O escritor Valter Hugo Mãe revisita a infância e reúne memórias de "um tempo feliz", até à adolescência, na obra "Contra Mim", hoje distinguida com o Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores (APE).
Era "um tempo de liberdade e imaginação", disse o escritor, em entrevista à agência Lusa, no passado mês de outubro, quando da edição do livro.
"Fui sempre uma criança imaginativa", disse Valter Hugo Mãe, reconhecendo que continua a ser um "menino sonhador". Como o mais novo dos quatro irmãos, a sua função "era ser criança": "Esse era o meu papel, ninguém dependia de mim para quaisquer tarefas", afirmou.
A obra "Contra Mim" é constituída por curtas narrativas, que se podem confundir com contos, como reconheceu o autor, alertando, todavia, não o ser. "A lógica de leitura é a mesma de qualquer romance. Aliás, todas as vidas são a imitação de um romance".
"Esta é em parte uma verdade, pelo menos a minha verdade, o que retive e que conto à minha maneira, o que guardei do que vivi e do que fui", garantiu à Lusa.
Valter Hugo Mãe desfia estas histórias, como quem as conta à lareira numa aldeia do Norte do país, de onde é originária a sua família.
A primeira história é de uma memória familiar, antes de ter consciência de si: o namoro não consentido entre o seus pais, que acabou num casamento, e a partida do casal para Angola, onde Valter nasceu.
De Angola ficaram esparsas recordações, a alegria, as pessoas vestidas de cores garridas, as estatuetas de pau preto e os livros de `cowboys` do pai, entre outros objetos que por lá ficaram, quando a Revolução dos Cravos, a 25 de Abril de 1974, surpreendeu a família numas férias em Portugal.
Caxinas, em Vila do Conde, acabaria por ser o seu destino, localidade onde cresceu e se radicou.
No conjunto das memórias da infância, da família, do crescimento, está também o afastamento de África dos portugueses, aqueles que pensavam que, nesse outro continente se comia terra e, por isso, as pessoas ficavam escuras, como uma vez lhe contaram, à porta de uma mercearia, quando tinha seis anos.
Hugo Mãe disse à Lusa que, "por mais que se afaste da sua obra, o escritor tem, por vezes, necessidade de que o livro passe pela sua vida e a traduza". Por isso "Contra Mim" reflete-o especialmente, embora qualquer uma das suas outras ficções seja também, de outra maneira, uma dimensão sua.
"Contra Mim" é igualmente resultado do período de confinamento, no ano passado, que levou o autor a refletir sobre si e sobre esse "tempo sem pecado".
"Surgiu essa necessidade, que me favorece", disse, "uma certa nostalgia", reconheceu à Lusa.
Sobre o título, afirmou: "É um enigma".
Para o júri do Grande Prémio de Romance e Novela da APE, o reconhecimento de "Contra Mim" justifica-se "pela qualidade de construção narrativa, na cuidada arquitectura do texto, e pela expressividade poética da linguagem, na poderosa evocação de tempos e de lugares da infância".
"Esta escrita recria, sensível e ironicamente, o olhar comovido da criança, na descoberta do mundo e das palavras, e nesse gesto de resgate podemos ler a projecção de um autor a desenhar-se perante os seus leitores", prossegue o júri desta edição do prémio, coordenado por José Manuel de Vasconcelos, e constituído por António Pedro Pita, Carlos Mendes de Sousa, Manuel Frias Martins, Maria de Lurdes Sampaio e Rita Patrício.
Valter Hugo Mãe publica regularmente, no Jornal de Letras, Artes e Ideias, as crónicas de uma "Autobiografia Imaginária", e, no Notícias Magazine, as da "Cidadania Impura".
É autor de sete romances, entre os quais "O remorso de Baltazar Serapião", que venceu o Prémio José Saramago/Círculo de Leitores, em 2007, e "A Máquina de Fazer Espanhóis", distinguido com o Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura, em 2012.
O Grande Prémio de Romance e Novela 2020, da Associação Portuguesa de Escritores, conta com o apoio da Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas, e tem um valor pecuniário de 15.000 euros
O Grande Prémio de Romance e Novela da APE foi atribuído pela primeira vez em 1982, tendo sido distinguido o romance "Balada da Praia dos Cães", de José Cardoso Pires (1925-1998).
Agustina Bessa Luís, António Lobo Antunes, David Mourão Ferreira, Vergílio Ferreira, João de Melo, Paulo Castilho, Maria Gabriela Llansol, José Saramago, Helena Marques, Mário de Carvalho, Teolinda Gersão, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, Maria Velho da Costa, Lídia Jorge, Vasco Graça Moura estão entre os vencedores do prémio, a que se juntam, em edições mais recentes, autores como Rui Cardoso Martins, Gonçalo M. Tavares, Ana Teresa Pereira, Alexandra Lucas Coelho, Ana Margarida de Carvalho e Paulo Varela Gomes.
No ano passado a obra vencedora foi "Tríptico da Salvação", de Mário Cláudio, e, no ano anterior, "Um Bailarino na Batalha", de Hélia Correia.