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A edição é traduzida e publicada em verso pelo especialista em literatura latina Carlos Ascenso André.
Edição volumosa de literatura revolucionária de época, apresentada em plena pandemia da covid-19 que obriga à reorganização da dimensão pública do mundo ocidental neste início de século. Daí a questão: o que pode um poema escrito no século I A.C. entregar aos leitores do século XXI?
Entrevistado pela Antena 1, Carlos Ascenso André refere o "otimismo cósmico que se sobrepõe à dose profunda de pessimismo da obra. Apesar da pequenez humana de quem morre, de quem mata e das contradições humanas dos seres que somos todos nós, que acabamos por ser peões neste destino, há um mundo com a sua dimensão cósmica, a sua dimensão universal que ultrapassa tudo e que nos permite encarar com otimismo o futuro".
Especialista em literatura latina, tanto da época clássica como do Renascimento, Carlos Ascenso André já editou com a Livros Cotovia os "Caminhos do amor em Roma. Sexo, amor e paixão na poesia latina do séc.I A.C" (2006), traduziu "Arte de Amar" de Ovídio (2014) e "Poemas" de Tibulo (2015). Iniciou o sonho da tradução da "Eneida" em Macau, por volta de 2014, quando assumia a direcção do Centro Pedagógico e Científico de Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau na China. Regressado a Portugal, seis anos depois concretiza a obra.
Paixão antiga, esta, pela figura de Virgílio. Com contributos do professor Walter de Medeiros, a quem o tradutor dedica este trabalho: "Estudei com ele em duas ou três disciplinas ao longo da minha vida e fiquei muito amigo dele até aos últimos dias. Disse-me, a mim e aos meus colegas, que não traduziria nunca a Eneida. Ele era um perfecionista como Virgílio. Dizia que não seria capaz; precisava de doze anos para traduzir, um ano por cada livro. Quando terminasse, precisava de seis anos para rever. Parece-me que era um excesso da parte dele, mas fiquei a dever-lhe isso. É uma homenagem que acho que qualquer discípulo dele gostaria de lhe ter feito" e a homenagem inclui versos traduzidos pelo mestre: "Ou os aceitei como ele os traduziu ou ajustei-os ao tempo em que estamos. Porque uma tradução vale o que vale no tempo em que é feita. Passados uns anos tem que ser modificada, porque o leitor também mudou".
Virgílio, personalidade crepuscular
Filósofo de formação e epicurista por convicção, Virgílio viveu o tempo das guerras civis romanas; abandona Mântua (onde nasceu) com a família e instala-se em Roma, onde assistiu ao nascimento do império, tendo-se tornado poeta oficial do primeiro imperador. A biografia importa ao tradutor "para compreendermos a personalidade de Virgílio, um poeta cheio de contradições".
Perfecionista assumido, diz a lenda que deixou indicações para que a "Eneida" fosse queimada após a sua morte, por estar inacabada. Mas o imperador Augusto não o permitiu. Com as imagens que transmitiu Hermann Broch no romance ficcional "A Morte de Virgílio" (1945), Carlos Ascenso André considera esse romance um bom guia para sabermos quem foi Virgílio: "Mais do que intimista, atrevo-me a dizer que é um espírito crepuscular. Ele só vive bem nessa penumbra. Virgílio morreu em Brindisi e não em Roma. Na que veio a ser a fase final da sua vida decidiu fazer uma viagem à Tróade [no Noroeste da Ásia Menor], para conhecer os lugares onde tinha acontecido a guerra de Tróia, que é o Canto II do seu poema, para poder descrever melhor aquilo que queria cantar. O poema já estava pronto. Ele já não consumou essa viagem; morreu ainda jovem, de doença, exactamente por ser assim tão intimista, tão crepuscular, tão virado para si próprio".
Com uma dose profunda de pessimismo, o poema acaba com a morte de Turno. O tradutor descreve à Antena 1 a cena: "O poema acaba com a morte de Turno, que é o inimigo de Eneias. Mas essa morte de Turno não é em combate. Turno está prostrado, de mãos estendidas, pede clemência e diz a Eneias "venceste! Não leves mais longe o teu ódio. Leva Lavínia (que é a esposa). Vamos terminar aqui". E Eneias tem uma reação igual à da personagem do romance "A Queda", de Albert Camus que, subitamente, toldado por uma luz, um furor, sem nenhuma razão para isso, quase a sangue frio, numa atitude bárbara, mergulha a espada no peito do inimigo que lhe pedia perdão».
Com a publicação da "Eneida", a Livros Cotovia concretiza a publicação das três grandes obras de Virgílio, depois das "Geórgicas" e as "Bucólicas" publicadas em 2019, com tradução de Gabriel A. F. Silva.