O historiador de arte Pedro Lapa revelou hoje à agência Lusa que existe uma coleção comprada em conjunto pelo Estado e pelo colecionador Berardo, com 214 peças, sobretudo de artistas portugueses, cujo futuro está em aberto.
O ex-diretor do Museu Coleção Berardo, instalado no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, recordou a existência desta "coleção suplementar" à coleção de 862 obras de arte cedida ao Estado, e à qual três bancos credores pretendem aceder para cobrar uma dívida de 962 milhões de euros.
"No âmbito do primeiro protocolo [assinado em 2006 para a criação do museu] foi estipulada a aquisição de uma coleção suplementar, adjacente a esta, que seria a Coleção Estado/Berardo, e para [a constituição dessa coleção] o Estado poria [anualmente] meio milhão de euros, e o comendador Berardo mais meio milhão", recordou o antigo diretor do museu, em declarações à agência Lusa, referindo-se ao chamado Fundo para a Aquisição de Obras de Arte, a ser financiado pelas duas entidades.
De acordo com Pedro Lapa, que dirigiu o Museu Berardo durante seis anos, e saiu em 2017, mantendo-se como colaborador na curadoria pontual de exposições, as aquisições para esta Coleção Estado/Berardo, assim designada no acordo, só decorreram "em dois anos".
"Houve depois algum desentendimento entre as partes, e a coleção quedou-se pelas 214 obras", que, segundo o curador, foram exibidas regularmente ao longo dos anos.
A chamada Coleção Estado/Berardo "não tinha absolutamente qualquer missão definida, apenas o facto de, chegando ao fim, não havendo nenhum acordo, cada parte poderia ficar com 50% da coleção, ou comprar os 50% à outra e liquidar a situação".
Questionado sobre o estatuto da coleção e os seus contornos, Pedro Lapa disse: "Foi demasiado vaga no meu entendimento, pouco precisa, pouco estruturada, numa perspetiva museológica e nacional, relativamente às necessidades do próprio meio".
Contudo, o historiador de arte considera que, nos dois anos em que foi crescendo, esta coleção "teve algum papel significativo, sobretudo para o contexto nacional, porque é constituída por nomes de artistas portugueses em mais de 50%, e durante esses anos foi essencialmente um motor de compra das obras de arte a nível nacional".
"Foi importante porque os artistas produzem, e depois não existem aquisições da parte das instituições culturais, que praticamente não compram, ou compram por valores ridículos, e não sustentam aquilo que é o mais elementar grau de constituição patrimonial do presente", opinou o também antigo diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea - Museu do Chiado.
De acordo com Pedro Lapa, a forma de aquisição das obras não estava estipulada no contrato.
"O comendador não comprou obras no valor estipulado, o que em termos jurídicos não tinha impedimento, mas o Estado entendeu que não deveria ser assim e, a partir daí [as aquisições pararam], e o mais grave de tudo foi que ambos se escudaram nesta posição", recordou.
Pedro Lapa disse ainda que "nos restantes oito anos não houve aquisições, e quem perdeu foi o contexto nacional, quer os artistas, quer a constituição patrimonial sobre o presente da produção artística".
"No protocolo mais recente [assinado em 2016], esta situação foi pura e simplesmente descartada e deixou de existir", lamentou.
As consequências, no seu entender, contribuíram para uma situação que considera habitual no país: "Chegamos a esta situação de queixas generalizadas do meio artístico em que não há aquisições. O Museu do Chiado não faz, Serralves faz algumas aquisições, a Fundação Calouste Gulbenkian também, e alguns privados, mas isto é perfeitamente ridículo".
"As situações de improviso sucedem-se, como esta da Coleção Berardo, em que se chegou a um impasse e a uma incógnita sobre um acervo muito valioso", disse.
O acordo entre o empresário e colecionador José Berardo foi assinado em 2006 e o museu abriu em junho de 2007, com um conjunto de 862 obras avaliadas em 316 milhões de euros pela leiloeira internacional Christie´s.