Escritor José Mendonça lamenta ausência de impacto da literatura em Angola
O escritor angolano José Luís Mendonça, que lança terça-feira em Portugal "Um pássaro na Lua", lamentou a ausência de impacto da literatura na governação de Angola e admitiu que já sofreu ameaças pelas opiniões e obras que publica.
"Acho que tenho o direito de defender o meu povo. Nunca pertenci ao Governo, sempre fui um trabalhador -- eu chamo-me um intelectual proletário -- e eles não têm muito por onde me pegar", declarou o romancista.
Professor de Língua Portuguesa na Universidade Agostinho Neto, em Luanda, José Luís Mendonça, de 69 anos, falava à Lusa a propósito do lançamento pela editora Guerra e Paz, no dia 08 de abril, do seu novo livro, "Um pássaro na Lua".
Ao retomar temas das últimas obras, relacionados com a situação política, económica e social na antiga colónia 50 anos depois da independência de Portugal, o romance "revela-nos os sintomas da profunda degenerescência do regime político vigente em Angola, desde 1975, escalpelizando a má governação, a pobreza e a repressão que o caracteriza", segundo a editora portuguesa.
"Eu não cometi nenhum crime contra o meu povo e, portando, acho que tenho o direito de falar sobre o que está mal. Ando livremente pela rua, praticamente eu não tenho medo, [pois] não devo nada a ninguém e não roubei nada do Estado", disse o autor.
Ressalvando que, em Angola, "o livro sai, mas é mais lido em Portugal", acrescentou: "há outra coisa que nós temos aqui [em Angola], as pessoas leem pouco, os dirigentes não leem, os professores leem pouco e não há livros à venda".
"Então, o livro não tem grande impacto em Angola, porque as pessoas não leem mesmo. Os meus alunos não leem, o livro é muito caro e também não o compram. A literatura não exerce uma grande influência sobre a forma de governar", lamentou José Luís Mendonça.
Na sequência da atividade intelectual que desenvolve, o escritor e jornalista admitiu sofrer "muitas ameaças".
"Ameaças pelo telefone que são enviadas para um familiar meu a dizer que me vão matar", explicou.
Para o ex-adido de imprensa da UNICEF em Luanda, "há muita repressão e a tortura pratica-se extrajudicialmente" no país.
"As práticas de tortura e de prisões arbitrárias, embora numa escala reduzida, continuam. Continua a haver uma repressão em Angola que se assemelha em certo grau à repressão do tempo colonial", disse.
Neste contexto, José Luís Mendonça enfatizou que o 27 de Maio de 1977, tentativa fracassada de golpe de Estado liderada por Nito Alves, ministro do Governo de Agostinho Neto, a que se seguiu o assassinato de milhares de alegados conspiradores, é um acontecimento da história recente de Angola "que nunca foi fechado".
"Nunca se quis assumir que houve aqui crimes contra a Humanidade, o principal dos quais foi a tortura. De modo que, ainda no passado, os verdugos do 27 de Maio, aqueles que cometeram crimes, foram condecorados por ações prestadas à pátria", criticou.
Na sua opinião, "os países africanos saídos do colonialismo deviam ter outra postura em relação ao povo governado".
"Dizem que só podem governar com ditadura. Não se pode governar este povo sem o chicote?", questionou o criador de "Um pássaro na Lua".
Importa "não deixar morrer a esperança numa educação de qualidade", referiu, para defender que será essa a base da democratização do país.
Quanto aos 50 anos da independência de Angola, em sintonia com as críticas formuladas, concluiu que "não há nada para celebrar".
"Um pássaro na Lua" relata "a estória quase sobrenatural de Kahitu, personagem nascida com a síndrome de `tetra-melia`", muda, sem pernas nem braços.
"Mesmo com essa condição, Kahitu chega a presidente de Angola", após ter granjeado "o amor do povo e a simpatia dos altos membros do partido no poder, ganhando as eleições", segundo a sinopse.
A título póstumo, o escritor dedica o livro a Mário Pinto de Andrade, um dos fundadores do MPLA, "político sem apego ao poder", e ao jornalista Ricardo Mello, "mártir da liberdade de imprensa".
"Chuva novembrina" (1981), "O Reino das Casuarinas" (2014) e "As metamorfoses do elefante" (2022) são outras das obras publicadas por José Luís Mendonça.