Um naufrágio do século XIX, perto da Ponta de São Lourenço, colocou no mapa da Ilha da Madeira a primeira rota arqueológica subaquática do arquipélago. O navio SS Newton, um vapor com bandeira britânica, vinha de São Salvador da Baía carregado de café e açúcar e naufragou ali em 1881. A investigação arqueológica transformou os destroços em história que agora pode ser visitada.
O sítio já era conhecido pelos mergulhadores, mas a biodiversidade do local era o que mais se destacava e valorizava. "Era o interesse principal para levar lá as pessoas. O contexto arqueológico ficava em segundo plano, sempre esquecido, até porque ninguém o entendia", observa Marco Freitas, também investigador do CEAM.
As primeiras explorações subaquáticas remontam à década de 1970, mas sem grande expressão. Por isso, a investigação arqueológica pelos fundos do mar do Arquipélago da Madeira oferece muito potencial. Desde a sua descoberta que a ilha foi considerada um local estratégico no meio do Oceano Atlântico e "esteve sempre inserida em importantes rotas comerciais - nos séculos XV e XVI enquanto importante centro produtor de açúcar e nos XVIII e XIX de vinho, por exemplo", explica José António Bettencourt, Investigador do CHAM- Centro de Humanidades, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
"As fontes históricas dão por isso conta de numerosos naufrágios, sobretudo junto ao porto do Funchal, o principal do arquipélago. Alguns já foram identificados durante a prática de atividades marítimas, mas a maioria está sem qualquer registo científico", acrescenta José Bettencourt.
"As fontes históricas dão por isso conta de numerosos naufrágios, sobretudo junto ao porto do Funchal, o principal do arquipélago. Alguns já foram identificados durante a prática de atividades marítimas, mas a maioria está sem qualquer registo científico", acrescenta José Bettencourt.
Estes trabalhos arqueológicos partiram de dois registos históricos: "Sabíamos que tinham naufragado na zona da Ponta de São Lourenço duas embarcações do séc. XIX inglesas, o Forerunner e o Newton", sublinhou Marco.
Os destroços dispersam-se numa mancha com cerca 80 metros de diâmetro e entre os três e os 20 metros de profundidade. Os arqueólogos, ao mapearem o sítio, localizaram e registaram de forma precisa os vestígios através dos métodos de geo-referenciação que permitiram a interpretação do contexto arqueológico submerso.
Esquema adaptado da Fotogrametria global da Baixa da Badajeira, onde é possível observar a concentração dos destroços do SS Newton | CEAM
Neste projeto de investigação, "o primeiro objetivo era perceber se estavam os dois navios um em cima do outro, ou se os destroços faziam parte de apenas uma embarcação. A quantidade de material que encontrámos - as principais evidências como a hélice e a gigantesca caldeira, com sete metros de comprimento - apontava para que fosse apenas uma embarcação", acrescentou Marco Freitas.
O passo seguinte passou por descobrir a qual dos navios pertenciam os vestígios.
SS Newton ou SS Forerunner: prato do desempate
Corriam na ilha duas opiniões. "Uns diziam que eram os destroços do Forerunner (importante por ter sido o naufrágio que em 1854 levou à construção do farol da Ponta de S. Lourenço) e outros diziam que era o Newton (perdido em condições semelhantes, mas já após a construção do farol). No entanto, nunca ninguém tinha efectuado uma aproximação científica aos destroços, inclusivamente para verificar se estaríamos na presença de um ou de dois naufrágios", observa Augusto Salgado, Investigador do CINAV (Centro de Investigação Naval).
No projeto apenas estavam previstos mergulhos para prospeção e registo. Por isso, "a equipa teve de se limitar a localizar e recolher, quando possível, os materiais que se encontravam expostos e soltos. Foi nessa fase que surgiu o rebordo de um prato em loiça, com uma decoração com elos de amarra metálica (servia para segurar a âncora do navio) em tons verdes", descreve o historiador à RTP.
Composição fotográfica adaptada. Estabelece o paralelo com o bordo encontrado no local do naufrágio. Esq: Bordo de Prato, recuperado durante os trabalhos arqueológicos, mostra uma decoração estampada de uma corrente verde - Alexandre Brazão| Dir: Leilão da Baixela, com a marca da companhia de navegação - fonte: https://www.charlesmillerltd.com
A equipa contactou uma especialista em loiça, que confirmou que esse fragmento provinha de um serviço de faiança inglesa, mas a dúvida permanecia, "pois ambos os navios pertenciam a companhias britânicas".
O passo seguinte passou por descobrir a qual dos navios pertenciam os vestígios.
SS Newton ou SS Forerunner: prato do desempate
Corriam na ilha duas opiniões. "Uns diziam que eram os destroços do Forerunner (importante por ter sido o naufrágio que em 1854 levou à construção do farol da Ponta de S. Lourenço) e outros diziam que era o Newton (perdido em condições semelhantes, mas já após a construção do farol). No entanto, nunca ninguém tinha efectuado uma aproximação científica aos destroços, inclusivamente para verificar se estaríamos na presença de um ou de dois naufrágios", observa Augusto Salgado, Investigador do CINAV (Centro de Investigação Naval).
No projeto apenas estavam previstos mergulhos para prospeção e registo. Por isso, "a equipa teve de se limitar a localizar e recolher, quando possível, os materiais que se encontravam expostos e soltos. Foi nessa fase que surgiu o rebordo de um prato em loiça, com uma decoração com elos de amarra metálica (servia para segurar a âncora do navio) em tons verdes", descreve o historiador à RTP.
Composição fotográfica adaptada. Estabelece o paralelo com o bordo encontrado no local do naufrágio. Esq: Bordo de Prato, recuperado durante os trabalhos arqueológicos, mostra uma decoração estampada de uma corrente verde - Alexandre Brazão| Dir: Leilão da Baixela, com a marca da companhia de navegação - fonte: https://www.charlesmillerltd.com
Para aprofundar a informação, Augusto Salgado resolveu procurar pelas companhias de navegação das referências escritas: "A primeira pesquisa que realizei foi da companhia do Forerunner e não encontrei qualquer paralelo, nem no tema, nem na cor. A segunda foi na companhia do Newton e a sorte sorriu, pois encontrei uma peça de loiça da companhia que tinha sido vendida num leilão, exactamente com a mesma decoração e a mesma cor. Tínhamos encontrado uma loiça da companhia do Newton".
O investigador considera, no entanto, que não se pode "dizer a 100 por cento que o que vemos são os destroços do Newton, mas podemos afirmá-lo com 95 por cento de certeza".
Para além do paralelo decorativo em forma de amarra, a peça do leilão acrescentava também o nome e o símbolo da companhia no centro da loiça. Essa marca correspondia "a uma questão de prestígio. Esta era da Brazil & River Plate Steam Navigation Co. Ltd. de Liverpool", explica.
Para além do paralelo decorativo em forma de amarra, a peça do leilão acrescentava também o nome e o símbolo da companhia no centro da loiça. Essa marca correspondia "a uma questão de prestígio. Esta era da Brazil & River Plate Steam Navigation Co. Ltd. de Liverpool", explica.
Mais uma vez cruzando os registos arqueológicos e escritos, a equipa encontrou mais dados que conduzem à identificação do navio: a empresa Brazil & River Plate era proprietária do Newton.
SS Newton
Construído no ano de 1864, o navio foi equipado com um motor a vapor que poderia dava ao Newton uma velocidade de nove nós. Com cerca de 76 metros de comprimento e 9,5 de largura (boca), a embarcação foi registada em Liverpool a 1874 pela Lamport & Holt - Brazil & River Plate Steam Navigation Co. Ltd. Tinha a missão de transportar pessoas e carga entre Inglaterra e a América do Sul.
A 19 de março de 1881, o Newton saiu de Salvador da Baía com destino a Londres e a Liverpool. Transportava 31 tripulantes e uma carga de mais de 1.200 toneladas de açúcar e café. Fez uma breve paragem na Madeira, no dia 9 de abril, para trasfega de carvão e reabastecimento de água. No mesmo dia fez-se mar por volta das 11h30. Era a sua última viagem.
Na zona leste da Ponta de São Lourenço, durante a manobra para curvar em direção a norte, o SS Newton embateu no baixio atualmente conhecido como da Badajeira. Eram 14h30.
Os investigadores encontraram registos destas informações no inquérito feito ao naufrágio pela Board of Trade, a entidade britânica que regulava a navegação mercantil. Em Liverpool, nos dias 5 e 6 de maio do mesmo ano, "a história contada em tribunal esclarece que o SS Newton embateu a meio navio nesse baixio, ficando encalhado até se partir", descreve Alexandre Brazão.
Ainda de acordo com a mesma documentação, "não houve vítimas, todas as pessoas foram salvas até porque havia barcos pesqueiros nas imediações e o tempo estava ótimo", acrescenta.
Os investigadores encontraram registos destas informações no inquérito feito ao naufrágio pela Board of Trade, a entidade britânica que regulava a navegação mercantil. Em Liverpool, nos dias 5 e 6 de maio do mesmo ano, "a história contada em tribunal esclarece que o SS Newton embateu a meio navio nesse baixio, ficando encalhado até se partir", descreve Alexandre Brazão.
Ainda de acordo com a mesma documentação, "não houve vítimas, todas as pessoas foram salvas até porque havia barcos pesqueiros nas imediações e o tempo estava ótimo", acrescenta.
O inquérito estabeleceu que o comandante do navio, o Arscott, agiu com incúria mas estaria de boa fé. Foi-lhe aplicada uma suspensão de atividade por seis meses.
Rota arqueológica
A visita submersa ao baixio da Badajeira pode demorar entre 45 minutos a uma hora, mas vai sempre depender também da capacidade de cada mergulhador, sublinha a equipa do CEAM.
Entre as diversas propostas para a rota arqueológica, Alexandre Brazão diz que se pode "visitar o lado norte, nadar por cima dos destroços, descer a partir do topo do baixio, onde aconteceu o embate e se encontra a primeira âncora a cerca de cinco metros de profundidade". Foi também nesse local que se localizou o fragmento do prato. Os vestígios mais pesados foram todos arrastados para a base do baixio, a 20 metros de profundidade, e é para lá que a rota arqueológica segue. Alexandre Brazão esclarece que se "desce pela parede, que é quase vertical, em direção à área da caldeira", que se encontra inclinada entre o baixio e a zona mais profunda a 12-15 metros: "Podemos dar a volta rente à parede e depois seguir para zona do leme, que está a 17-19 metros. Segue-se a da hélice a 20 metros".
O motor, enfaixado na encosta do baixio, está a cerca de dez metros de profundidade e "do lado norte, nos doze metros, encontramos outro guincho e a segunda âncora. É um mergulho seguro", remata o investigador.
A visita submersa ao baixio da Badajeira pode demorar entre 45 minutos a uma hora, mas vai sempre depender também da capacidade de cada mergulhador, sublinha a equipa do CEAM.
Entre as diversas propostas para a rota arqueológica, Alexandre Brazão diz que se pode "visitar o lado norte, nadar por cima dos destroços, descer a partir do topo do baixio, onde aconteceu o embate e se encontra a primeira âncora a cerca de cinco metros de profundidade". Foi também nesse local que se localizou o fragmento do prato. Os vestígios mais pesados foram todos arrastados para a base do baixio, a 20 metros de profundidade, e é para lá que a rota arqueológica segue. Alexandre Brazão esclarece que se "desce pela parede, que é quase vertical, em direção à área da caldeira", que se encontra inclinada entre o baixio e a zona mais profunda a 12-15 metros: "Podemos dar a volta rente à parede e depois seguir para zona do leme, que está a 17-19 metros. Segue-se a da hélice a 20 metros".
O motor, enfaixado na encosta do baixio, está a cerca de dez metros de profundidade e "do lado norte, nos doze metros, encontramos outro guincho e a segunda âncora. É um mergulho seguro", remata o investigador.
Foram mais de 50 horas de mergulho e muitas mais de investigação nas fontes escritas para estabelecer a primeira rota arqueológica do Arquipélago da Madeira.
"Através da observação de numerosos detalhes que o sítio escondia, é possível compreender como foi construído e equipado o navio, mas também reconstituir como é que o navio foi transformado num sítio arqueológico. Além disso, temos um registo de base que permitirá, no futuro, monitorizar a sua evolução e adotar medidas que garantam a sua gestão", realça José Bettencourt.
E remata: "A investigação arqueológica permite ler os destroços do SS Newton. Estes deixam de ser apenas um monte de sucata e passam a ser vistos como património cultural, como museu subaquático".
Financiamento do Projeto Margullar
"Através da observação de numerosos detalhes que o sítio escondia, é possível compreender como foi construído e equipado o navio, mas também reconstituir como é que o navio foi transformado num sítio arqueológico. Além disso, temos um registo de base que permitirá, no futuro, monitorizar a sua evolução e adotar medidas que garantam a sua gestão", realça José Bettencourt.
E remata: "A investigação arqueológica permite ler os destroços do SS Newton. Estes deixam de ser apenas um monte de sucata e passam a ser vistos como património cultural, como museu subaquático".
Financiamento do Projeto Margullar
O Governo Regional candidatou-se a um projeto comunitário Interreg - Margullar, cujo objetivo é demonstrar a validação económica do património cultural subaquático, através do turismo e da economia azul.
Medição da caldeira: 7 metros de comprimento por 3 metros de diâmetro | Pedro Vasconcelos - Projeto Margullar
Os promotores - Secretaria Regional do Turismo e da Cultura da Região Autónoma da Madeira e a Associação Comercial e Industrial do Funchal/ Câmara de Comércio e Indústria da Madeira (ACIF-CCIM) - envolveram o CEAM, em parceria com o CHAM e o CINAV, com o propósito de constituir uma rota arqueológica subaquática dos vestígios submersos sustentada pela investigação arqueológica.
Sendo a vocação do CEAM o estudo científico e a validação do património cultural arqueológico do período moderno e contemporâneo (séc. XV à atualidade), Alexandre Brazão acredita que "a Madeira tem um papel muito importante no estudo da arqueologia desse momento histórico. Acho que podemos ser uma referência a nível global nesse campo".
Sendo a vocação do CEAM o estudo científico e a validação do património cultural arqueológico do período moderno e contemporâneo (séc. XV à atualidade), Alexandre Brazão acredita que "a Madeira tem um papel muito importante no estudo da arqueologia desse momento histórico. Acho que podemos ser uma referência a nível global nesse campo".