Lélia Salgado. Reflorestar e restaurar ecossistemas, uma ideia que "surgiu da tristeza de ver tudo degradado"

por Andreia Martins - RTP
Foto: Drew Forsyth

Foi uma das personalidades distinguidas este ano com o Prémio Gulbenkian para a Humanidade. Desde os anos 90 que Lélia Wanick Salgado se dedica à preservação da natureza e defesa do ambiente através do Instituto Terra, a organização não-governamental que fundou com o marido, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Em entrevista à RTP, a ambientalista brasileira falou sobre o legado de mais duas décadas de trabalho em que ajudou a plantar, de raiz, uma pujante floresta de Mata Atlântica num terreno árido e sem vida. Nesta conversa, Lélia Wanick Salgado destacou ainda o projeto ambicioso e de longo prazo para a recuperação do Vale do Rio Doce, em Minas Gerais.

As linhas duras, a preto e branco, mostram um solo esgotado com escassas árvores e vegetação. Estamos em 2001 e o terreno herdado por Sebastião Salgado e Lélia Wanick Salgado só há poucos anos começou a reestabelecer-se, a caminho de se transformar de novo na floresta de Mata Atlântica que havia sido em tempos.

Mais de 20 anos depois, o cenário no mesmo local é completamente diferente. A mesma encosta enche-se e deixa transparecer as cores da natureza, mesmo que a fotografia assuma os tons que caracterizam toda a obra do fotógrafo brasileiro.

A ideia para esta metamorfose foi de Lélia, ao transformar, através do Instituto Terra, o vazio e a devastação num terreno recuperado, cheio de fauna e flora.

Instituto Terra em Aimorés (Minas Gerais, Brasil), ano de 2001. Foto: Sebastião Salgado
Instituto Terra em Aimorés (Minas Gerais, Brasil), ano de 2022. Foto: Sebastião Salgado


Antes do trabalho com esta organização não-governamental, estudou arquitetura e planeamento urbano em Paris. A fotografia surgiu nos anos 70 e acabou por ficar na vida de Lélia Wanick Salgado, que por várias décadas foi editora e curadora de grande parte dos livros e exposições do marido, o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado.

Nos últimos 25 anos, a par de outras valências, Lélia Salgado tem-se destacado pela sua atividade de ambientalista através do Instituto Terra, fundado e, 1998. Em duas décadas, a organização não-governamental conseguiu transformar uma terra árida e sem vida num rico ecossistema regenerado em Aimorés, Minas Gerais, no Brasil.

Em julho de 2023, Lélia Wanick Salgado foi uma das escolhidas para receber o Prémio Gulbenkian para a Humanidade
, ao lado de Bandi “Apai Janggut”, líder da comunidade indígena na ilha asiática de Bornéu e da ativista e agrónima Cécile Bibiane Ndjebet, dos Camarões.

Em entrevista à RTP por conversa telefónica, dias antes de participar no festival Utopia, em Braga, a ativista e ambientalista brasileira falou sobre o projeto ambicioso de devolver vida e água ao Vale do Rio Doce e sobre os próximos desafios do Instituto Terra, nomeadamente nos campos da cultura e da educação.

Para além do festival Utopia, Lélia Wanick Salgado irá também participar na próxima sessão do Clube de Leitores da RTP3 no próximo dia 10 de novembro, pelas 15h30. 

Foto: Drew Forsyth

Questão: Nos últimos anos tem trabalhado no mundo dos livros como editora, nomeadamente na curadoria de trabalhos fotográficos. Fale-me desse trabalho que tem desenvolvido.

Lélia Wanick Salgado: Há muito tempo que eu trabalho com livros. A maioria dos livros do Sebastião Salgado, o fotógrafo que é o meu marido, trabalhámos juntos e a maioria dos livros dele sou eu que edito. Edito, faço o desenho dos livros, por vezes vou até à máquina para imprimir os livros. É um trabalho completo. Alguns dos livros eu também publiquei e também fui a editora principal em dois dos livros. A partir de certa época passou a ser a editora Taschen.

As exposições, a maioria das exposições, também sou eu que escolho, sou eu que faço toda a curadoria e faço toda a cenografia de cada museu, cada lugar. Imagino o que vamos mostrar na exposição. A última exposição, a da Amazónia, continua em vários países. Hoje em dia está em Zurique, em Milão e Madrid.

Essa exposição é muito especial porque ela tem muitas informações, não são só fotografias. Tem depoimentos dos chefes indígenas, tem fotografias dos indígenas, tem fotografias das paisagens da Amazónia, paisagens aéreas, paisagens de barco, paisagens a pé. São fotografias muito variadas da floresta amazónica. E também muito importante, temos a parte política da exposição, com os depoimentos dos chefes indígenas. Falam da vida deles, dos problemas que têm, da ligação que eles têm com a natureza. E também o problema climático.

Estas exposições têm mais duas grandes projeções que não são as mesmas fotografias da exposição, mas uma exposição dos retratos dos indígenas e outra projeção das paisagens da Amazónia.

Mas agora estou a organizar uma porção de outras, inclusive uma sobre Portugal na época da Revolução dos Cravos. O Sebastião trabalhou muito lá. Algumas fotografias dele vão estar em exposições que vão ser feitas por todo o lado, inclusive por Portugal. Mas vai haver uma exposição das fotografias dele sobre essa época de Portugal a ser feita no Brasil, para a comemoração dos 50 anos da Revolução dos Cravos.

Esses trabalhos foram também publicados em Portugal na época, no República e em alguns outros jornais de Portugal. Mas esta é uma exposição especial em que escolhemos as fotografias que vamos expor no Brasil sobre a Revolução dos Cravos. Essa exposição estará patente no ano que vem, a partir de maio, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.

Para além deste lado de edição e de cenografia, das exposições, nos últimos meses foi uma das escolhidas para receber o Prémio Gulbenkian para a Humanidade pela sua atividade enquanto ambientalista. O que representou para si receber esse prémio?

Lélia Wanick Salgado: Esse prémio foi uma maravilha, realmente. É um prémio muito prestigioso, sobretudo para premiar o trabalho que fazemos no Brasil com o nosso Instituto Terra. Nós plantámos uma floresta para recuperar uma área completamente degradada. Já plantámos 2,5 milhões de plantas, de árvores, nesse lugar. E já plantámos muito mais em outros ao lado dos proprietários rurais à volta, no nosso entorno.

Temos também um programa muito sério de recuperação de água, porque o grande problema hoje é que o rio [Doce] está muito assoreado e tem pouca água. Os produtores rurais não têm mais água. Esse é um problema seríssimo e estamos a fazer um programa de recuperação das nascentes. Já recuperámos três mil nascentes.

Este é um projeto de longo termo. Estou a falar de um rio que é um dos grandes rios do Brasil, o rio Doce, que já foi até navegável, mas hoje quase não tem água. Está muito assoreado, tem muita areia. Fizemos o levantamento e estimámos que, para esse rio voltar a ter água, será necessário recuperar 370 mil nascentes em todo o vale do Rio Doce. A bacia hidrográfica do rio Doce abrange mais de 86 mil quilómetros quadrados. O rio estende-se por 853 quilómetros e banha os estados brasileiros de Minas Gerais e Espírito Santo.

O vale do Rio Doce é quase tão grande quanto Portugal! Imagina, é uma coisa muito pretensiosa. É claro que nós já não veremos, mas se o Instituto Terra continuar a trabalhar como está, procurando os fundos e trabalhando a sério, quem sabe daqui a 30 anos esse rio estará recuperado.

Os trabalhos que fazemos são trabalhos de longa vista. Não é só uma coisa para hoje. No final das contas, os problemas que temos com o clima, com a água, tudo o que está a acontecer… Temos de trabalhar para tentar reverter e fazer algo sobre esse assunto que é tão sério hoje no nosso mundo.

Sobre o Instituto Terra, como é que surgiu a ideia deste projeto? Hoje aquele espaço é Mata Atlântica, mas no final dos anos 90 era uma terra árida.

Lélia Wanick Salgado: Era uma terra que era da família do Sebastião [Salgado], a família dele era proprietária rural, trabalhava com gado e antes disso fazia agricultura. Depois a terra foi-se exaurindo tanto que já não dava mais para fazer agricultura, então começaram a ter gado. E o gado é uma tragédia, com gado não se tem mais nada.

A floresta que havia desapareceu e daí para a frente a chuva e tirava a terra toda, levando-a para baixo e assoreando os riachos, que depois vão assorear o rio. Quando chegámos e vimos a degradação dessa terra vimos que tínhamos de fazer alguma coisa. E eu tive essa ideia de plantar uma floresta.

Essa ideia surgiu da tristeza de ver tudo degradado, a chuva a cair a trazer a terra toda para baixo, a fazer erosões enormes nas terras, nos morros. Foi daí que apareceu a ideia desta floresta para recuperar a terra, foi assim que começou a história.

Começámos a procurar saber onde se planta a floresta, que floresta íamos plantar. Temos um amigo que é engenheiro florestal e esse amigo ajudou muito, foi uma das pessoas-chave para esse projeto existir. Ele estudou a terra. Disse-nos o que tinhamos de plantar, quantas árvores tinha de plantar para recuperar a terra toda, que eram 700 hectares. Precisávamos de plantar 2,5 milhões de árvores. Nessa época pensámos… como é que vamos conseguir plantar isso tudo?

Parecia um projeto impossível?

Lélia Wanick Salgado: Esse amigo adorou a ideia e começou a fazer o projeto, foi ele que fez o primeiro projeto. E começamos a procurar fundos para começar a plantar. Ele trabalhava numa grande companhia, a Vale do Rio Doce, que tem uma reserva de floresta de Mata Atlântica e ele era o diretor dessa reserva, que também tinha um grande viveiro com plantas da Mata Atlântica.

Ele conseguiu que a Vale nos desse a primeira plantação: 50 mil mudas [estágio inicial de uma planta]. Foi assim que começámos. No início foi muito difícil, a gente não sabia plantar direito. Perdemos muitas plantas, perdemos 60 por cento das plantas por não sabermos plantar e porque não tivemos mais chuva.
A Mata Atlântica é um dos biomas da América do Sul. O espaço do Instituto Terra localiza-se em Aimorés, no estado de Minas Gerais.
Na altura esperávamos que viesse a época da chuva, mas a chuva não veio. Isso atrapalhou muito, perdemos muito. Mas arranjámos o dinheiro para plantar outra vez no ano seguinte.

Isto porque só se pode plantar uma vez por ano, só há uma estação das chuvas, que é agora no fim do ano. Agora mesmo, estamos a plantar lá no Instituto Terra, agora que já há chuva.

Foi assim que começámos. Depois arranjámos mais fundos com empresas, com fundações, e fomos indo, fomos tentando. Hoje já plantámos esses 2,5 milhões de árvores.

Outra coisa maravilhosa é a biodiversidade que voltou. Os animais voltaram, voltaram os insetos, os pássaros. No outro dia estávamos perto de num lago e estava lá uma capivara, dentro do lago. Temos jaguares lá. Temos macacos. Todos voltaram e não sabemos de onde vieram, porque à volta não tem muita coisa. Mas os animais falaram entre eles e sabem que aquele lugar é um santuário, é um lugar onde ninguém mata e que eles podem ir lá, onde têm comida.

É uma coisa maravilhosa, quando vemos que é possível recuperar uma terra. Se todo o mundo pusesse na cabeça que ia recuperar alguma coisa, esse mundo não estava desse jeito.


Já a ouvi referir-se à floresta do vosso terreno como “uma floresta criança”. Mas com tanta fauna e flora que existem, já é algo substancial ao fim de mais de 20 anos de trabalho, que não é assim tanto tempo para uma floresta.

Lélia Wanick Salgado: São 25 anos desde que a gente começou a plantar a floresta. Mas de toda a maneira, quando digo que é uma floresta criança, é porque uma árvore para ser uma árvore maravilhosa precisa de uns 50 anos, 60 anos… E ainda não acabámos de plantar tudo lá dentro.

Para se plantar uma floresta de Mata Atlântica há uma forma de o fazer. Como a terra estava degradada, não tinha nada, não tinha sombra, a terra dura por causa do gado, era muito difícil fazer um buraco na terra. A água também não ficava ali, escorria. O Instituto Terra administra a Reserva Particular de Património Natural de Fazenda Bulcão em Aimoirés, Minas Gerais. Tem uma área com mais de 600 hectares de Mata Atlântica que foi recuperada.

Então primeiro tivemos de plantar as árvores primárias [pioneiras]. São essas que crescem mais depressa, essas que caem as folhas todas e que vão dar húmus à terra, e também sombra. Com essas árvores plantam-se outras secundárias, que já vão durar mais tempo.

No final, quando já se tem uma floresta alta, uma floresta em que o sol já não bate tanto para poder crescer em baixo, então já começa a ter o sub-bosque também. Aí vamos plantar as árvores clímax, que são as árvores como os carvalhos em Portugal, as azinheiras. Nós não temos essas mesmas árvores, mas temos outras árvores clímax. E agora chegou a hora de enriquecer a nossa floresta.

Em que é que consiste o trabalho diário do Instituto Terra? Como ONG, o que é que acontece no dia-a-dia? E quais são os vossos principais desafios neste momento?

Lélia Wanick Salgado: O dia-a-dia do Instituto Terra é trabalhar para conseguir os fundos para plantar a floresta. Estamos a recuperar a água nos entornos, nas propriedades rurais privadas.  

Para se recuperar uma fonte água, temos de plantar pelo menos umas 400 árvores. Essas árvores também são feitas lá no Instituto Terra. Temos um viveiro que produz 500 mil mudas por ano. Esse viveiro produz para este projeto de recuperação de água e para plantar na nossa floresta, mas também para outros fazendeiros, outras pessoas que querem plantar nas terras deles.

Outra atividade é a educação. Temos um projeto de educação com 20 jovens que passam um ano no Instituto Terra. Esses jovens saem das escolas de agricultura, são jovens entre os 18 e 22 anos que acabam as escolas de agricultura, escolas de nível médio, e passam um ano no Instituto Terra. Moram lá, são internos, e trabalham em todas as atividades do Instituto Terra: no viveiro, na recuperação de nascentes, na plantação.

Quando acabam esse ano, saem técnicos em recuperação ambiental. E vão trabalhar, todos arranjam trabalho, é impressionante a necessidade de técnicos com essa especialidade.

Já começamos com este curso em 2006, já temos 17 anos de curso. Têm saído muitos jovens, e há muitos que ficam nos nossos projetos, que ficam a trabalhar no Instituto Terra.

Temos uma atividade muito grande também com as escolas. Nós somos um dos principais empregadores da cidade, depois da prefeitura. Damos emprego a quase 100 pessoas. É muito importante o trabalho do Instituto Terra ali na região.

Gostava de ver o Instituto Terra a inspirar outros? Espera que este trabalho possa inspirar o trabalho de outras pessoas pelo mundo?

Lélia Wanick Salgado: Há muitas pessoas que se inspiram no Instituto Terra. Do tamanho do Instituto Terra não tenho conhecimento, mas muitas pessoas que têm uma terrinha vão lá para saber que plantas colocar, vão lá e compram as plantas e depois vão falando com o Instituto o tempo inteiro, a contar o que estão a fazer.

É muito importante. O Instituto Terra está a irradiar uma filosofia para a população que está realmente preocupada com o clima.

No vosso trabalho de divulgação está previsto algum projeto fotográfico com Sebastião Salgado, algum livro ou exposição sobre a evolução deste ecossistema?

Lélia Wanick Salgado: Cada vez que faço uma exposição, inclusive no outro projeto anterior, o Genesis, preparo um espaço com uma pequena exposição sobre o Instituto Terra, com informações, com fotografias. Em Lisboa, quando fizemos a exposição Genesis havia uma parte sobre o Instituto Terra, justamente para mostrar que a transformação daquela degradação.

Acho que todos devem ajudar a que essa degradação não aconteça. Por isso estamos lá, mostrar o que é possível fazer e o que é possível não fazer, o que é preciso fazer

Agora, neste momento, estamos a preparar um livro sobre o Instituto Terra. Das pequenas exposições, as pessoas escrevem-nos e dizem que realmente que gostaram do projeto e dizem-nos que quem pode vai replicar.

Que outros projetos tem para o futuro? O que é que ainda quer fazer a nível ambiental?

Hoje continuamos a aumentar a área do Instituto Terra. Continua a crescer. A nossa vontade é realmente recuperar aquela região tão bonita. O nosso trabalho, esse trabalho de recuperação da água é uma coisa maravilhosa. O programa "Terra Doce" tem por objetivo recuperar mais de quatro mil nascentes da região.

Os proprietários rurais que querem participar do projeto inscrevem-se e nós disponibilizamos os nossos técnicos, que vão lá ver onde é que estão as nascentes. Às vezes a nascente nem já tem mais água, mas eles sabem que ali havia uma nascente. Chamamos estas nascentes de “Olhos d’Água”. Achamos os olhos d’água, damos as plantas ao proprietário e ele tem de cercar [para afastar o gado] e plantar.

Outra área é a educação. Estamos a implementar no Instituto Terra um pouco de cultura, tentar melhorar o nível cultural da população à volta. Hoje em dia é algo muito triste, a juventude cai muito na droga. O que estamos a tentar fazer é tentar que esses jovens façam alguma coisa no campo, onde moram, para continuarem lá e continuarem a fazer coisas importantes e não precisarem de sair de lá e irem para as grandes cidades.

Este é um trabalho social que estamos a desenvolver também. Eu e o Sebastião [Salgado] criámos o Instituto Terra e hoje é o nosso filho, Juliano [Salgado], que é o presidente do conselho do Instituto Terra. Nós fazemos parte do conselho, mas ele é que é o presidente. Ele é que trouxe essa ideia de trabalhar com a juventude. Ele é cineasta e quer fazer um festival de cinema, quer que esses jovens comecem a fazer coisas interessantes e levar a missão do Instituto Terra muito mais longe.
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