A banda desenhada (BD) foi também uma revolução. Não é fácil situar o seu começo, mas há quem diga que foi em 1929. O livro de Hergé era, na Europa, o primeiro de uma história contada apenas com imagens e de diálogos contidos em filacteras. Era contra-revolucionário no conteúdo, mas revolucionava o modo de contar histórias em papel.
O autor nunca esteve na Rússia nem na URSS, e baseou toda a sua narrativa numa única obra, Moscou sans voiles, de Joseph Douillet.
A ideia de Wallez era uma história que mostrasse os malefícios do comunismo, bem na linha ideológica do jornal, simpatizante confesso do fascismo italiano.
O abade, admirador de Mussolini, tinha sobre a mesa de trabalho uma fotografia deste, assinada pelo punho do próprio Duce. O jornal, claramente alinhado, contava entre os seus correspondentes no estrangeiro um certo Léon Degrelle, líder do fascismo belga, também designado como rexismo.
Hergé não encontrou na altura objecções, e fez do livro Tintin no país dos sovietes o primeiro da série As aventuras de Tintin. Vários outros livros subsequentes cantaram sucessivamente os benefícios do colonialismo belga (Tintin no Congo) ou da civilização norte-americana (Tintin nos Estados Unidos), naquilo que para vários críticos era uma linha consistente de propaganda conservadora dirigida a públicos infantis.
A linha mussoliniana e rexista não agradavam inteiramente aos nazis e a ocupação alemã proibiu o jornal do abade. Em seu lugar criou-se um outro, Le Soir, em que Hergé encontrou colocação e trabalho.
Foi nessa época de ocupação que uma empresa alemã tentou negociar com Hergé os direitos de Tintin no país dos sovietes, para utilizar o livro como propaganda anti-soviética. Mas Hergé recusou a proposta.
No fim da Segunda Guerra Mundial, a sobrevivência do jornal Le Soir sob a censura alemã tornou-o suspeito de colaboracionismo e, com ele, Hergé. O cartoonista não foi alvo de nenhum processo, mas sim de várias acusações por esse motivo.
Com o tempo, e não muito, Hergé pôde mesmo ultrapassar o mau nome que lhe deram as acusações. Logo em 1946 fundou ele próprio uma revista de BD, com o nome Tintin, alimentando-se de histórias já publicadas do herói juvenil e do seu cão, Milou, e de outras criadas entretanto.
Hergé renegou entretanto o seu Tintin no país dos sovietes, pelo conteúdo ideológico agressivamente contra-revolucionário, e também pelo carácter primitivo da narrativa, que agrega uma série de episódios avulsos, sem verdadeiro enredo e sem outro fio condutor que não seja a reportagem supostamente encomendada a Tintin por Le Vingtième Siècle.
Esse foi também o motivo pelo qual a história permaneceu sempre a preto e branco, sem ter qualquer nova versão colorida - até muito depois da morte do autor.
Mas, para uma arqueologia da BD, o livro continua a ser um ponto de referência. Publicado entre 10 de janeiro de 1929 e 8 de maio de 1930, ele foi logo republicado a partir de outubro de 1930 pela revista francesa Cœurs vaillants. Esgotou-se rapidamente e foi objecto de várias reedições, todas piratas. Só voltou a ter uma reedição legal em 1973, e só neste ano de 2017 o foi, pela primeira vez, em versão colorida.
Entre as cenas emblemáticas, que foram reproduzidas vezes sem conta, está a de uma delegação de comunistas ingleses a quem é mostrada uma área industrial, cheia de actividade atestada pelas suas numerosas chaminés fumegantes. Tintin desconfia que alguma coisa não bate certo e vai investigar mais de perto. Descobre então que há um funcionário encarregado de queimar palha na base das chaminés - a velha tradição russa das "aldeias de Potemkine", todas elas cenário, enfeitado para receber dignitários vindos da capital e para enganá-los com as aparências.
Do mesmo modo, celebrizou-se a cena de uma eleição, de braço no ar, com três listas concorrentes. O comissário que conduz a eleição pergunta se alguém se opõe à lista comunista e, perante o silêncio da assembleia, proclama-a vencedora da eleição, por unanimidade.
Para além da simplificação primitiva em que se baseiam vários episódios do livro, Hergé inovou profundamente a técnica de ilustração, baseando-se na vanguarda da época, a quem aliás sempre prestou tributo. Entre as influências que recolheu conta-se a do cartonista francês Alain Saint-Ogan, ou em geral a da BD norte-americana, atentamente observada pelo próprio Léon Degrelle.
Entre os truques de marketing que o abade Wallez concebeu para explorar o êxito da série, e para potenciá-lo ainda mais, conta-se uma carta fictícia da GPU, o serviço secreto soviético, ameaçando o jornal de que, se não interrompesse a publicação "destes ataques contra os sovietes e contra o proletariado revolucionário da Rússia, encontrará a morte muito em breve".