Mulheres que contam. Maria Arlete Alves da Silva

por Silvia Alves - RTP

Com uma infância passada em Leça da Palmeira e em Matosinhos, nos anos 40 e 50, Maria Arlete Alves da Silva viu muita fome e miséria, o que a marcou profundamente. Talvez, por isso, nada de luxo a fascine. Detesta que se desperdice comida, não compra joias, roupas ou sapatos caros. Em contrapartida, tem uma vida marcada pelos afetos.

No tempo da ditadura, o lema do país era Deus, Pátria e Família. Não sendo de uma família religiosa, a mãe não mandou Arlete à catequese, até o padre ir lá a casa admoestá-la que tinha de fazê-lo.
 
Aos dez anos, dois actos de rebeldia marcam Arlete Silva: fez a crisma, a comunhão solene e, nessa altura, decidiu que “acabou a religião na minha vida”, e “não vou beber mais leite, porque sou alérgica e faz-me mal!”. Coincidiu com a vinda para Lisboa, onde era vizinha de Raul Rego, político e jornalista, perseguido pelo regime. Foi em sua casa que Arlete Silva viu a primeira biblioteca, que “teve um impacto tão grande que ter uma biblioteca passou a ser um dos meus sonhos”. Em Lisboa, ainda com um forte sotaque do Porto, sentiu que era diferente – até a cor da bata que trazia (cinzenta) contrastava com a das colegas do Liceu Filipa de Lencastre (branca).
Quando, no início dos anos 60, Arlete Silva foi estudar Filologia Germânica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, começou um part-time na nova Livraria Escolar Editora, no Campo Grande, no prédio onde morava Mário Soares, com a PIDE à porta. A livraria transformou-se rapidamente num ponto de encontro de alunos e professores universitários, artistas e músicos. Havia tertúlias, ouvia-se Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília e, também, Jacques Brel, Joan Baez, Bob Dylan, entre outros. Em 1964, nasceu a galeria da Livraria Escolar Editora - nesse ano expuseram, pela primeira vez, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa, António Palolo, Santa Bárbara e António Sena. E começava, também, uma notável colecção de arte contemporânea pela mão de Manuel de Brito, com quem Arlete Silva viria a casar.
Arlete Silva sempre registou tudo meticulosamente: os livros que leu, as viagens que fez, as datas importantes na sua vida. Passou, igualmente, a fazer um “guião da galeria”. “No fundo, tenho uma mentalidade de bibliotecária”, diz.

“Talvez por eu e o meu marido termos começado como livreiros, tivemos sempre a noção que tínhamos de guardar tudo. Aliás, nós comprávamos os jornais todos, todas as revistas que interessavam, e a tarefa de domingo à tarde, era recortar as coisas que eu depois, rigorosamente, punha no arquivo. Mas, não era só os nossos artistas, todas as coisas de interesse nas artes, nós guardávamos.”

Este arquivo é, talvez, tão ou mais importante que a colecção de arte em si. É regularmente consultado por portugueses e estrangeiros para os seus trabalhos de doutoramento. Aliás, “a Fundação Calouste Gulbenkian manda pessoas, que vão à sua biblioteca para consultar publicações de arte, para nós, porque esse arquivo de jornais eles não têm”, diz Arlete Silva.
Sessenta anos mais tarde, milhares de quadros e centenas de exposições depois, Arlete Silva diz “nós sempre mantivemos uma relação muito cúmplice e muito amigável com os artistas. E começámos por dar apoio aos que estavam lá fora, que eram os que estavam a viver pior… Lá fora, estavam o Júlio Pomar, a Lourdes de Castro, o Gonçalo Duarte, o José Escada, o Eduardo Luís, e em Londres estava a Paula Rego, o Bartolomeu. Na Alemanha, estava o Costa Pinheiro. Nós mantivemos uma relação muito cordial com todos os artistas que viviam em Londres e em Paris. Íamos visitá-los regularmente. De carro, íamos daqui até Munique visitar o Costa Pinheiro. Depois íamos visitar a Vieira da Silva e o Arpad Szenes, em França, e o Eduardo Luís que morava perto, e o Dacosta, que também não morava longe. Portanto, havia quase uma romaria anual que nós fazíamos e mantivemos uma relação muito cordial”.
É assim que nasce a colecção: “A nossa colecção parte desse companheirismo com os artistas, nós víamo-los pintar. Nós tínhamos admiração pelo trabalho deles. Nós procurávamos sempre ficar com quadros significativos de cada exposição.”
Os nossos artistas foram nossos amigos toda a vida. São realmente amigos.”

E a amizade resultou em dezenas de obras oferecidas a Arlete Silva, a Manuel de Brito e aos dois filhos, com dedicatórias afectuosas. “Curiosamente” diz Arlete, “eu constatei, nem fazia ideia, que eu era a que tinha mais quadros oferecidos. A seguir era o meu filho Rui, e depois era o meu marido e a minha filha por último. É neste ambiente que nós vivemos. Muita proximidade, muita amizade, é uma vida de afectos.
 
"Uma vida de afectos, e que tem uma realidade física que são as obras de arte, que ficam."




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