Eunice Muñoz, a atriz que mesmo sem razões de queixa, se sente "profundamente roubada" pela ditadura

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Lisboa, 26 nov (Lusa) -- Eunice Muñoz não tem razões de queixa do teatro, embora se sinta uma atriz "profundamente roubada", como a geração a que pertenceu, por causa da censura anterior ao 25 de Abril, pois houve peças proibidas que nunca pôde representar.

A atriz fala com a Agência Lusa a poucos dias do seu regresso ao palco com "O cerco a Leninegrado", do espanhol José Sanchis Sinisterra, peça que se estreia na segunda-feira, no Auditório com o seu nome, em Oeiras, exatamente 70 anos após a sua estreia, a 28 de novembro de 1941, em Lisboa.

"Desta vez é especial", observa a atriz em relação ao regresso ao Auditório Eunice Muñoz, depois de, em 2006, aí ter representado "Miss Daisy", do norte-americano Alfred Uhry, também dirigida pelo encenador Celso Cleto.

Eunice Muñoz, no entanto, não encara a estreia de "O cerco a Leninegrado" de forma diferente de outras peças, por se verificar exatamente no dia de aniversário do início da sua carreira. Quando diz que "é especial", refere-se ao facto de poder regressar a um registo de que gosta -- a comédia.

Quando questionada sobre o que representam os seus 70 anos de vida nos palcos não hesita em responder: "Não sei, não tenho assim a noção de tempo, sabe? Pelo menos não a tenho muito pesada".

Apesar de confessar que, no começo, nem sempre representou as peças de que gostaria -- porque era muito nova e "não tinha poder para dizer que sim ou que não" ao que lhe propunham, acabando sempre por fazer as peças que lhe foram "levadas" -, admite que a vida profissional sempre "lhe correu bem".

Eunice Muñoz chegou muito nova à representação. Estreou-se no final de 1941, quando já somava 13 anos, no Teatro Nacional D. Maria II, na peça "Vendaval", de Virgínia Vitorino, em que contracenava com a "grande dama" de então, a atriz Amélia Rey Colaço.

Nessa altura e mesmo nos anos que se seguiram, recorda Eunice Muñoz, "era completamente posta perante o projeto": "Nem sequer tinha de dizer que sim ou que não, só tinha de o fazer", sublinha.

"As coisas na minha vida foram sempre acontecendo", prossegue. "Nunca mexi muito, nunca fiz grandes esforços para representar peças de que gostaria", admite.

"Sou muito pouco ambiciosa, acho que até sou de menos, porque devia ser mais", prossegue, acrescentando: "Isso não me orgulha nada. Se fosse mais ambiciosa provavelmente, não teria ficado em Portugal, teria partido quando acabei o Conservatório, aos 17 anos. Nessa altura podia ter escolhido o estrangeiro para fazer uma carreira, mas não... sou muita agarrada", sublinha Eunice Muñoz.

Das sete décadas de trabalho nos palcos, a única razão de queixa de Eunice Muñoz é das peças que gostava de ter feito e lhe foram roubadas no tempo da Censura, durante a ditadura do Estado Novo.

São as peças proibidas nessa época que a fazem sentir "profundamente roubada", tal como toda a sua geração, confessa a atriz. E exemplifica o facto com "Mãe Coragem", de Bertolt Brecht, que nunca poderia ter feito antes do 25 de Abril, e que só fez em 1986, no Teatro Aberto, dirigida por João Lourenço.

"Eu e toda a minha geração apanhámos efetivamente esse corte medonho, como quem tira um bocado duma perna", diz Eunice Muñoz sobre o tempo da ditadura, que marcou 33 anos do seu percurso profissional, quase metade da sua carreira.

"Esse repertório proibido, fez muita falta", prossegue Eunice Muñoz, "e hoje olho para estes jovens com uma grande satisfação, porque desde a revolução que não sabem o que isso é, e ainda bem", prossegue.

Ao longo dos 48 anos, a censura proibiu a representação de dezenas e dezenas de peças de teatro por ano, a edição de milhares de livros e de autores. "A cantora careca", de Eugene Ionesco, as peças do britânico John Osborne, que marcaram a dramaturgia do pós-guerra, textos dramáticos de Luís Francisco Rebelo, Bernardo Santareno, Fiamma Hasse Pais Brandão, entre muitos outros, foram sucessivamente proibidos pelos serviços da ditadura.

"Só mais tarde é que foi possível" levar essas peças aos palcos, lembra Eunice Muñoz, aludindo à queda do fascismo português, em 25 de Abril de 1974, e à extinção da censura.

"Fiquei sempre com esse amargo de não poder representar, interpretar determinadas personagens que gostaria", prossegue a atriz, que acrescenta: "De qualquer maneira, não posso pensar que não tive, apesar disso, uma carreira bastante boa até agora - isso seria uma grande ingratidão da minha parte".

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