Reescrever a Idade do Ferro? Achados na Índia fazem recuar esta metalurgia mais de mil anos

por Carla Quirino - RTP
Objetos de ferro que remontam a mais de cinco mil anos encontrados em Tamil Nadu, dizem os investigadores dos sítios arqueológicos Departamento de Arqueologia de Tamil Nadu

As escavações recentes na região indiana de Tamil Nadu encontraram diversos materiais arqueológicos forjados em ferro que apontam terem sido produzidos há mais de quatro mil anos. Até aqui as primeiras marcas cronológicas consideradas para a Idade do Ferro pela comunidade científica situavam-se pelos 1300 a.C., momento em que a tecnologia terá sido difundida a partir de territórios da atual Turquia, há cerca de 3300 anos. Estas descobertas em áreas funerárias no sul da Índia acendem o debate entre arqueólogos sobre as cronologias das provas materiais desta metalurgia.

As últimas descobertas em Adichchanallur, Sivagalai, Mayiladumparai, Kilnamandi, Mangadu e Thelunganur, na região sul da Índia podem fazer recuar as datas para as primeiras produções em ferro em mais de 1.500 anos.

Nos seis locais arqueológicos indianos em Tamil Nadu, os arqueólogos escavaram várias áreas de enterramentos e descobriram objetos de ferro que remontam a 2953-3345 a.C., correspondendo a cinco mil a 5.400 anos de idade. Entre esses materiais estavam espadas de enxada, lanças, facas, pontas de flechas, cinzéis, machados e espadas feitas de ferro.

Estas evidências sugerem que o processo de extração, fundição, forja e modelagem de ferro para criar ferramentas, armas e outros materiais pode ter-se desenvolvido de forma independente no subcontinente indiano, muito antes da data atribuída a essa tecnologia.

É considerado unânime, entre a comunidade arqueológica, que as sociedades começaram a usar e produzir amplamente o ferro, fazendo ferramentas, armas e infraestrutura, a partir do fim do II milénio antes de Cristo. 

O ponto de partida teria sido na Anatólia, atual Turquia, há 3.300 anos (1300 a.C.). O uso do ferro terá sido desenvolvido pelos hititas, uma antiga civilização instalada nessa região (Anatólia central) há cerca de 1600–1178 a.C.

Já em território atualmente português, até ao momento, a presença de materiais em ferro figura a partir do séc. VIII a.C.
Dezenas de objetos em ferro encontrados em sepulturas
A maioria dos locais em Tamil Nadu onde os materiais em ferro foram encontrados são antigas áreas de habitação com oficinas e zonas de sepultamento, perto de núcleos urbanos atuais.

Os arqueólogos K Rajan e R. Sivanantham dizem que os trabalhos em curso, até agora, exploraram “uma parcela de mais de três mil sepulturas identificadas da Idade do Ferro contendo sarcófagos (caixões de pedra) e uma riqueza de artefatos de ferro”.

Os enterramentos escavados revelaram mais de 85 objetos de ferro - facas, ponta de flecha, anéis, cinzéis, machados e espadas - dentro e fora das urnas funerárias.

Uma sepultura da Idade do Ferro encontrada no local da escavação de Kilnamandi | Departamento de Arqueologia de Tamil Nadu

Entretanto mais de “20 amostras-chave” foram investigadas e datadas em cinco laboratórios em todo o mundo, confirmando sua antiguidade, descrevem os cientistas
Antiguidade do Ferro: Recente Datas de Radiometria de Tamil Nadu
Num relatório do Departamento de Arqueologia do Estado de Tamil Nadu divulgado recentemente pelo Ministro-Chefe de Tamil Nadu, M.K. Stalin apresenta a investigação relativa às datas de Radiometria destes achados e sugere que esta Estado indiano está entre os primeiros lugares do planeta onde o ferro fundido foi usado.

Ferro fundido e sem níquel

A análise de composição preliminar de fluorescência de raios X (XRF) sobre achados de ferro escavados em sítios arqueológicos como Mayiladumparai, Sivagalai e Adichanallur em Tamil Nadu não mostrou quantidades significativas de níquel, indicando que são todos de ferro fundido.

Ou seja, a caracterização da Idade do Ferro em Tamil Nadu é definida pela adoção de ferro fundido em vez de ferro meteorítico ou “ferro do céu” (proveniente de meteoritos) como acontece da Anatólia. Este “ferro do céu” é identificável devido ao alto teor de níquel na composição. Contam-se entre os exemplos, as pequenas contas egípcias feitas de ferro meteorítico associadas ao meteorito Gebel Kamil, que atingiu o Egito depois de 3.000 a.C., deixando para trás uma cratera contendo milhares de fragmentos desse tipo de ferro.

Desta forma, identificado o ferro sem níquel nos objetos destes sítios arqueológicos sugere que este minério deve ter sido fundido num forno a temperaturas extremamente altas para extrair o metal. Sabe-se que, sem este processo, o ferro cru permaneceria dentro da rocha. Assim, após a extração via processos precisos de alta temperatura, os ferreiros qualificados da época moldariam o metal em ferramentas, marcando um passo crucial na metalurgia do ferro.

Comunidades com conhecimento avançado

O historiador Osmund Bopearachchi, do Centro Nacional Francês de investigação Científica, com sede em Paris, observa que "os primeiros sinais de produção de ferro datam do século 13 a.C. na atual Turquia. Mas agora, estas datas radiométricas provenientes da Índia parecem provar que as amostras de Tamil Nadu são anteriores”.

E para isso acontecer Oishi Roy acrescenta que o “ferro produzido inicialmente em Tamil Nadu indica que as pessoas de lá que eram produtores de ferro, e não seriam apenas os utilizadores – seria uma comunidade tecnologicamente avançada" face a outros sítios.

Os arqueólogos também sublinham que no local chamado Kodumanal, os trabalhos encontraram um forno, apontando para uma comunidade desenvolvida no fabrico de ferro. A área do forno destacou-se devido apresentar “uma descoloração branca, provavelmente de calor extremo”.

Foram também encontradas “escórias de ferro - algumas delas fundidas na parede do forno” - sugerindo técnicas avançadas de metalurgia.

Restos de um forno de fundição de ferro no sítio de Kodumanal | Departamento de Arqueologia de Tamil Nadu

Datação de materiais associados

A datação por radiocarbono, particularmente a AMS (Accelerator Mass Spectrometry), foi usada para analisar o carvão e materiais orgânicos de urnas funerárias e áreas domésticas associados aos testemunhos de ferro.

As amostras dos sítios como Sivagalai e Adichanallur foram enviadas para a Beta Analytic, um laboratório internacional de renome, para datação precisa, explica o estudo.

Alguns dos resultados das amostras apontam para a existência de carvão, arroz e milho miúdo associadas a alguns enterramentos e definem intervalos de tempo com datas confiáveis até 3000 a.C..  Uma amostra de carvão vegetal deu uma probabilidade de 95,4% das datas de 3519 a 3371 a.C.. Outro carvão vegetal associado a uma das urnas deu datas calibradas de 3243-3102 a.C.
Possível justificação para o uso precode do ferro

Para os investigadores, as comunidades locais, durante essa época antiga, para além da mineração do ferro, processavam-no e produziam objetos.

Ao alargarem o estudo sobre a presença da metalurgia do ferro, para além de Tamil Nadu, pelo menos, mais 27 locais em oito estados revelaram evidências de uso “precoce de ferro”. “Alguns apontam datas de 4.200 anos atrás. As mais recentes escavações de Tamil Nadu empurram a antiguidade do ferro indiano 400 anos ainda mais para o passado”, explicam os arqueólogos K. Rajan e R. Sivanantham, autores do estudo.

“A Idade do Ferro é uma mudança tecnológica, não um evento de origem única – ela desenvolve-se em vários lugares de forma independente”, argumenta Oishi Roy, arqueólogo do ISSER, observando descobertas anteriores no leste, oeste e norte da índia.

“O que está claro agora”, acrescenta “é que a tecnologia de ferro indígena ter-se-á desenvolvido no início do subcontinente indiano”.

Perspetiva aérea das sepulturas da Idade do Ferro em Mayiladumparai em Tamil Nadu | Departamento de Arqueologia de Tamil Nadu

Embora a tecnologia da metalurgia não tenha acontecido ao mesmo tempo no mundo conhecido, o esquema das idades dos metais, grosso ao modo distribuem-se pela Idade de Cobre (III milénio a.C.), segue-se a Idade do Bronze (II milénio a.C.) com a liga cobre-estanho, momentos que precedem a Idade do Ferro (I milénio). A fundição de cobre é alcançada a temperaturas mais baixas e é um processo relativamente mais fácil que o trabalho em ferro. Em Tamil Nadu, não há muita evidência para o conhecimento prévio da produção de cobre-bronze.

Desta forma, os investigadores colocam a teoria que os “metalúrgicos migrantes das partes do noroeste do subcontinente indiano podem ter se mudado para Tamil Nadu e tentado experimentar com minérios de ferro locais facilmente disponíveis na ausência de minérios de cobre, desenvolvendo assim a fundição de ferro”.

O estudo defende que “a Idade do Cobre do Norte da Índia e a Idade do Ferro do Sul da Índia são provavelmente contemporâneas”. Realça ainda que ausência de níquel nos artefatos de ferro pode confirmar que a matéria prima foi fundida a partir de rochas terrestres e não de meteoritos, sustentando ainda mais o uso precoce de ferro.
Debate aberto
“A descoberta é de uma importância tão grande que levará mais algum tempo antes que as suas implicações sejam devidamente compreendidas”, afirma Dilip Kumar Chakrabarti, professor de arqueologia do sul da Ásia na Universidade de Cambridge.

Parth R Chauhan, professor de arqueologia do Instituto Indiano de Educação e Investigação Científica (ISSER), adverte para se ter cautela antes de tirar conclusões mais amplas. Chauhan, citado na BBC, acredita que a tecnologia de ferro provavelmente emergiu “independentemente em várias regiões”.

Acrescenta que a "evidência mais precoce permanece incerta porque muitas regiões do mundo não foram devidamente investigadas ou as evidências arqueológicas que são conhecidas, não foram datadas de forma adequada".

Se a descoberta de Tamil Nadu tiver maior validação por via de um rigoroso estudo académico, “certamente estaremos entre os primeiros registos do mundo” alega Chauhan. Já Oishi Roy defende que a descoberta “sugere desenvolvimentos paralelos [na produção de ferro] em diferentes partes do mundo”.

Embora alguns especialistas observem que as escavações em Tamil Nadu podem remodelar “a compreensão da Idade do Ferro e da fundição de ferro no subcontinente indiano” para Katragadda Paddayya, arqueóloga indiana, estes novos dados são "apenas o ponto de partida".

“Precisamos de aprofundar as origens da tecnologia de ferro. Essas descobertas marcam o início, não a conclusão. A chave é usar isso como premissa, rastrear o processo de trás para frente e identificar os locais onde a produção de ferro realmente começou”, sublinha.

Aguarda-se então mais investigações na área da arqueometalurgia para melhor sustentar tais proezas.
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