Hergé, que faria agora cem anos, continua na sombra de Tintim

por Sílvia Borges Silva, Agência LUSA

Cem anos passados sobre o seu nascimento, o autor belga Hergé é ainda hoje conhecido (quase) apenas por ter criado o invencível repórter Tintim, cujo sucesso se sobrepôs à vida de um homem pacato e conservador.

"Não há referências na banda desenhada que se comparem a Hergé e ele foi precursor na Europa", afirmou o divulgador de BD João Paiva Boléo à agência Lusa.

Hergé, que nasceu em Bruxelas a 22 de Maio de 1907, criou o repórter Tintim em 1929 e até hoje esta é a mais famosa personagem da banda desenhada da Europa.

Ao longo de quase cinquenta anos (entre 1930 e 1976), Hergé deixou mais de vinte álbuns com histórias ricas e bem construídas, com personagens cativantes que fazem um resumo da natureza humana, sublinhou Boléo, que se considera um "Tintinófilo".

Apesar de a banda desenhada ter dominado a sua vida artística, Hergé (nome artístico com as iniciais invertidas de Georges Remi) trabalhou nas artes gráficas.

"Ele tinha aspirações a ser um gráfico e chegou a fazer desenhos publicitários nos anos 1930, deixando trabalhos com um sentido moderno do seu tempo", relata João Paiva Boléo.

No entanto, Tintim e o seu inseparável "fox terrier" Milú impuseram-se a Hergé desde que foram criados, num suplemento do jornal Le Vingtième Siècle, em Janeiro de 1929. Hergé tinha apenas 22 anos.

A primeira história, "Tintim no país dos sovietes", era a preto e branco e revelava "um traço tosco e mal desenhado. Na infância Hergé teve más notas a desenho", lembrou o bedéfilo Geraldes Lino à agência Lusa.

O estilo, mais tarde designado "linha clara", foi sendo aperfeiçoado ao longo dos anos, com as histórias a servirem de aprendizagem para a construção dos enredos e dos cenários realistas, a definição do traço e das cores, que influenciariam gerações de artistas.

Escuteiro na infância, agnóstico e conservador, Hergé foi, no entender de João Paiva Boléo, muitas vezes mal interpretado.

"Criou-se uma lenda de que Hergé era fascista e racista", recorda Boléo, autor de vários estudos sobre BD portuguesa.

Em causa estão, por exemplo, os álbuns "Tintim no país dos sovietes" (1930), no qual o repórter é enviado à Rússia e em que Hergé alegadamente ridiculariza os comunistas, e "Tintim no Congo" (1931), com uma visão colonialista e paternalista de África por parte dos belgas.

"Ele não tinha desprezo pelos negros ou pelos judeus, mas alguns dos episódios passados são verdadeiros", refere Boléo.

No entanto, as histórias e as personagens "foram gradualmente mudando, deixando para trás racismos primários ou anti-semitismos para não chocar os leitores", referiu Geraldes Lino.

Ao longo da sua vida, Hergé foi tendo mais cuidado e sensibilidade com as interpretações políticas das suas histórias, até porque os álbuns de Tintim foram traduzidos e publicados em dezenas de países fora da Europa.

"Foi a partir de "O lótus azul" (1936) que Hergé teve consciência do que andava a fazer", denotando uma maior preocupação com o rigor, opina Boléo, referindo uma viagem que o autor fez à China.

Geraldes Lino evoca, por seu lado, o crescente gosto de Hergé pela cultura e pela arte, expresso no inacabado "Tintim e a Alph-Art", publicado em 2004.

Apesar de Tintim ter ofuscado toda a obra de Hergé, o autor belga criou ainda, em 1930, a série "Quick & Flupke", publicada em Portugal com os títulos "Tropelias de Trovão & Relâmpago" e mais tarde "As aventuras de Quim e Filipe".

"É a segunda série mais importante de Hergé, mais rica sociologicamente e que reflecte o que era Bruxelas dos anos 30", descreve João Paiva Bóleo.

Em 1936, Hergé desenhou a série de ficção científica "Jo, Zette & Jocko", editada em Portugal como "Joana, João e o macaco Simão".

Da sua vida privada sabe-se que Hergé foi escuteiro, não teve filhos, viveu rodeado de amigos e viajou sobretudo nos últimos anos de vida, já com a segunda mulher.

Há pelo menos um português que se atravessa na vida de Hergé, quando o autor belga viveu em França durante a segunda guerra mundial, numa altura em que a Bélgica foi ocupada pelas tropas alemãs.

As biografias referem que o editor de Hergé em Portugal, Adolfo Simões Muller, pagou os direitos de autor a Hergé em géneros alimentares em vez de dinheiro, dadas as dificuldades do autor.

Adolfo Simões Muller foi o responsável por Portugal ter sido o primeiro país em todo o mundo a publicar as aventuras de Tintim a cores em 1936, no jornal O Papagaio.

Desconhece-se a razão que levou Hergé a criar a personagem Oliveira da Figueira, um comerciante, que entra no álbum "Tintim na América" (1932).

Hergé, que morreu em 1983 com 76 anos, deixou expresso que mais ninguém poderia continuar a sua obra, talvez por ser "uma criação muito pessoal", sugere Paiva Boléo, há vinte anos membro do clube belga de amigos de Hergé.

Se hoje fosse vivo, que aventuras Hergé teria destinado a Tintim? João Paiva Boléo e Geraldes Lino não arriscam colocar Tintim no dia em que o muro de Berlim foi derrubado, em Nova Iorque no 11 de Setembro de 2001 ou no Iraque.

"Sou capaz de imaginar o Bush numa das histórias", ironiza Geraldes Lino, coleccionador de banda desenhada.

"Hergé foi um conservador que se tornou um céptico, um homem do seu tempo e um grande humanista", elogiou Boléo.


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