Paulina Chiziane tem um certo receio de aviões e de viagens longas. Mesmo assim, continua a ir aos sítios onde a convidam. Se a neta não precisasse de voltar à escola, ficava mais tempo em Portugal. A escritora marcou presença nas Correntes d´Escrita, da Póvoa do Varzim. Diz quem a ouviu que a intervenção sobre o amor no contexto poligâmico foi “fantástica”.
Nesta viagem fez-se acompanhar pela sua neta. Foi a avó que pediu ou a neta que quis vir?
Eu é que pedi para ela ir comigo porque de vez em quando o joelho fica zangado.
Ela veio pela primeira vez. Vai aprender a sonhar e saber que o mundo não é tão pequeno como ela imagina.
A Paulina também é uma mulher do mundo ou contentava-se se estivesse sempre em Moçambique?
O mundo faz-me bem. Eu gosto do mundo. Gosto das contradições. Gosto dos problemas.
Imagino que a sua vida tenha mudado completamente após vencer o Prémio Camões em 2021...
Imagina! Na pandemia eu tinha-me desligado completamente de muitas coisas e estava aí tranquila quando me dizem. E eu, espera aí, não dever ser verdade! Disseram vai se trocar vai se arrumar. Eu? Ninguém me tira daqui! Só acreditei quando vi o comunicado do chefe de Estado português. Depois, a seguir, o nosso chefe de Estado também fez um comunicado. Foi então que disse: isto é verdade.
O que mudou desde então?
Mudou muita coisa . Das várias coisas que mudaram foi a minha agenda pessoal. Já não tenho tempo para os meus amigos, para aquelas coisas do dia a dia que eu gostava tanto de faze., como por exemplo para ir ao mercado, daqueles nossos mercadinhos pequenos.
Eu gosto de ir comprar o meu tomate a cebola, etc., e quando eu entro no mercado aquelas mulheres pobres, que elas são, me oferecem tudo por gratidão. E cada uma delas...
E até se sente incomodada?
É uma emoção tão grande que eu digo, olha esta pessoa nada tem, isto que vende é o pouco que poderia vender para sobreviver mas me oferece. É uma generosidade daquele povo que eu disse não, vou assim muito de vez em quando: chego e compro a correr e venho-me embora. Essa rotina mudou, mas tem coisas boas também. Tem coisas boas como poder falar e ser ouvida. Eu não era anónima, mas a minha voz não falava tão alto. Então este prémio conseguiu-me elevar um pouco mais. E vamos la ver se faço um bom uso dele. Vou tentar fazer o melhor.
Então virou uma ativista. Como se diz agora, uma influencer.
Eu sempre tive uma costela de ativismo e tenho feito uma série de coisas, mas nem sempre este ativismo era tão valorizado como hoje é.
Por exemplo, um dos trabalhos que eu fiz em Moçambique foi escrever depoimentos de mulheres nas prisões. Foi um trabalho tão bonito dar voz a estas mulheres! Publicámos um livro muito interessante chamado A voz do Cárcere. Eu e um colega meu, o Dionísio Baul. Tenho estado a fazer muitas coisas.
Sobre esse assunto lembro-me de a ouvir dizer que mulheres nas prisões lhe contaram que tinham descoberto a sua força interior: que mataram os seus homens e por isso estavam ali.
É um dilema. É um dilema porque a maior parte delas sempre achou que não tinha força. Sempre achou que não tinha poder nem direito a nada e surpreendeu-se com a sua própria força num momento fatal. Então a grande questão que se levanta é: é preciso estar na linha do perigo para descobrir a sua força? Não é melhor descobrir a sua força antes para prevenir o mal? Então como é que é… esse sistema de educação, seja cultural seja religioso, seja dessas coisas todas que dizem, que a mulher tem que apanhar e ficar calada?
Ainda hoje é assim?
São altos e baixos. Há todo um trabalho dos movimentos cívicos, nas universidades.
Mas vem a religião. É como ir à igreja - está na moda. As igrejas evangélicas que invadiram o país todo estão a tentar invadir a África inteira e chegam com aquelas ideologias deles de supremacias e pecados e maçãs. Eu lembro-me de ter sido convidada para participar num grupo de mulheres que se chama As mulheres Submissas a Cristo.
Quem a convidou não a conhecia.
Conhecia. Pensou que me ia evangelizar.
Então uma mulher é formada, recebeu todos estes apoios do governo, da sociedade civil, das agências internacionais para ter poder, e de repente faz parte da igreja, faz parte das Mulheres Submissas a Cristo? Se é submissa a Cristo, tem de ser submissa ao marido. É complicado.
Portanto há momentos de avanço e momentos de retrocesso.
Sim, mas é uma luta que tem de continuar.
E como está o filme que a levou ao Brasil?
É um filme com uma empresa da Bahia. Já fizemos as filmagens o resto não sei. São três escritoras diferentes. Nós trocávamos cartas umas com as outras. Conversávamos e finalmente encontrámo-nos na Bahia. Vai ser lançado este ano.
Gosta muito do Brasil?
O Brasil faz parte de mim, mas eu gosto do mundo de uma maneira geral. Aprendi muitas coisas com Portugal, aprendi muitas coisas com o Brasil e tenho viajado pela America Latina.
Às vezes não vou mais longe, por exemplo Estados Unidos, porque são tantas horas de voo que fico logo muito apavorada. Resumindo, eu vou quando me convidam sempre que possível.
E sempre com uma mensagem: a mensagem do amor, da mulher?
Para mim, acima de tudo, é a mensagem de humanidade porque nós às vezes ficamos zonzos e pensamos que sabemos muita coisa do mundo, porque não temos tempo nem de escutar nem de dialogar com os outros.
E sempre que eu tenho uma oportunidade para dialogar com alguém de qualquer outra cultura eu dou um pouco de mim e também recebo dessas outras pessoas. Foi isso que me fez crescer a Deus.
Sabe que a sua terefa ainda vai continuar…
É algo que faço com muita gratidão. Eu sempre digo, África é o que é hoje, Moçambique é o que é, porque houve líderes que nos deixaram esta herança, de lutar por um mundo melhor, um mundo sem racismo, um mundo sem tribalismo, um mundo sem conflitos. Foram-se. E temos de nos refazer. Temos de continuar a difundir esta mensagem da necessidade de construir um mundo melhor. Porque este mundo tem lugar para todos! Não há razão para essas guerras. Enfim, eu faço o que posso fazer.