Gil do Carmo expõe no álbum "Mediterrâneo" zanga com Lisboa descaracterizada pela especulação
O novo álbum do músico Gil do Carmo, "Mediterrâneo", resulta da sua "zanga com Lisboa" e das inquietudes que sente sobre o mundo, que quer "mais inclusivo e humano", como afirmou à agência Lusa.
Gil do Carmo, em declarações à Lusa, afirmou que sentiu necessidade de parar depois do anterior álbum, "Sê" (2022), que envolveu "muita tecnologia e muita gente", e para o qual disse ter-se "atirado para fora de pé", até iniciar o processo criativo deste novo álbum, "Mediterrâneo", quando se "zangou com Lisboa", à qual se refere sem alma, nos dias que correm, "cada vez mais igual às outras capitais europeias".
"Mediterrâneo" é assim um álbum que acompanha e traduz esse processo de "despojamento e simplicidade", declarou.
"Playground", canção em que critica a especulação imobiliária em Lisboa, a gentrificação da cidade, e refere os nómadas digitais como "marialvas tecnocratas", foi a primeira que compôs, dando início ao álbum.
"Mediterrâneo" é composto por 11 canções, todas da sua autoria, letra e música, para as quais contou com músicos como Tiago Santos, Vicky, Daniel Bernardes e Rodrigo Correia.
O álbum reflete a sua personalidade e assume a sua zanga com Lisboa. Foi `construído` na região Oeste, onde vive, perto de Sobral de Monte Agraço, região pela qual se apaixonou, tendo deixado a Madragoa, bairro lisboeta onde viveu, o ancestral bairro típico a dois passos do rio, mas onde agora há "estúdios com Feng Shui" e de onde "D. Celeste teve de [sair, para] ir viver para a outra banda", como canta numa das canções.
Gil do Carmo disse que anda há cerca de 30 anos a falar "dos portos onde aportámos e que fomos aportados", mas há que falar "dos mais 600 anos de história que temos com o sul de Portugal, essa miscigenação de cultura com o arabesco, com os povos do norte de África, e nos conflui literalmente entre o Mediterrâneo e o Atlântico".
Na canção "No dia em que o Sahara (chegar ao Tejo)" há um claro recurso à tradição vocal árabe. "Um cântico xamã, de alerta, de começo, `venham comigo nesta viagem", afirmou o músico de 52 anos.
Para Gil do Carmo, que assume a influência do músico espanhol Joan Manuel Serrat, `cantautor` que ouve desde a infância, o Mar Mediterrâneo é "um mar de confluências culturais".
Este é "o primeiro disco que fiz `de A a Z`, sem parcerias, sem ninguém, em que me atirei completamente para fora de pé. Tenho esta história para contar e assim será", declarou.
O escritor Valter Hugo Mãe, que escreve um texto incluído no `booklet` do CD, refere-se ao trabalho de Gil do Carno como "lindo, elegante [e] inteligente". Um álbum que qualifica como "tão maduro".
Hugo Mãe refere a "música mestiça" de Gil do Carmo, compositor, que se estreou discograficamente com "Mil Histórias" (1997) e que tem desenvolvido um percurso musical de constante reinvenção, dando voz à miscigenação contemporânea.
Se, habitualmente, começa a compor a música, neste álbum o processo "foi muito complementar". "Aqui fui casando [ora música, ora palavra]. Ou pela temática, ou pela escrita, apareceu a música, foi muito complementar".
No verão de 2023, tinha as músicas de "Mediterrâneo" prontas. "Depois foi trabalhá-las", tendo gravado o álbum entre 14 e 24 de setembro do ano passado, nos estúdios Canoa, no Soito, na região Oeste.
Sobre si, Gil do Carmo afirmou que é de "uma calma aparente", mas sempre inquieto. "Estou sempre à procura do verso perfeito, e da música nova, perfeita, da próxima música, da descoberta permanente e na procura permanente do novo e do que há a acrescentar à nossa civilização e à nossa existência".
Gil do Carmo reconheceu o tom crítico do álbum à atual sociedade, e afirmou: "Eu senti muita necessidade de chamar à atenção. É natural que ao ser artista se tenha uma atitude e uma posição política. Quem diz `não tenho nada a ver com a política`, não é bem assim. Tudo é político. E claro que é uma forma de contestar; claro que é até uma forma de chamar à atenção dos próprios lisboetas para a loucura, para a insanidade do que está a acontecer à nossa maravilhosa e lindíssima cidade".
"É criminoso", argumentou o cantor. "Andamos a tentar vender a alma de uma Lisboa que já não existe".
"De repente vieram essas pessoas com muito mais dinheiro que os portugueses, muito simpáticos, e Lisboa foi tomada de assalto por esses tecnocratas que mal falam português. Lisboa tornou-se descaracterizada e igual a todas as outras capitais europeias", disse Gil do Carmo, afirmando-se contra "esta política destrutiva em que o dinheiro é que conta e não se olha ao lado humano".
O autor de "Namoro é Turismo", um dos 11 temas do álbum, disse que "Portugal é um país literalmente plantado à beira mar e com tudo para dar certo". Mas há esse "nacional-porreirismo", critica. Como podemos estar "a demorar tanto tempo a crescer após uma revolução [a de Abril de 1974]?", interrogou-se.
"Nós somos maravilhosos, o que se passa é que as pessoas andam alienadas, só ligam aos `tiktok` da vida, e não ligam à natureza e aos pormenores belos da vida. O poder estar ligado quotidianamente a esses sinais belos de vida que é o que faz a diferença", desabafou.
Um dos temas do álbum intitula-se "No Silêncio Mora a Música", o que pode parecer uma contradição, reconheceu Gil do Carmo, afirmando que precisou de procurar esse silêncio, de sair "do reboliço da cidade" onde viveu perto de 50 anos.
A necessidade que sentiu de sair de Lisboa, para a cantar, "tanto de Lisboa como de Portugal". "Nesta zanga inconsciente com a minha cidade precisei de silêncio", afirmou. E foi na região Oeste que descobriu que "No Silêncio Mora a Música".
"É do silêncio, dessa procura, desse âmago existencial - `o que é que eu vou dizer` -, que `No Silêncio Mora a Música`". "Entre o silêncio e a música há um acorde de Dó Maior, Sol Maior, ou ré menor", acrescentou.
Gil do Carmo reconhece que as suas inquietações vão além de Lisboa. O músico reflete também sobre o drama dos migrantes que atravessam o mar Mediterrâneo, na canção "No Dia em que o Sahara".
"Somos europeus, temos esse privilégio de viver num lugar absolutamente maravilhoso. Andámos a saquear África durante anos e anos. Que responsabilidade é que temos relativamente ao que fizemos a todos os povos norte-africanos? Eles vêm à nossa procura a pedir retorno e colo. Nós não podemos ser inconscientes e tratá-los mal. O que é isso de ser refugiado? Somos refugiados de nós mesmos. Nós somos todos refugiados. Refugiado não é terra de ninguém. Somos todos cidadãos do mundo".
Gil do Carmo afirma-se "nómada" de si próprio, expressão que usa em várias canções do álbum.
"Realmente sinto-me nómada, porque ser nómada não é ser despojado de cultura nenhuma, é precisamente o contrário, é esse aglomerar de vivências e de experiência que nos leva a ser nómadas. Ser nómadas é transportar a nossa cultura para onde queremos estar, existir e viver", defendeu.
"Ser nómada de mim é levar a nossa bagagem cultural permanentemente às costas, à procura de um sol maior, de um melhor dia", argumentou.
Sobre o álbum declarou: "Nesta contradição existencial do disco, estou a ir, de certa forma, contra uma corrente, numa incessante procura por uma abordagem contemporânea e uma miscigenação de culturas: sempre que mudamos de linguagem nas músicas do mundo, acabamos no Jazz. Isso naturalmente aconteceu, [porque] são as minhas raízes". E rematou: "Queria que uma bonita melodia e um bonito poema chegassem às pessoas".
"Há muito que um conjunto de canções não me parecia tão feito de um mesmo gosto e um mesmo amor. Genuínas e seguras, perfeitas", atesta, por seu turno, Valter Hugo Mãe, no texto que acompanha a edição de "Mediterrâneo". "Canções perfeitas de partirmos e voltarmos só por as escutar".