O “acidente aéreo” como técnica de magnicídio

por RTP
Reuters

O que há de comum entre os destroços de um avião malaio, encontrados algures no Oceano Índico, e um acidente aéreo ocorrido há 79 anos na Quinta da Marinha? Talvez teorias da conspiração, e nada mais do que isso. E, no entanto, há motivos substanciais para essas teorias serem tão populares – e talvez, num caso ou noutro, certeiras.

O desaparecimento do avião malaio MH370 e o enigma que demoradamente rodeou esse facto prestavam-se a teorias da conspiração. Mas quem teria interesse em provocar o despenhamento do aparelho?

Mesmo na tragédia do avião da German Wings era mais fácil responder a essa pergunta: um piloto com perturbações mentais pode provocar centenas de mortes. Não ganhava nada com isso, mas teve uma intenção. Não foi um acidente, mas não houve conspiração.

Nos atentados do 11 de Setembro, vários piratas do ar provocaram milhares de mortes. Conspiraram para lá chegar, mas a clareza do objectivo desarmou as teorias da conspiração. E, afinal, elas acabaram por ressurgir por outra via, insinuando que a Administração Bush tinha interesse nos atentados e favoreceu mesmo a sua concretização. Os atentados forneciam-lhe o pretexto para uma “guerra infinita”, com várias invasões que pretendia fazer. Daí a acreditar a teoria, era um passo.
 
Verdadeiras teorias da conspiração em torno de despenhamentos aéreos são as que lhes atribuem homicídios políticos, com destinatários precisos.

Uma ficção recente repesca a velha história do general Sanjurjo, morto em 20 de Julho de 1936 na Quinta da Marinha, quando partia do exílio português para tomar a direcção do “levantamento” militar contra a República espanhola. Quem ganhou com a morte de Sanjurjo foi o general Francisco Franco, “pela graça de deus” ou pela mão de um sabotador.

A ficção agora publicada acrescenta a esta velha teoria da conspiração a suspeita de que Franco seria um adicto da técnica do “acidente aéreo” para se desfazer de rivais políticos ou de parentes incómodos. Um deles teria sido o general Emílio Mola, menos querido da Alemanha nazi do que Franco, mas mais respeitado entre as chefias do movimento militar. Parece que Mola decidiu a certa altura reclamar para si próprio a chefia militar que estava entregue a Franco e logo foi vítima de um providencial acidente aéreo.

Outra vítima de um acidente aéreo mal esclarecido foi o irmão do “caudillo”, Ramón Franco, herói da aviação, da República e da esquerda, que, inesperadamente, tinha passado para o bando franquista durante a Guerra Civil. Ele, continuava no entanto a ser um convertido suspeito e um aliado incómodo. Ao morrer, livrou o irmão, Francisco Franco, do embaraço que sempre continuara a ser.

Leslie Howard morreu num voo de Lisboa para Inglaterra, abatido pela Luftwaffe, que desse modo esperava abater o avião onde Churchill estaria a viajar secretamente. Não foi um acidente, mas, para os nazis, para o actor e para os seus companheiros de voo, foi um azar.

Ditadores paranoicos, como Salazar, Estaline ou Kim Jong Il, nunca subiam a um avião. Salazar só voou uma vez, de Lisboa ao Porto, em 1966, e “não gostou” – disse no fim. Estaline também só voou para a conferência de Teerão e jurou para nunca mais. Kim Jong Il sujeitava-se a vários dias de viagem terrestre para visitar Moscovo – morreu relativamente jovem, mas de morte à primeira vista natural.

A história do século XX está cheia de acidentes aéreos fatais, com teorias da conspiração acopladas. Em 1959, foi a morte do dirigente revolucionário cubano Camilo Cienfuegos, ao despenhar-se a avioneta em que viajava. Alguma imprensa ocidental atribuiu esse acidente aéreo a um atentado da iniciativa de Fidel, como viria mais tarde a alimentar a lenda que dava o “Che”, passado à clandestinidade, como assassinado por ordem de Fidel.

Em 1961, foi o secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjöld, que sucumbiu a um acidente aéreo quando sobrevoava o actual Zimbabwe, para empreender uma negociação sobre a guerra do Congo. Hammarskjöld já tinha sido duramente criticado pela URSS, mas entretanto tinha emendado a mão em algumas orientações para aquela guerra e tinha-se tornado alvo, principalmente, de censuras ocidentais. Tiveram livre curso as teorias sobre um acidente aéreo organizado pela CIA.

Em 1975, foi o general Óscar Bonilla, ministro do Interior e depois ministro da Defesa de Pinochet. Tinha entrado em rota de colisão com o ditador chileno e com o chefe dos serviços secretos, Manuel Contreras, falecido na semana passada. Morreu na queda de um helicóptero. Dois técnicos franceses da empresa fabricante, enviados para investigarem o facto, morreram igualmente num acidente suspeito.

Em 1980, despenhou-se em Camarate um aparelho em que viajavam, entre outros o primeiro-ministro português, Sá Carneiro, e o ministro da Defesa, Amaro da Costa. Há a versão do acidente e há a versão de um atentado dirigido a Amaro da Costa, para cortar cerce as investigações que tinha em curso sobre o tráfico de armas, e que teria feito várias vítimas colaterais, incluindo o primeiro ministro.

E em 1986 foi Samora Machel, numa viagem da Zâmbia para Moçambique, quem morreu no despenhamento do Tupolev em que viajava. Vários testemunhos e investigações atribuíram aos serviços secretos sul-africanos um estratagema para enganar o piloto e conduzi-lo à colisão com uma montanha. Outras teorias mais arrevezadas quiseram ver no despenhamento do avião um atentado soviético.

Uma coisa, todas estas teorias têm de comum: das mais fantasiosas às mais plausíveis, elas são quase sempre difíceis de provar para além de uma dúvida razoável, mesmo com a ajuda das famosas caixas negras. E precisamente esta característica faz do “acidente aéreo” uma técnica ideal para quem quiser abater uma figura proeminente sem deixar rasto.
pub