Luis Miguel Cintra estreia hoje espetáculo com pessoas alheias a corridas ao estrelato

por Lusa

Um verdadeiro diálogo entre pessoas "que não estão na corrida à carreira, às coisas de televisão e ao estrelato" é como o encenador Luis Miguel Cintra define a sua nova peça, que se estreia hoje, no Museu da Marioneta, em Lisboa.

"Canja de Galinha (com Miúdos)" é o nome do espetáculo, e o diálogo corre entre Ana Amaral, Ana Simão, Duarte Guimarães, Ivo Alexandre, Joana Manaças, João Reixa, Levi Martins, Maria Mascarenhas, Rafaela Jacinto, Rui Seabra e Sérgio Coragem, aos quais se junta a voz de Luísa Cruz, no auditório do museu localizado no edifício do antigo Convento das Bernardas, onde em tempos funcionou uma antiga igreja e também uma sala de cinema.

"Entre a flauta e a viola" e "Patologia do casamento", dois textos de Camilo Castelo Branco (1825-1890) "muito diferentes entre si", foram o ponto de partida de Luis Miguel Cintra para a construção deste espetáculo que, para si, é "uma coisa muito agradável e fantástica, graças ao contacto com aquele grupo de atores".

"Pessoas que já não são crianças, já têm alguns anos de prática e uma atitude que se concilia bem com a minha. Não estão na corrida à carreira, às coisas de televisão e ao estrelato", disse, em entrevista à Lusa. São "pessoas muito sérias, na sua maneira de elaborar as coisas, e inteligentes", que o ator e encenador "conhecia mal", embora já tivesse trabalhado com algumas.

Além de Duarte Guimarães, ator que esteve sempre ligado ao Teatro da Cornucópia, o elenco do novo espetáculo é composto por atores com quem o fundador da antiga companhia com sede no Bairro Alto só tivera contactos esporádicos ou "pequenas intervenções". E que lhe deixaram "vontade de [os] conhecer melhor".

"Trata-se de um verdadeiro diálogo entre nós a partir daqueles textos que propus", disse o encenador à Lusa, acrescentando que "o primeiro texto é uma espécie de farsa com canções".

A ação centra-se no pai de uma jovem que vai levar a filha ao noivo que escolhera para ela, e decorre numa estalagem em Barcelos onde ambos pernoitam uma noite, antes de chegarem ao destino.

"É claro que o pai da rapariga tem muito medo que naquela noite na estalagem alguém entre no quarto da rapariga, ou que a rapariga fuja. E depois acontecem várias peripécias e a rapariga acaba por casar-se durante a noite com um dos frequentadores da estalagem e não com o seu verdadeiro noivo", explicou.

"Canja de Galinha (com Miúdos)" constrói-se depois a partir de "Patologia do casamento", outro texto de Camilo, "muito divertido", que permite ao autor do romantismo português expor as diferentes patologias que existem no casamento.

Este texto está escrito num tom "muito mais sofisticado, é baseado em meninas burguesas do Porto" e "funciona, em relação à primeira história, como uma espécie de pesadelo ou fantasmagoria que cresce na cabeça da rapariga, ao pensar no que poderá suceder com o noivo que lhe prometeram", frisou Luis Miguel Cintra.

A possibilidade de ser feliz, a liberdade feminina, as relações de poder, as regras da sociedade, a condição da mulher e as diferenças de classe são, assim, temas do novo espetáculo.

Com um título escolhido "para despistar" e "para abrir um tom de brincadeira e de ironia, no qual Camilo se sente muito bem, tal como eu - até porque, apesar de tudo, se chama `galinhas` às mulheres, de uma forma desprezível", como Luis Miguel Cintra já admitira à Lusa, "Canja de Galinha (com Miúdos)" acaba "por nos mostrar que, embora estejamos de certa maneira afastados do aspeto mais superficial daquele género de sociedade que é apresentado", também nos revela que continua a haver "um discurso na matriz do comportamento que impede as pessoas de serem felizes".

O problema da peça é este, afirma Cintra: "E se eu fosse feliz, o que é que me acontecia? Como é que a gente imagina a felicidade, ou a deseja?"

Resultado das muitas conversas que os elementos da equipa têm tido uns com os outros, o novo espetáculo congrega igualmente outros textos de Camilo Castelo Branco, acrescentou o encenador.

"Há uma coisa engraçada, é um ponto de partida para tudo, que é um romance que ele [Camilo] escreveu mais ou menos com a mesma história da tal primeira peça que se passa na estalagem de Barcelos, que é um texto da mãe, como se estivesse a dar conselhos à filha que vai ser casada" na qual aquela, com "muita ternura" explica à filha que "ter amor não interessa nada".

"A gente casa-se não é por amor. Não te preocupes com isso. Hás de acabar por simpatizar com ele, assim como eu não gostava do teu pai e acabei por simpatizar com ele", diz a mãe à jovem nesse texto. "E isso é uma coisa muito triste", porque "não depende da escolha das pessoas", frisou Luis Miguel Cintra à Lusa.

"Muito triste ou muito vital", prosseguiu o encenador, sustentando que, embora em tom de brincadeira, o novo espetáculo mostra que as regras sociais "existem" e "estes padrões de hoje em dia, são enormíssimos".

Nos "padrões de comportamento que a sociedade propõe, muitas vezes está a ausência de decisão, de responsabilidade da própria pessoa, que depois acaba por viver aquela vida toda torcida", afirma.

"Mesmo que os modelos sociais mudem com o tempo, a incapacidade de decidir pela sua própria cabeça -- o que se costumava chamar no meu tempo de alienação -- é uma coisa que está, mais do que nunca, vigente", enfatizou.

Luis Miguel Cintra vai mais longe e afirma que está "ainda mais forte do que antigamente, uma vez que as pessoas nem dão por ela".

"Os novos padrões de vida das gerações mais novas são tão convencionais ou tão pouco inventados por elas como os antigos; são é de outra natureza (...). No fundo, têm o mesmo tipo de ideal, de uma felicidade confundida com conforto e com o mínimo de esforço necessário", disse.

"É como se tivesse passado a ser o ideal de vida de toda a gente, a facilidade de rapidez, facilidade de obtenção de um conforto mínimo, e não haver ondas, (...) ter uma vida tranquila suficientemente livre para poder entrar e sair quando lhe apetecer" e "isto é tudo muito pouco", concluiu.

"Canja de Galinha (com Miúdos)" é o segundo trabalho dramatúrgico de Luis Miguel Cintra, depois do encerramento da Cornucópia, no final de 2016.

"Depois do fim da Cornucópia não faz sentido nenhum, com a lucidez que ainda me resta, apesar das dificuldades físicas que as pessoas sabem que tenho, ir agora concorrer com as coisas que já fiz, sem ter os próprios meios para isso. Portanto, tenho feito diferentes experiências, que são experiências de inovar", sublinhou, em novembro, a propósito deste novo espetáculo que candidatou a apoios pontuais da Direção-Geral das Artes (DGArtes), conseguindo financiamento.

O espetáculo permanecerá em cena, no Museu da Marioneta, até 29 de dezembro, exceto nos dias 24 e 26 de dezembro, e pode ser visto de terça-feira a quinta, às 19:00, às sextas-feiras e sábados, às 21:30, e, ao domingo, às 17:30.

"Canja de Galinha (com Miúdos)" é uma produção conjunta da Companhia Mascarenhas Martins e do Museu da Marioneta.

A tetralogia "Um D. João Português", espetáculo em que cruzava uma tradução portuguesa, anónima, de cordel, com o texto original de Molière, apresentada em 29 de abril de 2017, no Montijo, foi o primeiro espetáculo do encenador após o fecho da companhia com sede no Teatro do Bairro Alto, que dirigiu durante 43 anos.

A última representação de "Um D. João Português", desenvolvido em quatro cidades portuguesas, ocorreu no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, em março de 2018, depois de também ter passado por Viseu e Guimarães.

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