Silvia Alves - RTP
Atriz, encenadora, estrutura artística Cassandra
Ligou-se a vários clubes de teatro: da Junta de Freguesia, na Maia, e o clube de teatro da escola, um momento importante na sua vida. A ideia de que podia ser atriz não lhe tinha ocorrido. Os pais abriram-lhe esse horizonte quando lhe explicaram que podia fazer os seus estudos numa escola de espectáculos, o que acabou por acontecer na Academia Contemporânea do Espetáculo, no Porto, uma escola que lhe proporcionou uma felicidade extraordinária. No segundo ano do curso, um director de actores visitou a escola e convidou alguns alunos para um workshop em Lisboa. Pouco depois, alguns alunos foram seleccionados para um projecto televisivo – uma série juvenil – e, mais uma vez, foram os pais que incentivaram Sara a aceitar este desafio. Veio sozinha para Lisboa aos 16 anos, onde ficou uma década, numa catadupa infindável de novelas e séries.
Sobre a notoriedade a que esses projectos levaram, diz: “Eu penso que há uma disparidade entre o lugar em que nós nos sentimos realmente felizes ou realizados e aquilo que projectam que é essa realização e essa felicidade. E, de alguma maneira, eu vivia uma vida profissional em que era, mais ou menos, unânime de que eu deveria estar feliz e realizada, porque morava em Lisboa, sozinha, trabalhava em televisão e, portanto, havia uma projeção nacional muito grande daquilo que era o meu trabalho. E essa valorização acontecia, esse reconhecimento na rua…”.
O dinheiro que ganhava, usava-o para assistir a todos os espectáculos que podia, sentindo que, na verdade, o que desejava era “criar, desejava encenar, desejava entrar como actriz em espectáculos, e em Lisboa não estava a conseguir que isso acontecesse”.
Teve um momento revelador em plena autoestrada, enquanto conduzia a caminho de Lisboa. Saía tarde dos estúdios, fora da cidade, o que a obrigara a comprar um carro para poder chegar a tempo aos espectáculos que queria ver.
“Acabei por comprar um carro em quinta mão para poder ir mais rápido para Lisboa e conseguir chegar a tempo de ver os espectáculos, porque os estúdios eram um bocadinho fora. E, há um dia, em que uma das novelas estava quase a acabar, estávamos a acabar de a filmar e eu estava a conduzir e a pensar “fogo, será que me vão convidar para a próxima, espero que convidem porque se não me convidarem, eu não consigo pagar este carro, não consigo pagar a minha casa”, e eu precisava mesmo desse dinheiro para pagar a casa para poder morar em Lisboa e, de repente, tive assim um momento revelador em que eu percebi “bem, mas isto não faz sentido nenhum para mim, porque eu só vivo na minha casa para poder ter este trabalho, que eu não gosto, e agora quero outro trabalho igual que eu não gosto, para pagar uma casa para estar num sítio onde eu não gosto, com um carro que também não quero ter”.
Acabou a novela e regressou ao Porto.
Em 2020, recebeu o Prémio Revelação Teatro D. Maria II/ Ageas, o que lhe deu o suporte financeiro para iniciar a estrutura artística Cassandra (www.cassandra.pt).
Foto: ©Filipa Brito_Heroides Natalia Correia
Criou o "Heróides - clube do livro feminista", que se reúne no último sábado de cada mês, presencialmente e, muitas vezes, online, para conversar sobre livros. “Nós escolhemos 12 pessoas de que gostamos ou que admiramos de alguma maneira, essas pessoas escolhem um livro, e é esse livro que nós lemos nesse mês. Isso faz com que os livros que nos chegam sejam também livros, não só aqueles que eu gosto, mas aqueles que eu nunca iria ler à partida e, portanto, há livros muito distintos e, por isso, é que eu acho que este é um clube tão interessante”.
“E quem fala sobre os livros não são as pessoas especialistas”, esclarece Sara Barros Leitão. Rapidamente, a palavra espalhou-se e a comunidade leitora conta já com centenas de participantes. Há também uma lista de livros para ler antes de morrer. [https://www.cassandra.pt/heroides-sugestoes]
“Ler realmente mulheres! E tentar perceber onde é que estão estas vozes feministas- que não são só necessariamente mulheres - mas onde é que elas estão na literatura, e isso leva-me a um livro que gosto muito da Chimamanda Ngozi Adichie que é O perigo de uma história única, que é também uma Ted talk que ela faz”.
Precisamente para que não prevaleça uma história única e uma narrativa só, Sara prefere falar de feminismos no plural. Considera que o feminismo é, sobretudo, uma questão interseccional que cruza várias questões: de género, de raça e, sobretudo, de classes. Tem a certeza que "a luta de classes é aquilo que mais nos distingue e que mais dificuldades traz a uma igualdade plena".
Foto: @Teresa Pacheco Miranda
Foto: @Teresa Pacheco Miranda
Na sua vertente de dramaturga e encenadora, criou a peça "Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa", em itinerância pelo país desde 2021, e que foi o resultado de um longo processo de pesquisa em torno do primeiro sindicato do serviço doméstico em Portugal, uma conquista de Abril. Sara Barros Leitão pensa que o trabalho doméstico é aquele que é o mais tenso, quando se fala em feminismo. Porque a libertação e a emancipação das mulheres para o mundo do trabalho acontecem, sobretudo, à custa de outras mulheres, que contratamos para trabalhar nas nossas casas.
Organizou a exposição "Mulheres todos os dias".
E acrescenta: “Pagando nós a alguém para o fazer, ou fazendo nós, de forma gratuita na nossa casa, depois de uma jornada de trabalho remunerada, não deixa de ser trabalho. E é um trabalho que é estruturalmente associado às mulheres, atribuído às mulheres. E não sou eu que o digo, todos os estudos da literatura o dizem, que a divisão de tarefas ainda é muito desigual. Muitas vezes, os estudos dizem que começa a existir a divisão de tarefas por género, mas ela acontece de forma nominal. Ou seja, muitas vezes dizem, nós dividimos as coisas em casa, ela faz o jantar e eu levo o lixo, como se fosse sequer comparável uma tarefa de levar o lixo com o fazer o jantar, que é um planeamento e uma carga mental: deixar o peixe a descongelar e buscar uma cebola à mercearia, porque não há cebolas, aproveitar as batatas de ontem. Perceber o que é que a família comeu, aquele comeu massa, aquele comeu arroz ao almoço, portanto eu não vou repetir, vou fazer puré, tudo isso é uma carga mental muito grande, que é sobretudo associada às mulheres. É evidente que há muitos homens que o fazem, mas estaríamos a invisibilizar aquilo que é o grande trabalho que as mulheres fazem nas suas casas. E, então, esse desafio de perceber a externalização que muitas vezes se faz, contratando outras mulheres, revela aquilo que é a fragilidade do nosso Estado social”.
Foto: @Teresa Pacheco Miranda
Foto: @Teresa Pacheco Miranda
Entretanto, estreou a peça "Guião para um país possível" que revisita os quase 50 anos de diários da Assembleia da República. Foi mais uma pesquisa morosa e profunda, desta vez aos diários em que ficam registados todos os acontecimentos e incidentes durante as sessões plenárias, ao longo dos anos da Democracia. A peça entrou já em itinerância.
Outra iniciativa da estrutura artística Cassandra é o "Parlapatório", acessível a jovens entre os 15 e os 18 anos, e maiores de 65 anos. O propósito? “O Parlapatório é uma oficina destinada a jovens que ainda não têm idade para votar, em conjunto com pessoas que ainda têm memória de ter vivido os tempos da ditadura portuguesa, em que não havia eleições livres. Durante o período da oficina, usar-se-ão ferramentas de teatro, para descobrir a política. Afinal, quer um quer outro só podem ser feitos pelo e para o ser humano.”
Pelo espaço Cassandra, na Avenida Camilo 118, no Porto, passou uma exposição de reproduções dos lenços dos namorados "Lenços de amor – séculos de poesia bordada no feminino", da artista Sara Duarte Brandão. Pode espreitá-la aqui: