Boicote a Mulan e duas séries no Médio Oriente expõem propagandas nacionalistas

por Graça Andrade Ramos - RTP
Um grupo de pessoas pratica a dança de boxe de Mulan em Xangai, China, em 2006 Reuters

Mulan, da Disney, estreia esta sexta-feira em salas de cinema de toda a China, entre apelos a boicote e baixas expectativas de sucesso. Ao mesmo tempo, o mundo islâmico toma partido em torno de duas séries de televisão tendo como pano de fundo o Império Otomano.

Filmado parcialmente em Xinjiang e com um elenco de luxo – Jet Li, Gong Li, Donnie Yen e Liu Yifei - a mais recente produção da Disney foi criada tendo em mente as audiências chinesas, as segundas maiores do planeta.

Apesar disso, Pequim acaba de proibir a imprensa de falar do assunto ou de fazer publicidade ao filme, visto como vénia da Disney ao regime comunista, quando negociou a implantação, em Xangai, de mais um parque temático.

Pelo contrário, publicidade e que falem delas é o que pretendem, para as suas séries de televisão, antagónicas, os governos da Turquia, de um lado e do Egipto, dos Emirados Árabes Unidos e da Arábia Saudita, por outro.

Nos três, a base de contestação e de denúncia de propaganda são as características nacionalistas que veiculam e as narrativas e mitos a que dão origem. No caso de Mulan, a vassalagem ao Partido Comunista Chinês. No caso das séries, a visão apologética do Império Otomano ou a resistência dos povos árabes à hegemonia turca.

Holywood deixou escapar o monopólio de fazer o mundo olhar-se com lentes norte-americanas. Novos mercados e novas narrativas começam a ditar as suas leis. E a guerra ainda agora começou.

Direitos: Disney Pixar
Boicote a Mulan
Mulan tornou-se, para muitos, o mais recente pretexto para ação política, por questões de honra, de família e de país, os mesmos motivos que orientam a heroína e a levam a tornar-se uma guerreira.

Os primeiros apelos ao boicote do filme surgiram em 2019, quando Liu Yifei, a atriz sino-americana que protagoniza Mulan, apoiou a ação policial em Hong Kong contra os protestos pró-democracia.

Agora, a contestação visa os créditos finais do filme e a localização da ação em Xinjiang. Tradicionalmente, os créditos incluem agradecimentos às autoridades e instituições que facilitaram filmagens em locais reais. No caso de Mulan, são mencionadas oito entidades políticas de Xinjiang, incluindo departamentos de propaganda e um gabinete de segurança pública.

A região, na China ocidental, tem sido notícia pela repressão das comunidades e culturas islâmicas locais, especialmente Uighur, incluindo esterilização forçada das mulheres e internamentos em campos de reeducação. Um milhão de pessoas terão sido abrangidas.

Os críticos perguntam-se porque foi a Disney filmar a Xinjiang, quando a maior parte da produção foi rodada na Nova Zelândia. E especulam quantos “campos de reeducação” terão sido avistados pelas equipas de filmagem, sem qualquer denúncia por parte da Disney.
Ao serviço do PCC
O enredo e a caracterização da heroína são contudo o maior alvo dos críticos.

A Disney, afirmam, pegou numa lenda do folclore chinês, rica em complexidade, e reformulou-a como um drama nacionalista chinês moderno ao serviço do regime comunista.

“O cerne podre de Mulan enquanto filme, mais do que a sua produção, é a regurgitação dos atuais mitos nacionalistas da China, como parte de um filme confuso e aborrecido”, considerou Jeannette Ng.

Mulan é retratada como uma guerreira que defende o seu pai, a sua família e o seu Imperador. “Nem isto é a realidade histórica, ou sequer a realidade do poema original em que se baseiam as histórias, no qual Mulan serve um Khan da dinastia Wei do norte, não um Imperador chinês todo-poderoso”, explica a analista do jornal Foreign Policy. A mensagem do filme é “sirvam a China e esqueçam-se dos Uighur”, diz.

“Mulan é uma patriota mas não deveria ter sido colocada em Xinjiang, porque o patriotismo foi proibido em Xinjiang”, escreveu Abduweli Ayup, um ativista Uighur baseado na Noruega, no Wall Street Journal, entre apelos ao boicote. “Na China, o patriotismo é amar o Partido Comunista Chinês”.

A reação de Pequim foi rejeitar os boicotes como “mais um exemplo das ideologias extremistas sobre a China, correntes na opinião pública americana”. Entretanto, enviou uma nota aos maiores meios de comunicação a proibir a cobertura da estreia do filme. Não se sabe se devido às denúncias e às críticas, se como mais um episódio na atual guerra tarifária com Washington.
Impacto da consciência
O primeiro filme de desenhos animados sobre Mulan, não provocou quaisquer ressentimentos. Nem o parque temático da Disney em Xangai foi alvo de contestação. Com o pano de fundo das tensões entre a China e os EUA, a consciência mudou.

Os consumidores ocidentais costumavam ser indiferentes às políticas chinesas, pelo que os executivos ocidentais não as levavam em linha de conta nos seus planos de negócio, especialmente num caso tão irrelevante como o remake de um filme para crianças”, refere a analista Eva Dou.”

A guerra tarifária, a pandemia de Covid-19, originária da China, e a denúncia da campanha contra o extremismo que visou os Uighur, trocaram-lhes as voltas. Sinal desse embaraço, o silêncio do presidente executivo da Disney, Bob Iger, face à repressão policial nas ruas de Hong Kong, quando três anos antes celebrava a abertura do Parque de Xangai.

Mulan custou 200 milhões de dólares. A falta de publicidade, críticas mornas (classificação de 4.7 em 10 no site popular Douban) e a redução de audiências nas salas de cinema, devido à pandemia, vão ter um impacto sério nas receitas do mercado chinês. Esperam-se uns meros 150 milhões de yuan (cerca de 21 milhões de dólares).

O Presidente turco Tayyip Erdogan equiparado ao sultão otomano Mehmed II, num cartaz frente a Hagia Sophia, agosto de 2020 Foto: Reuters
O ressurgimento do nacionalismo turco
No Médio Oriente, a guerra passou da realidade para a ficção. Especificamente para a televisão, com duas séries a lutar por transmitir duas narrativas opostas de uma parte da História.

O tiro de partida foi dado pela Turquia. O Governo do Presidente Tayyip Erdogan tem na última década dado sinais de querer expandir a sua influência na região, com diversas cotoveladas às principais potências islâmicas e à União Europeia.

À boleia da Rússia, a Turquia aproximou-se do Irão. Contra a vontade dos Países Árabes, estabeleceu uma zona de proteção no norte da Síria, ao lado dos russos, e amordaçou os grupos armados sunitas que, financiados por sauditas e pelas monarquias do Golfo, tentavam derrubar o Presidente sírio, Bashar al-Assad.

Ancara tem, ainda, apoiado militarmente o Governo de Acordo Nacional líbio, contra o general Hafter, escolhido dos mesmos países do Golfo e do Egipto para dominar o país. Procura entretanto controlar os recursos muito desejados do Mediterrâneo Oriental, potencialmente uma fonte de hidrocarbonetos tão importante como o Golfo Pérsico e objeto já de acordos entre potências tão variadas como o Egipto, a Arábia Saudita, a Grécia e a França.

Tayyip Erdogan apela sem hesitações ao nacionalismo turco e agita para isso a bandeira o Império Otomano, que apresenta como defensor da fé islâmica. Esta foi a razão para a reconversão em mesquita da Hagia Sophia, o mais importante templo cristão do Império Bizantino, entretanto transformado em Museu. Erdogan precisava de um templo para rivalizar com outras grandes mesquitas do mundo árabe.
Ertugrul e a conquista do Islão
Para construir e apoiar a sua narrativa, e conquistar mentalidades, o Governo de Erdogan tem financiado produções históricas, ou dizis, cuja narrativa ameaça o monopólio ideológico dos Estados Árabes sobre o mundo islâmico.


O mais importante exemplo desta estratégia é Dirilis: Ertugrul, uma série sobre a vida e obra de Ertugrul, pai de Osman, que lançou as bases do Império Otomano.

Com audiências recorde na Ásia, em África e no Médio Oriente, as cinco temporadas da série tornaram-na um dos maiores instrumentos de propaganda de Ancara. Não só glorifica o Império Otomano como fornece apoio ao ideal no novo otomanismo que pretende ultrapassar o embaraço do secularismo do século XX.

Sem surpresa, a transmissão de Dirilis: Ertugrul foi proibida nos Emirados Árabes Unidos, na Arábia Saudita e no Egipto.

Os três contestam a narrativa nacionalista turca, que, afirmam, apresenta apenas um aspeto da realidade histórica e coloca os otomanos como os verdadeiros guardiães do islamismo.

Além disso, argumentam, branqueia a humilhação e subjugação dos árabes, sofrida sob o Império Otomano.
Resposta com Reinos de Fogo
Para contrariar os efeitos de Ertugrul, os três produziram uma outra série, denominada Mumlikat al Naar ou Reinos de Fogo, realizada pelo britânico Peter Webber.

São 14 episódios sobre a resistência por parte do comandante mameluco, Toman Bey-Il, a um sultão otomano, quando este decidiu conquistar o Egipto. A série é apresentada como exemplo de rigor histórico. O foco é a ocupação forçada de terras por parte dos otomanos e o assassínio brutal de dinastias como a mameluca.



Ancara proibiu a exibição de Reinos de Fogo no país e denunciou a "politização da Arte". As séries turcas afirmou o conselheiro do Presidente Erdogan para a Cultura, “nunca retrataram os árabes de forma controversa”, ao passo que Reinos de Fogo atinge de forma específica os sentimentos turcos.

A guerra pela narrativa histórica mais autêntica, ou mais correta de acordo com as respetivas visões, está a incendiar o Médio Oriente. Por exemplo, primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, aplaudiu Ertugrul sem reservas e promoveu a transmissão na televisão nacional de uma versão dobrada em Urdu.

Enquanto isso, o Egipto tem estado paulatinamente a remover todos os resquícios do poder otomano ainda presentes no Cairo. Praças estão a receber novas nomenclaturas, assim como mercados e locais populares, substituindo o nome de paxás otomanos pelo de heróis egípcios.

Terá de fazer algo mais para defender o prestígio da Universidade de Al Azhar, no Cairo, na definição do pensamento islâmico, contra o ressurgimento da Hagia Sophia, um expoente intelectual sob os otomanos.

Ignora-se se as televisões do mundo ocidental chegarão a transmitir Dirilis:Ertugrul e Reinos de Fogo. A série turca apresenta, por exemplo, os Templários, os cristãos e as Cruzadas, como opressores e o herói como libertador dos oprimidos e não se sabe como poderiam reagir as sensibilidades cristãs.

As duas séries são contudo sinal de que algo mais se passa no mundo além dos interesses de Washington, Londres ou Bruxelas.
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