Pode ser fácil, difícil, pode mesmo ser «uma surpresa», pode levar anos - para o escritor-a-haver, publicar o primeiro livro é, quase sempre, como «atravessar o Rubicão». Sem ofensa a Júlio César e ressalvadas as distâncias.
Foi fácil para José do Carmo Francisco, «uma surpresa» para Jacinto Lucas Pires, levou anos a Rui Zink, a Mário de Carvalho alguma luta deu, Casimiro de Brito publicou a expensas próprias.
São cinco exemplos, seguramente generalizáveis a centenas de outros escritores portugueses. Estes cinco atravessaram, sem incidentes, o Rubicão. E nenhum deles, ao contrário de César, terá motivos para temer «os idos de Março»Ó É, como ficou dito, quase sempre assim. Quase, porque, como em todas as regras, também aqui há excepções. Há muito quem entenda que o verdadeiro Rubicão é o segundo livro.
Em abono desta convicção, citam-se casos. Por exemplo, os de dois escritores norte-americanos que só escreveram um livro - grande, qualquer deles: Harper Lee, «Não matem a cotovia», e Ralph Ellison, «O homem invisível».
Fernando Pessoa também só publicou um em vida - mas deixou «na arca» material para muitos. Cesário Verde nem isso - um livro em vida - conseguiu. O seu Livro único só «post mortem» foi impresso.
Os cinco autores portugueses agora entrevistados pela Lusa - alguns via E-mail - já publicaram vários livros depois do da estreia.
Como esta aconteceu, fica agora a saber-se.
Conta Mário de Carvalho, romancista, contista e dramaturgo:
«Em 1980, publicar o primeiro livro era o cabo dos trabalhos. Os editores eram inacessíveis, desconfiados, porventura saturados de assédios e de inêxitos. O meio literário era reduzido e fechado».
No seu caso, ocorria «uma dificuldade suplementar», qual fosse a de que conhecia e tinha «trato fácil» com pessoas que poderiam facilitar a publicação da sua obra de estreia. Princípios e valores, quem os tem chama-lhes seus - Mário de Carvalho recusou a «cunha».
«A última coisa que queria na vida - diz - era uma publicação, não por causa duma avaliação de mérito, mas por ser apadrinhado ou de alguma forma favorecido. Não estaria disposto a aceitar nem a dúvida...nem a dívida, passe o trocadilho».
Um amigo, Ernesto José Rodrigues, levou-lhe o original de «Contos da sétima esfera» a «uma pequena editora» - que «entretanto faliu» e lhe ficou com a cópia - e esse mesmo amigo bateu, com outro exemplar, a outra porta, a da Vega, onde o escritor João de Melo dirigia uma colecção. E na Vega saiu, o livro.
Mário de Carvalho recorda ainda hoje a «surpresa», a «incredulidade», a «festa» com que os seus amigos receberam um exemplar «ainda de verniz fresco e cheiroso na capa». «São relances fugacíssimos de felicidade que se levam desta vida», anota.
Depois, as reedições de «ContosÓ» foram acontecendo. A bom ritmo. E com muitas e boas críticas.
Mário de Carvalho recorda a que lhe fez "a eminência da época", João Gaspar Simões, durante muitos anos uma das vozes dominantes, e temidas, no sector. «Foi tão abundante em elogios como havia de ser mais tarde em diatribes, aquando dos "Casos do beco das sardinheiras"».
O primeiro livro do romancista Rui Zink inteiramente seu foi «Hotel Lusitano», em 1987, com chancela das Publicações Europa- América. Três anos antes tinha coordenado, com Leonor Areal, «Pornex- o livro», edição & Etc.
«Levei três anos - conta - até conseguir publicar o livro, depois de várias tentativas falhadas com outros de que hoje só restam os títulos. O `HotelÓ` viria a ser reeditado em 1995, altura em que me tornei verdadeiramente conhecido, com sucessivas reimpressões».
Hoje, quase 20 anos volvidos, Zink acredita não ser este o seu «livro mais importante», mas gosta «muito» dele, porque «contém as coisas que queria dizer naquela altura e o modo como as queria dizer».
Mais ainda, sente no livro «frescura», «força» e «capacidade de improviso» que hoje lhe fazem «inveja» e que não vê em «muitos lados». E gostaria de o reeditar em 2007 - mas não sabe com quem.
Como entraram os críticos no «Hotel Lusitano»? Zink recorda-se de dois que «disseram coisas simpáticas»: o falecido jornalista Júlio Pinto, no Diário de Lisboa, e Jorge Listopad, no JL.
Casimiro de Brito, essencialmente poeta, estreou-se com «Poemas da solidão imperfeita», em 1958, adolescente ainda.
Adolescente, com ilusões, mas «sem dinheiro».
Conhecera por essa altura outro poeta, António Ramos Rosa, que leu o original e o estimulou a publicá-lo. Decisão tomada, não procurou editores. Naquele tempo, recorda, «uma edição de autor era quase um acto de liberdade».
A escassez de dinheiro não constituiu obstáculo. «Negociei a publicação com o homem da tipografia. Eu ia para lá, para a tipografia, e ajudava. E foi assim».
Para recolhas posteriores da sua hoje ampla obra poética, Casimiro de Brito foi buscar àquele livro de estreia apenas «um poema», radicalidade que o não impede de reconhecer estar nele, já, o essencial da sua «marca» de poeta. «Mas ainda sem linguagem autónoma", ressalva.
Uma experiência marcante para o jovem autor de então ocorreu em Londres, pouco tempo depois da sua estreia literária, quando conheceu um professor de línguas orientais. Nasceu e desenvolveu-se nele, a partir dessa altura, uma ainda hoje viva paixão pela poesia oriental.
«A minha vida e a minha escrita alteraram-se pelo contacto com a poesia oriental», diz. Questão de ler-lhe os livros para fazer a prova.
Como com Mário de Carvalho, também no caso do primeiro livro de Casimiro de Brito saiu a terreiro, elogioso, Gaspar Simões. O poeta sublinha com uma risada a recordação: «Louvou o livro. Comparou-me a Álvaro de CamposÓ».
Para Jacinto Lucas Pires, autor de contos, romances e peças de teatro, «não foi fácil nem difícil, foi uma surpresa», a publicação do seu inaugural livro de contos, «Para averiguar do seu grau de pureza», em 1996, na editora Cotovia.
Tinha ganho com um conto, «Palavras», um prémio universitário, o Prémio Ruy Belo e Ruy Cinatti, e um dos membros do júri, José Tolentino Mendonça, poeta e capelão da Católica na altura, convidou-o para participar numa revista literária da universidade.
Decidiu-se então a mostrar a Tolentino Mendonça doze outros contos, do mesmo conjunto de «Palavras», e o poeta e capelão «achou que estava ali um livro». E, se bem achou, melhor fez: levou os contos ao editor da Cotovia, André Jorge, e este, pouco tempo depois, comunicou a Lucas Pires estar interessado em publicar o livro.
«Para mim, portanto, antes de ser uma alegria, foi um verdadeiro espanto», diz o jovem autor, que descreve a sua estreia como «um livro de experiência, de liberdade e de fascínio pelas possibilidades da palavra».
Assevera que, com ele, começou a «aprender que dizer as coisas pode torná-las reais e perigosas, presentes, vivas».
Averiguaram da qualidade do seu livro múltiplos críticos. O primeiro deles, José Tolentino Mendonça. Quem mais? Lucas Pires não entra em pormenores, prefere sintetizar: «A crítica foi, em geral, muito simpática».
Livro inicial de José do Carmo Francisco, poeta e contista, «Iniciais» foi publicado em finais de 1981 depois de ter recebido, no ano anterior, ex-aequo, o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.
«Acabou por ser fácil», conta o escritor, exactamente por causa do Prémio: aconteceu que, dos três membros do júri - Fernando J.B. Martinho, Armando Silva Carvalho e Pedro Tamen -, este último era administrador da Moraes Editores.
«Bastou juntar ao original a carta da APE a dar os parabéns pelo Prémio», recorda.
O livro não chegou a ter segunda edição porque, entretanto, a Moraes faliu. Mas, para José do Carmo Francisco, acima de tudo importante, valendo como «um prémio», foi ter publicado numa das então mais prestigiosas colecções de poesia portuguesas.
A crítica, tanto quanto se lembra, «recebeu o livro muito bem». Refere, a propósito, que «todo esse material crítico» está reunido numa tese de mestrado sobre a sua obra assinada por Ruy Ventura e entretanto publicada: «José do Carmo Francisco - Uma aproximação».
A estatística está por fazer, mas as bancas e as estantes das livrarias dão sobre esta matéria uma pista a seguir com alguma segurança: publicar o primeiro livro, hoje, em Portugal, não parece difícil. Não tanto, decerto, como há vinte, trinta anos.
Diz a este propósito Mário de Carvalho: «Hoje é relativamente fácil publicar. Toda a gente escreve, toda a gente publica, há quem se indigne e proteste, os taradinhos da economia avisam que o mercado - o enjoo que este substantivo já provoca - não aguenta. Não estou nada preocupado. Ou melhor, não acrescento esta às preocupações que partilho com qualquer cidadão sensato».
De sobejo sabe, o autor de «Um deus passeando pela brisa da tarde», da «paraliteratura», do «lixo», do «disparate» em doses calamitosas que inundam as livrarias. E daí? É ainda ele quem dá a resposta: «Sou, em absoluto, pela alfabetização das massas. Se as massas, depois, consomem bodegas, é com elas. Quando eu nasci, quase metade da população era analfabeta.
Antes a quero a soletrar essas livralhadas de capas furta-cores que há para aí, que, desbarretada, a ouvir o senhor prior ler `A rosa do adro`».