De Marrocos com amor. O primeiro livro editado em Portugal de Abdellah Taïa chega às livrarias
Abdellah Taïa é o primeiro escritor do mundo árabe a assumir-se homossexual. Aconteceu em 2006, quando o declarou publicamente numa entrevista ao jornal marroquino Telquel. Deu logo notícia e foi parar à primeira página. Sobre si escrevia-se no título: " Homossexual, contra todas as probabilidades".
Ele próprio já escreveu sobre os abusos sofridos na juventude na terra natal. Em Marrocos, as relações entre homens são crime. Só que ao mesmo tempo, a sua escrita é também fonte de denúncia e voz pelos marroquinos que emigram para França, enfrentando estereótipos e preconceitos raciais que aparentemente não existem na sociedade francesa. Mas, segundo Abdellah, existe até sob a forma de discursos de ódio.
É a segunda vez que viaja até Portugal. Mas desta vez será para apresentar o novo título publicado "Aquele que é digno ser amado". É importante para si vir até ao nosso país?
Sim, esta será a segunda vez que venho a Portugal. A primeira vez foi em 2010, já passaram 14 anos e eu adorei, adorei Lisboa e lembro-me de apenas andar pelas ruas, passear. Lembro-me do Jardim Botânico e fiquei muito impressionado. E agora será para apresentar o meu livro traduzido para o português em Portugal. Então, para mim, é muito. É um acontecimento muito importante na minha vida pessoal chegar com os meus livros a Portugal.
E dessa forma também poderá conhecer a cidade de Fernando Pessoa.
Sim, porque o escritor que mais amo e admiro no mundo é português. É o grande Fernando Pessoa. Tenho a impressão de que o encontro, como Abdellah Taïa, em todos os livros e em todos os poemas e em toda a prosa poética que escreveu e em todos os heterónimos que inventou. Esta história de duplos literários e de como lhes damos uma vida, uma morte, várias existências e várias vozes é algo que me diz profundamente. E também é algo que pratico na minha literatura. Pratico principalmente escrever voz, vozes, como se encontram várias vozes num só corpo.
E sobre o personagem principal deste livro - o Ahmed - já disse em entrevista enterior "sou eu, o meu sósia, o meu heterónimo", tal como em Pessoa. Pensa em todos os personagens como heterônimos? Ahmed é um heterónimo? Além disso você escreve muito. Já tem 12 livros publicados. Pessoa também produziu muito.
Na verdade, não escrevo muito rápido. Acontece que há vários anos tenho livros na cabeça que estou preparando e esperando a hora de escrever. Por exemplo, o livro que está a sair em Portugal, "Aquele que é digno de ser amado", pensei escrevê-lo em 1994, portanto, há 30 anos. Este livro estava aí à espera que eu o escrevesse porque me lembro de ter lido um livro, um clássico da literatura francesa chamado "Cartas Portuguesas" do século XVII, e é um livro composto por cinco cartas."O meu escritor favorito no mundo é Fernando Pessoa".
O livro inteiro tem apenas cinco cartas. E já em 1995, eu dizia para mim mesmo: Se um dia eu me tornar escritor, terei absolutamente que escrever um livro com este formato. Apenas cartas. E aí está, eu consegui. Então, na verdade, eu não sou rápido, só que tenho um monte de coisas que preparo e preparo e não faço nada além disso, basicamente.
"As Cartas Portuguesas" que surgem referidas neste seu romance é um livro português. Vejo que se interessa bastante pela literatura portuguesa.
Quando fui a Portugal em 2010, francamente, reconheci uma parte de mim em Portugal, porque basicamente Portugal não fica tão longe de Marrocos. Geograficamente, é muito próximo. E mesmo não conhecendo ninguém na rua, tive a impressão, como nos livros de Fernando Pessoa, de que já existia outro Abdellah Taïa que viveu em Lisboa e Portugal. Então há uma coisa em que eu acredito: a escrita e a literatura promovem o reconhecimento do outro, dos duplos que estão dentro de nós. Não é uma invenção. Para mim isso existe.
E tendo em conta o tema central de "Aquele que é digno de ser amado", os seus livros estão a ser lidos em África? E mais precisamente, em Marrocos?
Sim. Uma das coisas que evoluiu em Marrocos é que todos os meus livros que tratam franca e abertamente da homossexualidade, entre outros, estão disponíveis em Marrocos e podemos comprá-los. Eu estou muito ligado a Portugal mas continuo a ser um escritor marroquino com raízes no povo marroquino, nas classes pobres de Marrocos, porque foi lá que nasci e é onde acontece a maior parte da minha escrita."Nós não somos amados".
Por isso, quero que os meus livros estejam disponíveis para as pessoas em Marrocos. E acontece que desde que me tornei gay em 2006, a questão LGBTQ+ mudou um pouco. Em Marrocos, ainda existe a lei que proíbe a homossexualidade, que criminaliza a comunidade LGBTQI+. Mas a sociedade civil está a fazer as coisas acontecerem. E penso que o simples facto dos meus livros estarem disponíveis em Marrocos é um sinal de uma certa esperança, apesar de tudo.
Então significa que pode ir livremente a Marrocos sem receio de ser discriminado?
Vou a Marrocos todos os anos, várias vezes. Acho que é porque venho de uma classe trabalhadora e de um mundo pobre. Acredito que há algo em mim e nos meus livros que deverá comover as pessoas. E então talvez eles não queiram causar nenhum problema. Não sou alguém rico ou arrogante que quer simplesmente escandalizar Marrocos, mas sim alguém que deseja sinceramente mudar vidas.
O título" Aquele que é digno de ser amado" é uma expressão que em árabe se refere à fé em Allah como Aquele que é digno de qualquer adoração. Não será o título forte para a capa de um livro, como que uma provocação? Um meio de os muçulmanos se aproximarem do livro? Ou uma mensagem? A de que todos devemos ser aceitos e amados por Alá?
Hum, não são apenas os muçulmanos, não é apenas Alá, é também simplesmente o relacionamento com os outros. Infelizmente no mundo em que vivemos, em Marrocos e até em Portugal, em França, ainda existem muitos traumas de infância. Ainda há muita violência sexual acontecendo, muita rejeição, muito estupro e muitas pessoas que não gostam de mim crescendo apaixonadas. Nós não somos amados. É terrível que todas essas coisas aconteçam quando você é criança. E eu acho que em algum lugar a escrita existe para fazer existir e mudar as coisas e modificar a relação entre nós e também, como você disse, para provocar, pronto, para provocar, não só para ficar na ternura banal, mas sim no fogo."Este livro é um livro que nunca se acalma. É um choro. O tempo todo, o tempo todo. É como uma tempestade no meio do oceano".
E eu acho que este livro não é nada calmo. É um livro, é como uma tempestade no meio do oceano, esse livro é um livro que nunca se acalma. É um choro. O tempo todo, o tempo todo, o tempo todo. Um chamamento, mas ao mesmo tempo, não é um chamamento para acalmar as coisas, pelo contrário, para colocar ainda mais fogo e ondas na tempestade.
E é um livro um pouco triste, fala sobre amor. Do quanto o amor é triste, é doloroso. Será assim tão difícil viver como um homem gay em Paris, em França? Estará a falar também sobre si?
Sim, moro em França há mais de 20 anos e sou marroquino, sou árabe, sou muçulmano e infelizmente há muito racismo contra os árabes em França e na Europa, em geral. Estigmatizamos os imigrantes, estigmatizamos os muçulmanos e obrigamo-los a usar coisas que não fizeram nada. E sou homossexual, mas também sou imigrante e vivo num país onde a questão da colonização francesa ainda não é discutida abertamente.
Tal como a questão da colonização em Portugal, que também não é discutida abertamente.
Sim. Esta questão colonial da colonização francesa ainda não foi resolvida. E quando conversávamos com amigos, estávamos juntos, amigos franceses, impressionávamo-nos com o facto deles não saberem o que isso foi. Pois existe um esquecimento institucionalizado que faz os nossos franceses acreditarem realmente que a colonização é uma missão da civilização. E ainda assim continuamos a construir discursos de ódio contra eles, os emigrantes.
E com tanto a acontecer na sociedade francesa e seus emigrantes, a sua vida é pacífica ou já foi alvo de ameaças?
Ah sabe, assim que começamos a escrever imediatamente incomodamos as pessoas, os amigos, a família. As pessoas não querem que alguém que conheçam comece a escrever, muito menos a publicar. Então compreendi imediatamente que não devemos parar nas reações dos outros."Sou homossexual, mas também sou imigrante e vivo num país onde a questão da colonização francesa ainda não é discutida abertamente".
Ninguém pode dar-me o direito de não escrever. A escrita sou eu quem decide. Sou eu quem decide ir e aprofundar na escrita. As pessoas podem reagir como quiserem. Não devo parar nessas reações. Esse é o problema deles. Isso não me preocupa. Então, obviamente, existem insultos, existem ameaças, há muitas coisas que não param. Mas não é só para mim. Acho que é para todos que escrevem.
E quando diz que "a construção do mundo exige que tenhamos o coração duro", acredita que o mundo nos endurece o coração?
É preciso fazer um confronto na vida real, no amor com os pais, com os amigos e ainda mais na literatura. Vamos encarar de frente o amor, precisamos evoluir e movimentar as coisas. O confronto, embora seja muito difícil porque nunca tivemos um coração que treme - e abatido esse coração que treme deve durar num determinado momento para que o confronto seja possível e para que as coisas possam ser mudadas.
Não é sobre sermos gentis ou não, é sobre evoluir, fazer as coisas acontecerem.
Não vou passar a vida inteira à espera que os meus irmãos e irmãs em Marrocos me aceitem como homossexual. Em algum momento, tenho que ligar-lhes e dizer que sou isto e aquilo, e se você não aceitar, não me ligue mais!
E assim eles vão pensar. Temos que fazer algo radical, tanto na vida quanto na literatura.
Acredita que a homossexualidade continuará a ser crime em Marrocos?
Acho que isso acabará mudando.
Em Lisboa e Porto de 11 a 15 de março
O escritor marroquino estará em Lisboa e no Porto nos de 11 a 15 de Março para a apresentação da sua primeira obra publicada em português, em Portugal, uma vez que já existem outras publicações no Brasil traduzidas do francês.
O livro "Aquele que é digno de ser amado" é de 2018 mas agora tem a chancela da Editora Maldoror e tradução de Diogo Paiva.
Abdellah Taïa nasceu em Salé, próximo de Rabat, em Marrocos a 8 de Agosto de 1973. Começou os estudos superiores em Literatura Francesa na universidade de Rabat e concluiu o doutoramento na Sorbonne, em França. Atualmente, para além de escritor é também cineasta.