Em forma de lágrima, a grafia codificada traduzia os estados de alma das falantes e o ensinamento era transmitido de mãe para filha. O Nüshu foi criado e usado apenas por mulheres de aldeias rurais do vale do rio Xiao, na província chinesa de Hunan. O suporte onde se inscreviam essas palavras poderia ser lenços, leques ou cintos de algodão que as mulheres trocavam entre si. E assim seguiam mensagens secretas.
Carregados de pensamentos, os caracteres filamentosos tomaram jeito de sistema de escrita pela mão de mulheres camponesas. Empunhando um estilete de bambu desenhavam-lhes os traços curvos onde cada símbolo correspondia a uma sílaba. A elegância gráfica escondia uma narrativa que falava de amizade, alegria ou mesmo de problemas do quotidiano.

Foto: Cathy Silber
Em 2003, Zhou Shuoyi publicou o primeiro dicionário de Nüshu, colocando no mapa dos sistemas escritos conhecidos, esta cultura feminina.

Foto: Cathy Silber
Depois da edição do dicionário de Zhou Shuoyi e os contributos de Cathy Silber, o código de escrita foi classificado como Património Cultural Imaterial Nacional pelo Conselho de Estado chinês.

Xin Hu aprendeu a ler, escrever, cantar e bordar Nüshu. Foto: Xin Hu
Em 2012, estavam resgatados cerca de 500 textos escritos em Nüshu.
A interpretação dessas mensagens íntimas abriu uma janela para a vida quotidiana, permitindo um melhor conhecimento desse período histórico.
Nüshu significa “escrita feminina” em chinês.
É um código com base na fonética de quatro dialetos locais falados na região rural de Jiangyong, no sudeste da China. Lida da direita para a esquerda, esta escrita deu origem a uma cultura feminina que quase se extinguiu na segunda metade do século XX.
Foto: Cathy Silber
A história de Nüshu remontará ao séc. XIX, período durante o qual as oportunidades educacionais eram negadas às mulheres. Aprender esta caligrafia, repetindo o padrão, dava a possibilidade a estas gerações de se expressarem livremente sem que fossem notadas.
Nüshu dava forma a poemas, homenagens, lamentações ou reclamações da vida conjugal criando uma rede de vínculos entre as mulheres que encontravam consolo e cumplicidade nas palavras que só elas descodificavam.
O investigador Zhou Shuoyi tomou conhecimento deste sistema de escrita secreta na década de 50 do século passado, quando a tia se casou e foi viver para uma aldeia onde havia mulheres que escreviam algo diferente.
Fez um levantamento da linguagem codificada a nível regional mas o seu trabalho quase se perdeu com a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung. Os comunistas perseguiram os sinais de tradições passadas ao mesmo tempo que garantiram escolaridade às mulheres residentes nos locais mais remotos, como era Jiangyong. Zhou foi enviado para um campo de trabalho e o uso de Nüshu declinou.
“Eles queimaram todos os meus arquivos que continham informações sobre a escrita. Só fui libertado em 1979, depois de passar 21 anos preso” recorda Zhou na publicação China Daily em 2004.
A narrativa deste sistema de escrita permaneceu desconhecida do resto do mundo até 1980.
Foi Cathy Silber, investigadora e professora de chinês na Skidmore College, de Nova Iorque, quem trouxe o Nüshu para fora das aldeias escondidas entre montanhas e vales da província de Hunan, na década de 80.
Em 1988, Silber foi morar com Yi Nianhua, uma mulher de 80 anos que ainda rabiscava a escrita alongada. A cozinha de Yi testemunhou a descodificação feita por Cathy para o chinês padrão e desde então, a língua secreta, deixou aos poucos de ser secreta.
Foto: Cathy Silber
As “missivas do terceiro dia” ou sanzhaoshu eram as narrativas mais comuns.
Encontravam-se num livro encadernado em tecido escrito que seria entregue às mulheres recém casadas no terceiro dia da nova vida, onde escreveriam os seus pensamentos mais íntimos em Nüshu.
As mulheres tinham que prestar três obediências: ao pai, marido e filho.
As mulheres tinham que prestar três obediências: ao pai, marido e filho.
Renascimento de Nüshu e o Museu de Puwei
Com a morte de Yang Huanyi, última mulher com conhecimento genuíno do léxico, Nüshu conheceu um novo folego a partir de 2004. Os escritos em Nüshu refletiam as diferentes
fases da vida e a “compreensão das mulheres sobre si mesmas”. As
missivas do terceiro dia continham recados de como se tornar uma boa
esposa ou relatos de experiências pessoais menos felizes, explica Cathy
Silber, citada pela BBC. Depois da edição do dicionário de Zhou Shuoyi e os contributos de Cathy Silber, o código de escrita foi classificado como Património Cultural Imaterial Nacional pelo Conselho de Estado chinês.
A era pós-Nüshu assinalava a necessidade de resgatar e proteger o legado tradicional feminino, segundo a UNESCO.
No ano de 2007, foi constituído um espaço museológico na Ilha de Puwei, na região de Jiangyong, com a missão de preservar e promover o ensino da escrita Nüshu. Atualmente, para além de exposições e aulas de bordado e caligrafia, o museu é palco de um festival anual onde se cantam poemas em Nüshu.
No ano de 2007, foi constituído um espaço museológico na Ilha de Puwei, na região de Jiangyong, com a missão de preservar e promover o ensino da escrita Nüshu. Atualmente, para além de exposições e aulas de bordado e caligrafia, o museu é palco de um festival anual onde se cantam poemas em Nüshu.
Xin Hu aprendeu a ler, escrever, cantar e bordar Nüshu. Foto: Xin Hu
Para Tan Dun, Embaixador da Boa Vontade da UNESCO e natural da província de Hunan , a concretização de Nüshu – the secret songs of women , é uma forma de perpetuar o código escrito e afirma “é uma cultura global que pertence ao mundo”.
A interpretação dessas mensagens íntimas abriu uma janela para a vida quotidiana, permitindo um melhor conhecimento desse período histórico.
A longa tradição vocal criada por mulheres para mulheres inspirou o compositor Tan Dun, que, em 2013, musicou as mensagens autobiográficas. Os murmúrios das experiências de vida ganharam melodias produzidas por uma harpa.