Dois atores, um músico, um psiquiatra e a uma pediatra. O Jornal 2 fez cinco desafios. O resultado cinco contos ou poemas de Natal que por entre as luzes ou a neve trazem o frio de uma realidade que o brilho de tantas estrelas ilude.
O ator Jorge Paupério escolheu um texto duro de Noélia de Santa Rosa sobre dois forasteiros, imigrantes e refugiados: Mistério de Natal.
A noite estava fria e chovia copiosamente criando pequenos rios na rua daquela aldeia.
Dos telhados das casas subiam nuvens de fumo, sinal de que as lareiras estavam acesas e que
ali havia calor e gente a morar.
Na rua, apenas dois vultos caminhavam a custo carregando às costas o que pareciam ser sacos.
Ao passarem por uma das casas a luz da janela iluminou-lhes os rostos.
Um homem e uma mulher, jovens mas com ar cansado, batiam às portas pedindo abrigo por
uma noite.
Bastava apenas uma noite para poderem descansar e depois%u2026
Depois seguiriam viagem, sem incomodar, só um canto seco e seguro para pernoitarem.
Mas nenhum dos habitantes daquela aldeia entendia o que diziam e nem perante a
tempestade lhes franqueavam as portas.
Finalmente, num casebre pobre e escuro, uma mulher de muita idade comovida com aqueles
dois, indicou-lhes o palheiro ao lado onde dormiam alguns animais e eles aceitaram
acomodando-se no meio do feno.
A meio da noite a velha aldeã acordou com um som de mar e levantando-se foi espreitar da
janela de onde vinha aquele som.
Estaria ela a sonhar?
Da janela reparou que a chuva parara, mas o som do mar parecia vir de todas as direções e a
aldeia dormia serena.
Firmando a vista reparou numa luz que o seu palheiro irradiava e o seu velho coração tremeu.
Que estranho aquele som de mar no meio da montanha e que luz era aquela vinda do
palheiro, se lá não havia luz e fogo não seria, pois o gado não dera sinal de perigo!?
Fez intenção de sair para ir ver o que se passava mas o sono tomou conta dela e voltando para
a cama adormeceu.
O sol já ia alto quando ela acordou e como ela toda a aldeia acordou tarde naquele dia.
No largo todos os animais passeavam à solta sem fazer desacato e nem os cães corriam atrás
dos gatos.
O povo conversava sobre a tempestade da noite passada e sobre os dois forasteiros.
Quem seriam?
Quem lhes teria dado guarida?
A velha aldeã acusou-se.
Tinha sido ela a dar-lhes alojamento no velho palheiro.
E contou o que vira e ouvira a meio da noite, mas disseram-na senil que tinha sonhado e
ralharam com ela por ter posto em perigo toda a aldeia.
Os dois homens mais fortes do povo decidiram ir ver o que os estranhos teriam feito no
palheiro, ignorando os protestos da velha aldeã.
Vasculharam o palheiro de alto a baixo mas só encontraram dois coletes salva-vidas cor de
laranja pendurados atrás da porta.
Saíram para a rua e mostrando ao povo os coletes gritaram:
"Vejam, eram imigrantes, refugiados. Talvez até terroristas!
Se vieram estes dois, amanhã podem vir mais."
A pobre anciã desculpou-se chorando que não fora por mal ter dado guarida ao jovem casal.
Correu para casa lavada em lágrimas e cerrando a porta foi sentar-se ao lume pensando na
crueldade daquela sua gente.
Até que reparou que em cima da mesa estavam três caixas de madeira finamente trabalhadas.
Abriu a primeira caixa e a casa inteira encheu-se do cheiro a incenso.
Abriu a segunda caixa e o brilho do ouro iluminou o seu pobre e escuro casebre.
Abriu a terceira e um cheiro amargo de mirra fez saltar-lhe mais lágrimas dos olhos: Jesus!
Sobre a mesa estendia-se um paninho de linho muito fino onde tinham pousado as três caixas.
Levou o paninho aos olhos para enxugar as lágrimas e o cheiro de recém nascido encheu-lhe a
alma.
No seu rosto envelhecido pelo tempo, bailou um sorriso...
Só ela sabia o mistério daqueles dois forasteiros, imigrantes e refugiados e o que lhes
acontecera naquela noite de inverno.
Era o MISTÉRIO DE NATAL
Noélia de Santa Rosa