Democracia cultural pressupõe cruzamento entre cultura e educação

por Lusa

A interdependência entre as instituições culturais e educativas foi hoje apontada como aspeto fundamental para criar uma democracia cultural, durante uma conferência internacional, que decorreu desde terça-feira, na ilha do Porto Santo.

"A educação tem de estar no centro das políticas culturais, as escolas têm de ser polos culturais, e as instituições culturais têm de reforçar o seu papel educativo", afirmou o comissário do Plano Nacional das Artes (PNA), Paulo Pires do Vale.

Este é um dos objetivos da Carta do Porto Santo, um documento com princípios que repensa os paradigmas da cultura, e que foi hoje lida pelo responsável durante a conferência subordinada ao tema "Da democratização à democracia cultural: repensar instituições e práticas", que decorreu em formato presencial e `online`.

O Plano Nacional das Artes assumiu a organização desta conferência, a convite do Ministério da Cultura, inserida no contexto da presidência portuguesa do Conselho da União Europeia.

Segundo Paulo Pires do Vale, "valorizar as especificidades e possibilitar que os alunos tenham acesso a várias formas de manifestação artística ao longo da vida" é fundamental para, "ao longo do percurso escolar, desenvolver a imaginação, a sensibilidade estética e o pensamento crítico", para que cada pessoa descubra "a sua forma própria de participação cultural".

Promover nas instituições a diversidade, para multiplicar pontos de vista, sair das instituições para trabalhar com e na comunidade, aproximando públicos excluídos, e reconhecer que as instituições culturais são territórios educativos e que as instituições educativas são polos culturais, impõem-se como passos que têm de ser dados, para tornar a cultura acessível a todos, promovendo a diversidade e combatendo a exclusão, defendeu.

Estas ideias partem de um conceito base que é o da não hierarquização de valores, que pressupõe poder e dá origem à cultura de elites, um "paradigma que tem de ser mudado".

"O paradigma da democratização da cultura, conceito que vigorou desde finais dos anos 1960, visa tornar acessíveis ao público obras-primas da humanidade, uma visão bem intencionada, mas descendente, porque cria uma hierarquia: erudita, de massas e popular", afirmou, sublinhando que, neste âmbito, é "a erudita que merece ser democratizada".

Este paradigma desvaloriza as práticas culturais e os cidadãos são tratados como consumidores.

Já a democracia cultural, "implica um novo modo de relação entre as instituições e os cidadãos", em que "o conhecimento e acesso às grandes obras do passado não se deve opor ao ato criativo e a novas narrativas".

"A igualdade exige direitos e deveres, meios e recursos. A cidadania cultural é o reconhecimento desses direitos e deveres culturais", afirmou.

Como exemplo usou as ferramentas digitais, úteis para escutar as pessoas e as envolver, mas que o confinamento ditado pela pandemia veio mostrar que é "também um espaço de exclusão" e que "é preciso quebrar barreiras".

Entre os princípios orientadores preconizados na Carta do Porto Santo, contam-se incentivos às atividades culturais amadoras, promoção de programas acessíveis, revisão dos currículos do ensino obrigatório, criando ferramentas de introdução de culturas, artes e património, fruição cultural entre professores e alunos, e promoção de competências digitais.

Reconhecer o património de proximidade como património próprio, colaborar com instituições culturais, envolver-se em movimentos culturais e associativos, participar nos debates e consultas públicas sobre cultura, respeitar a diversidade multicultural e ser intransigente com discursos de ódio e discriminação, foram outros aspetos apontados pelo comissário do PNA.

O diretor-geral adjunto da Cultura da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Ernesto Ottone Ramírez, que participou neste mesmo painel, sublinhou a ideia de que "a diversidade cresce e exige respeito pelos direitos humanos", e que os governos têm a "responsabilidade de cuidar e assegurar a educação".

O responsável defendeu também a necessidade da educação através da cultura e das artes, "desde a educação pré-escolar ao ensino superior, em contextos formais e informais".

"Nos últimos anos, a UNESCO intensificou ações para apoiar a inter-relação entre diferentes áreas, nomeadamente entre a cultura e a educação", assinalou, aplaudindo a iniciativa de pensar "novos conceitos que põem a cultura no coração da democracia, para assegurar um desenvolvimento em igualdade e que não deixe ninguém de fora".

O vice-presidente da Comissão Europeia, Margaritis Schinas, destacou a importância da Carta do Porto Santo, por "empoderar as pessoas através da educação e cultura" e considerou que esta conferência "não podia vir em melhor altura".

"Estamos há mais de um ano em pandemia. O confinamento afetou toda a comunidade educativa e cultural, as atividades culturais estiveram paradas. Nos tempos pós pandémicos não nos devemos focar só na recuperação, mas em fortalecer a democracia, a educação e a cultura", acrescentou.

A ministra da Cultura, Graça Fonseca, a quem coube o encerramento da conferência, considerou tratar-se de um "momento histórico", a apresentação de "um novo documento estruturante da política cultural europeia", quase 14 anos após o Tratado de Lisboa.

"A Carta do Porto Santo não é um instrumento legal, mas não é por isso menos consequente. É um mapa orientador de princípios e recomendações para desenvolver a democracia cultural no seio da Europa", afirmou.

Para a governante, trata-se de uma "autoridade que se funda não no mandar, mas no consenso", construída com base no encontro e diálogo entre representantes dos Estados-Membros da União Europeia e de redes e organizações artísticas e culturais não-governamentais europeias.

"É uma ferramenta que permite às sociedades exercerem o labor cuidadoso do sistema da democracia cultural e ao mesmo tempo fornece-se às pessoas ferramentas para essa construção", acrescentou.

Graça Fonseca salientou também que o documento persiste na necessidade de envolver a comunidade com todo o seu património - local, regional, nacional e europeu -, e de fazer com que "as instituições sejam polos culturais e as instituições culturais sejam polos educativos".

A ministra considerou que a educação cultural é a base da democracia, e que é "fundamental" para que "a democracia continue a ser um espaço que nos torna pessoas enquadradas, que respeitam os outros e que não enjeitam a diversidade".

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