O enigma da orelha perdida de Van Gogh

por RTP
Artista chinês, reproduzindo o famoso autoretrato de van Gogh, com a orelha cortada Jason Lee, Reuters

É certamente insólito comemorar, como efeméride, a amputação de uma orelha. Completam-se agora 125 anos e o caso teria há muito caído no esquecimento se nele não estivessem envolvidos dois dos maiores pintores da História: Vincent van Gogh e Paul Gauguin.

A versão corrente deu o corte da orelha como uma auto-amputação do próprio van Gogh, levada a cabo com uma navalha de barba e com a intenção de fazer a uma mulher a oferta da parte amputada. E, com efeito, reza a história que van Gogh se apresentou a meio da noite de 23 de dezembro de 1888 à porta de um bordel de Arles, no Sul da França, com a cabeça ensanguentada, e quis entregar a orelha a uma das empregadas do bordel.

A homenageada desmaiou e van Gogh voltou a casa. No dia seguinte foi encontrado na sua cama, depois de ter perdido muito sangue e completamente amnésico sobre o sucedido na véspera.Tudo se atribuiu aos efeitos do álcool e a um acesso de loucura, que não era inédito no pintor. Van Gogh foi internado para tratamento durante vários dias.

Curado o ferimento, foi algum tempo depois internado, a pedido dele próprio, no hospital psiquiátrico de Saint-Rémy-de-Provence. Van Gogh receava ser um perigo para outras pessoas e, além disso, acabou por adaptar-se no hospital, onde seguia diligentemente a terapia recomendada pelos médicos para doenças do foro neurológico que hoje não se sabe com segurança quais seriam.

Essa terapia consistiu em pintar, pintar muito e pintar aplicadamente. Durante um ano de internamento, van Gogh pintou 150 quadros e afirmou que se considerava na sua clausura "mais feliz do que poderia ser lá fora". Quando teve alta, van Gogh viveu menos de um ano: morreu de um outro acidente mal esclarecido, com 37 anos de idade.

No entanto, não é pacífica a explicação da perda da orelha como auto-mutilação.Uma outra teoria, defendida ao longo de um livro de 400 páginas, resultado de dez anos de investigação do historiador de arte alemão Hans Kaunfmann, sustenta que foi o pintor Paul Gauguin quem cortou a orelha de van Gogh e que terá sido depois protegido por este, com a alegada amnésia.

Van Gogh admirava o trabalho de Gauguin e convidou-o, com outros pintores, para participar no projecto de criar uma espécie de academia de pintura, com um domicílio e ateliers comuns, em Arles. Tudo seria financiado pelo irmão Theo van Gogh, marchand d'art relativamente próspero e muito protector do irmão Vincent, artista ainda então no estado de promessa com futuro incerto.

Gauguin aceitou a proposta, mas parece ter entrado rapidamente em rota de colisão com van Gogh. Cartas de Gauguin que ficaram para a posteridade dão conta da relação cada vez mais conflituosa entre ambos.

Na noite da amputação da orelha, Gauguin tinha, para o caso de se revelar pouco convincente a amnésia de van Gogh, o alibi de estar a caminho de Paris e de nada ter presenciado.

Mas a versão que o próprio Gauguin apresenta nas suas memórias, publicadas mais tarde, sem constituir uma confissão contradiz a versão inicial acreditada pela polícia: ele terá tido um conflito com van Gogh, que o terá ameaçado com uma navalha de barba. Gauguin tê-lo-á detido com um olhar severo, e van Gogh terá corrido para casa, para poder auto-amputar-se na privacidade do lar.

Ao fim de 125 anos, é evidente que uma das duas histórias está mal contada.
Tópicos
PUB