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1821, O Regresso do Rei. A história de uma viagem estratégica "à frente do seu tempo"

por Andreia Martins (texto), Nuno Patrício (imagem)
Nuno Patrício - RTP

Completam-se este ano dois séculos desde a viagem de regresso do rei João VI a Portugal depois de uma estadia de quase 14 anos no Rio de Janeiro, para onde a corte portuguesa viajara aquando das invasões napoleónicas. Em "1821, O Regresso do Rei", o jornalista da RTP Armando Seixas Ferreira revela o que se passou em mais de dois meses de expedição pelo Oceano Atlântico, com recurso a documentação e diários de bordo inéditos. No entanto, o autor também reflete sobre os processos históricos de uma época decisiva para Portugal, em plena revolução liberal, mas também para o Brasil, que acabaria por declarar a independência no ano seguinte.

Esta entrevista entre colegas decorre em terra, mas “a bordo” de um navio de guerra que percorreu várias milhas ao serviço da Marinha Portuguesa. A fragata Dom Fernando II e Glória é agora um museu, estacionado em Cacilhas, nas margens do rio Tejo.

No ativo, navegou por mares entre 1845 e 1878, tendo sido a última nau portuguesa da carreira da Índia. Fez mais de 100 mil milhas náuticas, o equivalente a cinco voltas ao mundo, tendo sido praticamente contemporânea das embarcações que permitiram o transporte da Coroa portuguesa entre Portugal e o Brasil, no início do século XIX.

Agora, em doca seca, o navio-museu permite-nos imaginar como era a vida a bordo de uma fragata de guerra naqueles anos. É o mesmo que Armando Seixas Ferreira procura fazer no livro “1821, O Regresso do Rei” (editado em setembro de 2021 pela Planeta), transportando-nos para uma expedição pouco falada que mudou o rumo da história em Portugal e no Brasil.

A família real fez a viagem de regresso a Lisboa entre 26 de abril e 3 de julho de 1821, depois de mais de 13 anos de ausência. Anos que em Portugal ficaram profundamente marcados pelas três invasões napoleónicas, grande instabilidade política e social e pelo estalar de uma revolução liberal a norte.

A bordo da nau com o seu nome, D. João VI, o rei que saíra de Portugal como príncipe regente deixa para trás o filho primogénito, D. Pedro, que viria a tornar-se no primeiro imperador do Brasil, mas também rei de Portugal, ao abandonar as terras de Vera Cruz para lutar na guerra civil portuguesa contra o irmão D. Miguel.

Antes de tudo isto, ao longo dos 68 dias de viagem de regresso a Lisboa, o Rei seguiu com as três a quatro mil pessoas que o acompanhavam neste regresso, cheio de apreensões para lá dos perigos mais óbvios em alto mar, desde a eventual abordagem por corsários ao perigo de naufrágio. Qual seria o destino do Brasil? Como seria a Corte recebida pelos revolucionários?

Ali não muito longe, Napoleão Bonaparte, que D. João VI fintara com a viagem inaugural para o Rio de Janeiro, em 1807, definhava na ilha de Santa Helena, o ponto final definitivo de um ciclo sangrento para a Europa.

Em quase 300 páginas, Armando Seixas Ferreira conta esta viagem épica do regresso, mas reflete também sobre aquele que foi um período turbulento e fervilhante da História.
Pergunta: Qual foi a motivação para escrever sobre este regresso do rei, em 1821? Sabemos mais sobre a partida para o Brasil, que é vista de forma muito simplista. É vista como uma fuga, que acabou por precipitar a independência do Brasil. Há aqui uma tentativa de explicar com detalhe este momento decisivo da história de Portugal. Porquê?

Resposta: Eu gosto muito de História, sempre li bastante. É uma investigação que eu não começo do zero. De facto, este ano assinalam-se os 200 anos do regresso da família real a Portugal depois de 13 anos, quase 14, no Brasil. E eu esperava que isso tivesse sido assinalado, com exposições, eventualmente um filme. E comecei a ler cada vez mais sobre o assunto.

Entretanto, nos meus tempos livres, além da leitura, juntei-lhe alguma pesquisa e comecei também a escrever. Tive a felicidade de encontrar diários de bordo de dois desses navios que fizeram a viagem de 68 dias entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Através dessas páginas, que foram escritas a bordo de navios de linha do século XIX como este, em que nos encontramos, eu encontrei pormenores deliciosos. Ou seja, a segunda parte da história.

Nós sabemos muito, como referiste, da ida para o Brasil, das invasões napoleónicas, mas depois havia um certo vazio em relação à chegada. Contava-se a história em poucas páginas e sempre me soube a pouco. Então comecei a ler esses diários de bordo e comecei a ver que tinham acontecido factos interessantes durante a viagem e foi isso que tentei fazer neste livro, contar como é que a história acabou. 

A certa altura dizes no livro que a saída de Portugal por parte do rei D. João VI foi uma “lição de estratégia” a Napoleão Bonaparte. Em que sentido é que esta viagem para o Brasil surpreendeu o imperador francês?

É preciso ver nessa altura que Portugal era aliado dos ingleses mas também tinha uma aliança com a França, apesar de ter de ser paga a peso de diamantes. Portugal tinha que pagar em diamantes o preço dessa liberdade, dessa paz com Napoleão. Só que chega a um momento em que o príncipe regente, que também devia ter gente bem informada do lado de Napoleão, começa a ver que as intenções de Napoleão poderiam ser outras. E eu recordo um tratado secreto, assinado entre Napoleão e Espanha, com Carlos IV, para dividir Portugal e as suas colónias entre estes dois países: o famoso tratado de Fontainebleau, cerca de um mês antes da viagem.

Ora, se a família real tivesse ficado em Portugal e se fosse capturada, Napoleão poderia concretizar esse tratado. E eu reforço, esse tratado não dizia mais do que a absorção de Portugal por parte de França e Espanha, incluindo as suas colónias. Ao não se deixar aprisionar, D. João VI deixa Napoleão e as tropas francesas, que chegaram um dia depois da saída da esquadra, a ver navios. E depois, no Brasil, consegue organizar uma defesa, consegue combinar o seu Exército com os britânicos e impor sérias derrotas a Napoleão. Porque foram três invasões francesas, mas também foram três pesadas derrotas para os exércitos napoleónicos.

Napoleão, dá-se também a curiosidade, morre durante esta viagem de regresso da corte para Portugal, a admitir nas suas memórias na Ilha Britânica de Santa Helena, que “foi ali na Península Ibérica que me perdi”. Ele assume que esta saída estratégica, e não uma fuga, lhe custou caro, lhe custou realmente estes primeiros dissabores que depois levaram a sucessivas derrotas até Waterloo.

Espanha também participou nas invasões [francesas] contra Portugal e, mais tarde, a própria Coroa espanhola acabou por ficar numa situação muito complicada.

Essa é a ironia disto tudo. Porque D. João VI, ao ter este sangue frio de, em poucos dias, colocar 15 mil pessoas, em 1807, e transferir a sede da monarquia para o Brasil, faz mais do que isso. Ele consegue ficar numa posição de vantagem em relação a Napoleão. Depois é ele que vai, com os britânicos, resgatar a Espanha das garras da águia imperial. Porque a Espanha estava aliada com Napoleão, mas depois é Napoleão vai prender Carlos IV de Espanha, seu aliado. Tem de ser Portugal e os britânicos, que com o auxílio do Exército espanhol, expulsam os franceses da Península Ibérica. Portanto, D. João VI, mais do que ser visto como o rei que fugiu, que abandonou o seu povo, deve ser visto como o rei que conseguiu destruir os planos de Napoleão na Península Ibérica.

Esta viagem que o rei D. João IV faz é inédita, mas comportou muitos riscos. Muita coisa podia ter corrido mal, quer na ida, quer no regresso. Neste livro contas várias histórias e peripécias que aconteceram nestas viagens. Alguma história que queiras destacar?

Há diferenças entre a viagem de ida e a viagem do regresso. A viagem de ida é uma viagem que é feita de uma forma impreparada, de uma forma muito mais rápida. As naus estavam cheias de pessoas, com poucos mantimentos. Faltou água, faltou comida.
A viagem de regresso foi uma viagem mais bem preparada, houve tempo e os navios vinham carregados com os mantimentos necessários. Havia riscos, nomeadamente os riscos de um ataque de corsários, de piratas. Mas por isso é que os navios vinham protegidos: a esquadra de 12 navios tinha veleiros que acompanhavam a nau almirante, a Nau D. João VI, para dar caça a esses navios que eram ameaças à segurança do rei.

Durante a viagem há avistamentos de navios suspeitos. Tocavam-se os postos de combate. Rapidamente os marinheiros tomavam as suas posições. Às vezes tinham de ser atiradas coisas borda fora, porque o mais importante era chegar justamente às peças para enfrentar essa ameaça.

O que eu percebi é que os piratas gostavam mais de atacar presas fáceis. Navios isolados que não vinham protegidos com uma esquadra como esta, do rei de Portugal. No entanto, uma tempestade podia fazer com que os navios se dispersassem, e rapidamente os navios portugueses podiam ser alvos de um ataque.

Eram tempos difíceis, a vida a bordo era muito dura. A disciplina a bordo era brutal. Quem não se portasse bem acabava a ferros. Não nos podemos esquecer que a maior parte destes marinheiros eram recrutados à força. O que acontecia era que pelotões de recrutamento chegavam por exemplo a uma cidade e arrebanhavam uns quantos homens para os navios, e ninguém sabia mais nada deles, às vezes só anos depois, quando esse homem sobrevivia a uma comissão e voltava a casa, é que os seus familiares sabiam.
É uma viagem, a do regresso, em que eu também acabo por concluir que se discutiram temas importantes a bordo. Como foi a chegada a Portugal. Os conselheiros do rei chegaram a aconselhar D. João VI a desviar a sua rota porque não sabiam como é que o rei seria recebido à chegada. Tinha havido uma revolução liberal, podia acontecer algo que podia colocar em causa a Coroa. Portanto alguns conselheiros do rei estavam muito divididos e diziam mesmo que o rei devia seguir para uma corte amiga. Não vou contar o que aconteceu, acho que os leitores podem ter surpresas se lerem este livro. Foi isso mesmo que eu tentei criar. Isto não é ficção, não é romance. É uma investigação jornalística, com documentos do século XIX.

Aquilo que tentei foi colocar o leitor na pele de um viajante destes navios do século XIX. Acho que é fascinante a vida a bordo e acho que transmitir essas sensações ao leitor através de palavras que descobri em manuscritos, em cartas, nos relatos dos jornais, foi a maneira que achei que seria mais interessante para poder cativar o leitor a entrar na história.

Como referes no livro, quando o rei volta para Portugal, regressa quase por obrigação devido à revolução liberal que entretanto estala no Porto. Este rei, para além deste novo problema que tem de enfrentar, também toma uma decisão pessoal e estratégica muito importante e muito difícil, ao deixar o filho primogénito para trás, no Brasil, para poder lidar com a situação. E no ano seguinte ocorre a independência.

Porque é que este rei continua a ser visto de uma forma negativa pela nossa história, tendo sido um rei que tomou decisões tão importantes que mudaram o rumo da história de Portugal?

Se calhar Portugal seria diferente do que conhecemos hoje, e também o Brasil. Porque o Brasil conserva as fronteiras do tempo do rei D. João VI, enquanto a América espanhola se fragmentou em vários países. Acho que esta injustiça em torno deste rei tem a ver com uma propaganda que foi feita pelos jornais franceses, frustrados por não terem conseguido capturar D. João VI. Os jornais franceses diziam claramente nessa altura que o príncipe regente de Portugal tinha fugido com medo, enganado pelos ingleses. Eles assumiam publicamente, a imprensa, que tinham sido burlados por D. João VI. E infelizmente essa realidade algo deturpada chegou ao nosso tempo.

Não foi isso que encontrei. E o que estou a fazer com este livro não é mais do que tentar atualizar essa informação, recorrendo a factos, tentando provar que esta decisão magnânima, como foi dito pelos jornais ingleses, do príncipe regente de Portugal, de ter no século XIX, com os riscos inerentes a uma viagem no Oceano Atlântico, mudado a sua corte para o Brasil.

O Brasil nessa altura era nação portuguesa, portanto mais uma vez, ele não fez mais do que ir para um local seguro. Não foi uma fuga, é uma transferência estratégica à frente do seu tempo, com resultados que depois se revelaram bastante benéficos. Porque conseguiu a salvaguardar a independência de Portugal, conseguiu ajudar a restaurar a paz geral na Europa e vai fundar pela primeira vez um reino europeu no Brasil.

É D. João VI que vai fundar o Estado, o país, o Brasil, em dezembro de 1815, com a fundação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Era assim que Portugal se chamava nessa altura, com a capital no Rio de Janeiro. D. João VI depois não quis voltar logo para Portugal porque sabia que havia riscos grandes de separação se a sede da monarquia voltasse a ser em Lisboa.

O livro que explica também a forma como aconteceu a independência do Brasil. Esta viagem de regresso é muito importante porque, ao sair do Brasil, D. João VI abre caminho para o seu filho D. Pedro declarar a independência em 1822, no ano seguinte.

Nessa altura, o Brasil era apenas uma colónia, mas fazia parte da nação portuguesa, que era vista como um todo. Se analisarmos o que aconteceu, realmente D. João VI terá feito um trabalho importante nos 13 a 14 anos que esteve no Brasil porque, além de fundar o Estado brasileiro, transformando o Brasil em país, ele cria tribunais, escolas, bancos, leva a imprensa.

A população também duplica, consolida a língua portuguesa na América. Há ali um trabalho importante que D. João VI faz em prol de um Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, que depois no ano seguinte, D. Pedro ao declarar a independência, só demonstra como o trabalho tinha sido bem feito.

É verdade que em Portugal, durante esses anos, houve um certo empobrecimento por causa da ausência da corte, das guerras e invasões. Mas foi um preço que tivemos de pagar e D. João VI, era muito prudente. Ficou conhecido para a história como o rei Clemente, porque era completamente avesso a penas capitais, ele perdoava sempre toda a gente.

Mas também podia ser D. João VI, o Astuto, porque conseguir naquela altura, fazer isto quase sozinho, é obra. Não nos podemos esquecer que D. João VI tinha muitos inimigos, até dentro da sua própria família. Estou a falar da mulher. D. Carlota Joaquina, que não lhe deu descanso mesmo depois quando voltaram para Portugal, continuou a conspirar contra ele.

Mas também acaba por ser quem reinou no início de uma época de ruína para Portugal. O século XIX começa com as invasões e termina com Portugal vergado pelo mapa cor-de-rosa. Acaba por ser um sintoma da perceção que temos da história neste século, de um Rei numa altura de declínio.

É verdade. Nessa altura, D. João VI faz tudo para conservar a nação portuguesa como um todo. Quando vê que não está a conseguir, deixa o filho D. Pedro como imperador do Brasil. Ele sabia que assim estava a deixar o Brasil sob a influência da Casa de Bragança. Ele diz isso, segundo uma carta de D. Pedro. Na despedida terá dito mesmo que antevia a separação entre Portugal e Brasil, mas preferia que ficasse para D. Pedro em vez de para ficar com algum “aventureiro”. Era isso que se estava a passar na América espanhola, com vários países a declararem-se repúblicas independentes.

D. João, no fundo, tentou sempre conservar o seu Reino Unido num todo, mas no final do livro explica-se bem o que se passou. Pelo menos conseguiu que o Brasil tivesse como imperador o seu filho. E o seu filho, D. Pedro, depois da morte de D. João VI, seria rei de Portugal.

No livro também dei alguma importância à iconografia deste rei. Nos seus retratos, vemos um homem com aquela fisionomia estranha, mais obeso nos últimos anos de vida, tímido, mas com um olhar inteligente e que lhe adivinhamos um grande carácter que ele depois demonstrou ao longo da história. Ao contrário do vaidoso Napoleão, que aparece sempre como o vencedor, o grande conquistador. Até isso, o facto de nos seus retratos o Rei D. João VI ter aquele aspeto mais caricato, até isso terá servido para se criar este negacionismo em relação a D. João VI.
No livro, referes que a linguagem jornalística pode estar ao serviço deste tipo de investigações históricas. Como é que a experiência de jornalista de vários anos moldou os passos que deste até chegar a este livro? Desde a pesquisa, a escrita, a própria forma de narrar os acontecimentos. Como é que a tua experiência no terreno moldou o processo de escrita deste livro?

Durante a minha carreira na RTP, embarquei muitas vezes em várias classes de navios da Marinha portuguesa, mas também nas armadas de outros países. Em 2003, estive na guerra do Iraque, a bordo do USS Theodore Roosevelt, o porta-aviões nuclear norte-americano, cerca de uma semana.

Claro que não tem nada a ver essas condições com um navio de linha como este em que nós estamos a fazer esta entrevista. Mas claro que esses ambientes, a vida dos marinheiros a bordo sempre me fascinou. E eu tentei fazer com que as ferramentas do jornalismo fossem colocadas ao serviço da história. Pesquisei e encontrei relatos incríveis que nunca tinha visto em livros de história. Eu às vezes sou um bocado repetitivo, ando sempre a ler a mesma coisa e quando encontro uma frase nova fico contente.

Dei por mim a ler muitos livros ao mesmo tempo, consultar muitos jornais, esses manuscritos, e a descobrir. Às vezes bastava uma frase, como por exemplo que tinha havido uma desordem durante o regresso no Navio 7 de março, entre dois marinheiros. Esses quatro marinheiros foram transportados para o porão da Nau D. João VI.

É um pormenor da viagem, mas aconteceu. Acho que se formos rigorosos, se contarmos a história tal e qual ela se passou, isso pode dar credibilidade ao leitor e suscitar a curiosidade sobre a vida a bordo, em navios destes.

Esta é uma viagem que marca uma época, que D. João VI regressa a Portugal como um rei que derrotou Napoleão. E é isso que quero deixar claro neste livro. É que aqui, Napoleão é o mau da fita e D. João VI é o herói, apesar de ter vivido sempre no meio do perigo e de ter tido todos contra si. Isto é que impressiona neste rei.
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