) narram histórias bíblicas, e Salgado cita-as com a paixão de um defensor da Teologia da Libertação de orientação marxista”. 

Mas foi no Ruanda, já a trabalhar num outro projeto dedicado à população em migração, Êxodos (1993 – 1999), que Salgado chega ao íntimo da insanidade e brutalidade humanas. 

As brutais repressões étnicas que assolaram a região em 1994 provocaram uma crise humanitária nos países vizinhos a proporções que ainda hoje desconhecemos na totalidade. A feroz repressão, o genocídio e limpeza étinca mergulhou o Ruanda e os países o rodeavam numa catástrofe. Também na Europa, as atrocidades na guerra e desintegração da Jugulslávia eram a prova de que “a violência e brutalidade não são monopólio de estrangeiros longínquos”. 

Na Europa Moderna e civilizada, em países com níveis intelectuais e monetários de europeus, a loucura dos homens conduziu a autênticos massacres, mesmo na reta final do século XX. Na brutalidade e agressividade das imagens de corpos amontoados nas estradas, ou nos corpos de magreza extrema cuja vida temos dificuldade em encontrar, compreendemos e somos levados a concordar com Salgado.
“Não merecemos viver”
 
O homem é um animal terrível, feroz, que não merece viver. A força das imagens de Salgado, principalmente em Sahem e Êxodos, remetem para o imaginário comum de uma calamidade que pensávamos ter ficado na década de 40 do século XX. A imagética do Holocausto e dos campos de concentração é ativada com a magreza extrema dos corpos deteriorados pela loucura humana no deserto da Etiópia, ou pelas imagens no comboio das Nações Unidas que levava os refugiados fugitivos que receavam o regresso ao Ruanda e preferiram as densas florestas do Congo, um total de 250 mil foragidos deixados ao seu próprio destino e que acabaram por morrer de fome, doença ou loucura. 

Salgado não tenta sequer pautar-se pela objetividade e imparcialidade na mera reprodução do real que presenceia. É precisamente o contrário de tudo o isso. As imagens espelham a emoção e a revolta perante a Humanidade em tais cenários de desolação. Depois de testemunhar a doença e a podridão da própria espécie, Salgado mergulhou ele próprio numa crise de profunda descrença total: “Deixei de acreditar na salvação para a espécie humana. Não merecemos viver”. 

O período de crise e interrupção no trabalho restituiu a esperança, ao ver o baldio em que se tinha tornado a fazenda da infância, num ecossistema inteiramente novo, revigorado, de onde nasceu também o projeto Instituto Terra. Se a ideia de replantar toda a Mata Atlântica e de revigorar o ecossistema numa terra de seca e erosão tornou-se no refúgio da família. A terra sarou o desespero de Salgado 

E a Natureza voltou a chamar pelo seu génio fotográfico. Salgado aventurar-se-ia então numa viagem de oito anos pelos locais do mundo que o homem ainda não destruiu, património que permanece praticamente inalterável desde o tempo do Génesis (2004-2013). É um tempo de reflexão, de imbuição total na natureza: “Faço tanto parte da natureza como uma tartaruga. como uma árvore, como um seixo”. Génesis tem a capacidade de mostrar a beleza imensurável da Terra e de fazer acreditar novamente, tal como Salgado. O pessimismo perante a espécie humana, a escória do planeta que o destrói e manipula, e que mede a sua História pela sequência de guerras, é anulado. 

Tal como na vida e carreira do fotógrafo brasileiro, também na película que o retrata as palavras de Lélia fazem mexer a engrenagem dos conceitos e mensagens que podemos compreender. A inferioridade do homem é ultrapassada pelo poder da ideia, da intervenção, da reflorestação. Para o caso, da atuação decisiva num ciclo da vida que ultrapassa em muito o nosso. A ideia de Lélia parecia absurda, mas foi o sal da terra que semeou Génesis e o regresso de Salgado à fotografia.
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