António Mega Ferreira, escritor, no novo livro sobre Santo António, aborda a cidade de Lisboa e Itália, ambas presentes em obras anteriores, e põe a descoberto "o `patrioteirismo` bacoco" em torno da figura religiosa.
O livro "Santo António, de Lisboa e Pádua" coloca a figura histórica nas duas cidades. O livro foi lançado em junho pelo Clube do Autor e, ao longo de 136 páginas, alia o "ensaio literário" sobre a vida do santo a fotografias de Marc Gulbenkian, que atravessam os locais referidos.
Mega Ferreira já atravessara Lisboa por várias vezes, como em "Lisboa e Tejo e Tudo" (com o verso de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa), assim como Itália ("Itália -- Práticas de Viagem"). Mas a sua ligação a esta `viagem` de Santo António é também "uma espécie de subtexto do livro", explicou, em entrevista à agência Lusa.
"Há também uma vontade de acabar com esta espécie de `patrioteirismo` bacoco, que leva a dizer `os italianos chamam-lhe Santo António de Pádua, mas é de Lisboa`. Ele é de Lisboa e é de Pádua, nasceu cá, e a sua obra maior, que o consagra no final de vida, foi toda feita em Itália. A pregação é toda em Itália. No fundo, [escrever o livro] foi estabelecer uma ponte e dizer que o santo é tão grande na devoção popular que chega perfeitamente para as duas cidades", acrescentou.
Há, na obra, um sentido de humor que "saltou à escrita". "Tem a ver comigo e a minha maneira de ver as coisas, mas, por outro lado, o próprio objeto do ensaio me é imensamente simpático. A imagem que temos de Santo António permite perfeitamente falar com uma certa leveza da figura e da obra", asseverou.
Esse sentido salta, também, de "uma certa ternura" que Santo António prefigura para crentes e não crentes, como o autor, um facto que a lenda em torno da figura religiosa também adensou.
"É o padroeiro dos casamentos, ajuda as raparigas a encontrarem marido, há toda essa narrativa para a qual não contribuiu nada", atirou.
Este ensaio é, então, um "registo leve que também fica bem num ensaio, sério, que tenta sobretudo tirar a `canga` toda de cima dele", porque "não faz sentido nenhum". O que faz sentido "é a sua profunda humanidade".
No prefácio, de Pedro Teotónio Pereira, a obra é descrita como um percurso que permite "percorrer os caminhos do santo na sua época, sentindo a paisagem, o calor e o frio, os cheiros e os sons, transpondo-os para os dias de hoje", passando pela "eterna disputa entre Lisboa e Pádua", mas ainda Coimbra, Toulouse ou Rimini, cidade onde "deixou também a sua marca".
Ordenado "Doutor da Igreja" em 1946, o lado estudioso do teólogo e do homem que nasceu Fernando Martins de Bulhões (1195-1231), de "grande exegeta das escrituras" da Bíblia, salta à vista na obra.
"É central no pensamento de Santo António, para quem tudo o que é verdadeiro está contido no livro sagrado. Ele não é um inovador, mas é um restaurador dessa ligação ao Livro, nesse aspeto distanciando-se de Francisco de Assis, pouco lido e pouco instruído. (...) Santo António era profundamente lido, de uma erudição centrada na literatura sagrada do cristianismo", descreveu.
Este era, pois, um homem com "numerosíssimas glosas sobre as escrituras", para quem esta forma é "absolutamente central".
"Por isso interessa tanto Santo António à Igreja, que o eleva praticamente a um segundo franciscano, mesmo que ele e Francisco de Assis, ao que parece, nunca se terem falado. Existe, por parte da hierarquia da Igreja, uma exaltação de Santo António, de uma corrente mais conservadora do que Francisco, um iconoclasta", realçou o autor do livro.
Assim, e até em quadros de Giotto e outros pintores, os dois figuram em igual relevo, realçando o papel mais erudito do homem que saiu de Lisboa para pregar "para milhares de pessoas em Itália".
Nascido em Lisboa, em 1949, António Mega Ferreira trabalhou como jornalista, do Jornal Novo, do Expresso e do antigo semanário O Jornal, à informação da RTP2, e foi chefe de redação do Jornal de Letras, além de ter liderado a candidatura lisboeta à Expo`98 e presidido à Fundação Centro Cultural de Belém. É diretor executivo da Associação Música Educação e Cultura - Metropolitana, que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Na carreira como escritor, supera as três dezenas de obras publicadas, de ensaio a poesia, ficção e crónicas, tendo recebido o Grande Prémio de Conto Camilo Castelo Branco, da Associação Portuguesa de Escritores, em 2001, por "A Expressão dos Afetos".
Marc Gulbenkian nasceu em Paris mas vive há vários anos em Lisboa, trabalhando em cooperação internacional, enquanto desenvolveu um trabalho paralelo na fotografia, que já o juntara a Mega Ferreira em "Lisboa e Tejo e Tudo".