“Estou pronto, meu Deus”: um mistério eterno chamado Cohen

Artista de culto, influência incomparável do século XX, Leonard Cohen escreveu e cantou até à reta final da sua vida. Com a mesma classe e mistério que sempre fizeram parte do seu percurso enquanto cantor. Morreu aos 82 anos, no passado dia 7 de novembro, mas a informação só foi conhecida três dias depois.

"É com profunda tristeza que anunciamos a morte do poeta, compositor e artista, o lendário Leonard Cohen. Perdemos um dos visionários mais respeitados e prolíficos da música", anunciou esta sexta-feira o seu agente, via Facebook, numa publicação que surgiu em Portugal já na madrugada de sexta-feira.  
 
O último álbum de Leonard Cohen, editado no mês passado, a 21 de outubro, é uma autêntica carta de despedida. Leonard parece ter pressentido a sua própria morte.  


“Hieni, Hieni,
I'm ready, my Lord”



 
A morte da musa 
Num perfil publicado em outubro, por ocasião do lançamento álbum “You Want it Darker”, a New Yorker publicou um extenso perfil do poeta-cantor, no qual retrata Cohen como um homem consciente, mas já consumido pela doença e pela idade. 

A revista norte-americana conta também a história de Marianne Ihlen, uma norueguesa casada, que se divorciou depois de conhecer o cantor na ilha grega de Hydra. Viveram juntos durante os anos 60, durante oito anos, mas as constantes viagens de Cohen para Nova Iorque e a aposta na carreira musical ditaram o fim da relação.  
 
Marianne morreu em agosto, em Oslo, vítima de um cancro terminal. Em julho, Cohen recebia por e-mail o aviso de que poucos dias restariam ao amor de outrora.  
 
“Marianne, chegou o momento em que somos tão velhos, os nossos corpos estão a cair aos pedaços, e julgo que te seguirei muito em breve. Fica a saber que estou tão perto de ti que, se estenderes a mão, julgo que poderás tocar a minha. Sabes que sempre te amei pela tua beleza e sabedoria, mas não preciso de te dizer mais nada. Por agora, quero apenas desejar-te uma boa viagem. Adeus, velha amiga. Amor, vejo-te no caminho”, escreveu Cohen. 

Dois dias depois, a resposta via e-mail informava que Marianne tinha morrido. “Deu-lhe paz de espírito, saber que soubeste da sua condição. A tua bênção para esta jornada deu-lhe força extra”. 

Os amigos que a acompanharam no leito da morte cantaram-lhe as canções de Cohen, desde “Bird on the Wire” (1969) e “So Long Marianne” (1967).

“Now so long, Marianne, it's time that we began
To laugh and cry and cry and laugh about it all again”





Poeta e escritor, depois o músico
Cohen nasceu no Quebec, no Canadá, a 21 de setembro de 1934. no seio de uma família judaica, culta e abastada. Na adolescência, criou a banda de música country The Buckskin Boys, tendo aprendido nessa altura a guitarra clássica e “algumas notas de flamenco”. 

Na literatura, a poesia do espanhol Frederico García Lorca foi a sua maior influência. Aliás, a escrita é o primeiro elemento de destaque na sua carreira. Pouco depois de sair da faculdade, publicou vários livros de poesia, o primeiro “Let Us Compare Mythologies”, editado em 1956.  
 
No início dos anos 60, depois de uma breve passagem por Londres, comprou uma casa na ilha grega de Hydra, onde a sua escrita se tornou mais profícua, desde a coletânea de poesia “Flowers for Hitler” (1964) e os romances “The Favourite Game” (1963) e “Beautiful Losers” (1966), este último que viria a tornar-se um bestseller.  
 
Ainda assim, insatisfeito com o pouco sucesso da obra publicada, Cohen virou-se para a música. Em declarações recentes, no entanto, o poeta diz que nunca, em algum momento, prescindiu da música.  
 
Quando, no início de outubro último, Bob Dylan recebia de forma surpreendente o Prémio Nobel da Literatura, muitos fãs defenderam que a distinção deveria ter sido entregue a Leonard Cohen, pela lírica e melancolia recorrente nas suas canções.

Apesar da centralidade que as suas letras ocuparam ao longo da carreira, a música estava sempre em primeiro lugar. “Todos os meus escritos têm uma guitarra como pano de fundo. Mesmo os romances”, referiu.  
  
No romance “The Favourite Game”, uma das personagens principais confessava querer “tocar as pessoas como um mágico, modificá-las, magoá-las, deixar a minha marca”. Cohen viria a fazê-lo através da música. 



O êxito universal de “Hallelujah”, auge da sua faceta enquanto músico e liricista, (do álbum Various Positions, de 1984) foi lançado depois de vários anos de luta pessoal. 

Alan Light, que escreveu “The Holy or the Broken” (livro publicado em 2012 e dedicado a uma música que “resiste à passagem do tempo”, como a caracterizou o New York Times), conta que Cohen demorou cinco anos a escrever a música e chegou a ser encontrado em roupa interior, rodeado de vários rascunhos da letra, a bater com a cabeça no chão de um quarto de hotel. O esforço de Cohen viria a ser reproduzido e adaptado até à exaustão por vários músicos, entre eles Jeff Buckley, cuja versão ajudou a colocar esta música no altar da música contemporânea.
 
 
“I did my best, it wasn't much
I couldn't feel, so I tried to touch
I've told the truth, I didn't come to fool you
And even though it all went wrong
I'll stand before the Lord of Song
With nothing on my tongue but Hallelujah”




Entre o sagrado e o profano
Viajou para Nova Iorque para se afirmar na música em 1966, aos 31 anos, e fez uma audição com John Hammond, o produtor que também descobriu Bob Dylan, Aretha Franklin e Bruce Springsteen. Assinou pela Columbia Records, que seria marca de Cohen por cinco décadas. 

O primeiro álbum, “Songs of Leonard Cohen”, lançado em 1967, não teve grande receção, como lhe acontecera com os livros. Destacou-se a canção “Suzanne”, dedicada a um outro grande amor da sua vida, com quem teve dois filhos: a fotógrafa Lorca Cohen e o músico Adam Cohen. Este foi o primeiro grande êxito de Cohen e marca a influência das mulheres na sua música, apesar de nunca ter sido casado.

“And you want to travel with her, and you want to travel blind  
And you know that she will trust you  
For you’ve touched her perfect body with your mind “

 


Tal como no fim da sua carreira, os primeiros trabalhos são marcados pela ambivalência das canções, sempre entre as referências religiosas, sexualidade e confissões pessoais. Amor e ódio, desejo e espiritualidade, guerra e paz, depressão e alegria, ou mesmo a procura de um sentido para a vida, são temas recorrentes da discografia. 

À voz baixa, profunda, triste, juntava-se uma personalidade que foi alternando a vida entre grandes momentos de aparições públicas e enormes momentos de solidão e isolamento. Fez uma pausa na carreira musical durante grande parte dos anos 90 para viver num mosteiro budista.

Nunca abandonou a sua origem judaica, mas apoiou-se no budismo durante os episódios mais depressivos que sempre o acompanharam. Os seus temas não fogem a uma melancolia inerente, assombrada pela morte, o esquecimento, bem como as constantes referências a Jesus e a passagens bíblicas. 

Os admiradores e fãs de todo o mundo viam na sua voz e letras uma espécie de “profecia espiritual”, com raízes inegáveis no country, rock, folk, blues, jazz, mas também com os toques de orquestra que chegam à música clássica e os coros femininos que fazem lembrar a música religiosa. 

Durante o tempo de clausura de Cohen, nos anos 90, Kelley Lynch, empresária de Cohen, aproveitou-se dos lucros do cliente, tendo acumulado mais de cinco milhões de dólares. Foi condenada a 18 meses de prisão, mas Cohen não foi ressarcido, o que o obrigou a voltar à música.  


Saída pela porta grande
Símbolo de uma geração de ouro, Cohen chega aos anos 2000 e conquista novas gerações com os últimos trabalhos. Editou nove álbuns depois dos 70 anos, realizou várias tournées mundiais e voltou a encantar o público, agora um músico aclamado no seu fato e no seu chapéu. “Um notável renascimento na reta final da carreira”, escreve o Washington Post. 

Para escrever as músicas, Cohen transportava sempre consigo um bloco de notas, não fosse surgir-lhe um rasgo de inspiração. Mais recentemente, o músico registava mesmo as suas ideias de letras e melodias no smarthphone.
 
Foi galardoado com um Grammy de carreira em 2010 e escreveu praticamente até morrer.

“O meu pai faleceu pacificamente na sua casa, em Los Angeles, com o conhecimento de que tinha concluído o que sentia ser um dos seus melhores trabalhos”, disse à Rolling Stone Adam Cohen, um dos filhos de Leonard.

Os últimos três álbuns foram editados já na segunda década do século XXI, com a classe e a marca de um músico já consagrado, mas nunca prescindindo de novas sonoridades e de enorme qualidade musical. 

Old Ideas (2012), Popular Problems (2014) e o último trabalho agora lançado, “You Want it Darker” (2016), obtiveram sempre enorme aclamação entre os peritos e os fãs. 

"I was born in chains but I was taken out of Egypt
I was bound to a burden, but the burden it was raised
Oh Lord I can no longer keep this secret
Blessed is the name, the name be praised."




“Cohen era a eminência sombria num pequeno panteão de cantores e autores de letras influentes que emergiram durante os anos sessenta e setenta. Apenas Bob Dylan teve uma influência mais profunda na sua geração, e talvez apenas Paul Simon e Joni Mitchell o tenham igualado como poetas da música”, escreve a Rolling Stone no obituário publicado esta sexta-feira. 

Ao mesmo tempo que se revela nas suas canções, Cohen permaneceu sempre um mistério, preso e inseparável do seu espiritualismo. À revista New Yorker, o cantor dizia em outubro: “Estou pronto para morrer. Espero que não seja muito desconfortável”. 

Numa declaração posterior, o dualismo e a mística de sempre: “Disse recentemente que estava pronto para morrer. Mas acho que estava a exagerar, sempre fui muito dramático. Pretendo viver para sempre”.

Fotografias: Luke MacGregor, Eloy Alonso, Valentin Flauraud - Reuters