O vírus, a biologia e nós

"Mas, se o vírus não é um organismo, como é que se reproduz?". Esta pergunta, escrita, se assim se pode dizer, de forma impaciente, encontrei-a há algum tempo, numa conhecida rede social.

Ignorância, dirão alguns. Contudo, esta pergunta faz todo o sentido. Foi mesmo, até ao momento, uma das questões mais bem colocadas que até agora encontrei no imenso manancial de dúvidas (incluindo as minhas) que pululam por aí.

Na realidade, a descoberta dos vírus tem pouco mais de 100 anos. Só em 1898 foi introduzida a palavra vírus para designar uma nova forma de agente infeccioso, cuja existência alguns investigadores já adivinhavam. Isto significa que, quando em 1885, Louis Pasteur e o seu colaborador Émile Roux desenvolveram a vacina para a raiva, não faziam ideia de que esta era causada por um vírus. O que, diga-se, é extraordinário.

A descoberta dos vírus e o seu estudo desenvolveram-se nas décadas seguintes, num bom exemplo da forma como a ciência trabalha e o conhecimento científico é produzido.

Por isso, aquela pergunta – como se reproduz um vírus – foi já colocada antes por muitos cientistas e a sua resposta é fulcral para o combate às muitas doenças provocadas por vírus. Como é o caso da Covid-19.

O que temos visto nesta crise é uma intensa cooperação entre cientistas de todo o mundo para se descobrir mais e mais sobre o SARS-CoV-2. Como é constituído, como entra nas células, como provoca os sintomas que lhe estão associados, que tratamentos poderão ser mais eficazes, como produzir uma vacina. Mas a pergunta inicial remete também para a importância da literacia científica.

Há anos que o conceito de literacia científica é o eixo do desenvolvimento curricular das disciplinas de ciências. Nas orientações para o ensino da Biologia e Geologia no Ensino Secundário pode ler-se: “Atualmente, a Biologia e a Geologia são áreas científicas cruciais para o exercício de uma cidadania responsável, face à necessidade de compreender problemas e tomar decisões fundamentadas sobre questões que afetam as sociedades e os subsistemas do planeta Terra”. O mesmo é válido para qualquer disciplina científica.

Ora, entre muitas coisas, esta pandemia veio revelar a “generalizada iliteracia [científica] dos portugueses, incluindo muitos dos nossos quadros superiores, intelectuais de serviço e políticos de profissão”. A afirmação é do professor Galopim de Carvalho, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa até 2001 e que infundiu, em tantas gerações de estudantes, o amor à ciência e ao conhecimento.Contudo, Portugal não é caso único nesta relação difícil da generalidade das pessoas com a ciência.

Veja-se o exemplo dos anti-vaxers, os quais, nunca tendo contactado com doenças como o sarampo, a varíola ou a poliomielite, recusam as vacinas. As mesmas que tiveram um papel crucial na diminuição da taxa de mortalidade infantil (TMI) em Portugal.

Desde 1960 até 2018, isto é, em cerca de 50 anos, a TMI em Portugal passou de 77,5 mortes por cada mil nascimentos para 3,3. Entre outras causas para esta evolução, podem apontar-se a imensa melhoria das condições de vida dos portugueses, a criação do Serviço Nacional de Saúde, o qual tem tido um papel central no contexto da actual pandemia, e a condução de programas de saúde, como os cuidados materno-infantis e o Plano Nacional de Vacinação (PNV).

Não por acaso, têm surgido vários estudos que parecem apontar para a correlação entre a taxa de vacinação por BCG e a redução da morbidade e da mortalidade por Covid-19. Ora, Portugal tem das mais elevadas taxas de cobertura vacinal em todo o mundo e a vacina BCG, administrada para a prevenção da tuberculose, só em 2017 saiu do nosso PNV.

E é ao desenvolvimento de uma vacina contra este novo coronavírus que tantos cientistas têm vindo a dedicar os seus esforços.

Acontece que vírus, vacinas e afins são objecto de estudo da ciência, neste caso, da Biologia.

Tal como a produção de alimentos, o estudo dos ecossistemas, a preservação dos oceanos, a conservação de espécies, o estudo das alterações climáticas, a produção de materiais através de processos de biotecnologia, a descoberta de novas terapias contra o cancro, todos aspectos da ciência e da tecnologia em que os biólogos estão e estarão cada vez mais envolvidos.

Nas palavras do bastonário da Ordem dos Biólogos, José Matos, “a Biologia, que é a ciência que estuda a vida, é por isso também ela muito larga”.

Na Biologia - e na ciência em geral - cabem muitos conceitos, como o conceito de vírus, que é o que nos interessa nesta situação. A compreensão desses conceitos constitui, precisamente, a literacia científica.

Ter literacia científica significa que o cidadão comum consegue perceber que beber água quente de 15 em 15 minutos não destrói este coronavírus. E que sabe ler um gráfico que represente a progressão da pandemia. Ou que percebe que a vacina para a pneumonia não é eficaz para o SARS-CoV-2. Ou que não destrói torres de telecomunicações porque acredita que o 5G propaga o coronavírus.
E, afinal, como se reproduz um vírus?

Um vírus não é uma célula. É uma partícula com duas componentes: uma cápsula e, dentro dela, o material genético do vírus, que pode ser ADN ou RNA.

O SARS-Cov-2 contém RNA e é um coronavírus porque na sua cápsula, formada por uma bicamada de lípidos (solúveis em álcool), existem umas moléculas de glicoproteína que formam umas “espículas” (spike, em inglês) e lhe dão a forma de uma coroa.

Como qualquer vírus, o SARS-CoV-2 não está vivo nem está morto. “Anda por aí”, em gotículas emitidas por pessoas infectadas, quando espirram, falam ou tossem e, se encontrar terreno propício, desata a reproduzir-se. Isto é, se atingir as vias respiratórias de outra pessoa, aí vai ele. Daí a importância do distanciamento entre as pessoas para que essas gotículas não sejam interceptadas por alguém.



Portanto, o vírus encontra-se nessas gotículas que caem nas mais diversas superfícies e aí podem permanecer activos durante horas ou dias, dependendo do tipo de material que encontram. Por isso, segundo a OMS, é tão importante “garantir que os procedimentos de limpeza e desinfecção ambiental sejam seguidos de maneira consistente e correta”.

Como qualquer vírus, este coronavírus é um parasita obrigatório. Assim, quando encontra as células-alvo nas vias respiratórias, as proteínas-spike do vírus ligam-se a proteínas receptoras da superfície dessas células e o vírus entra nas células (o processo é, obviamente, mais complicado que simplesmente isto, mas o resultado final é esse).

Uma vez na célula, o vírus põe, literalmente, a célula a trabalhar para ele. Isto é, como qualquer vírus, este SARS-CoV-2 utiliza a maquinaria celular da célula infectada para produzir cópias de si próprio. É tudo química. Esta molécula encaixa naquela, a segunda numa outra e o ADN da célula invadida começa a produzir instruções para a formação de vírus. Até que os novos vírus são libertados para repetirem o processo e a célula morre.

Esta é a história de um vírus, da sua química, da sua biologia.

A doença pela qual é responsável, a Covid-19, atingiu já praticamente todos os países do mundo e virou as nossas vidas do avesso.

Os próximos anos da nossa história global, da economia, à política, passando pela ciência, o ambiente e pela cultura, serão marcados, para o bem e para o mal, por esta pandemia.

Nota: Marília Alves Pereira é licenciada em Biologia e professora do Ensino Básico e Secundário. A autora escreve respeitando a ortografia pré-acordo ortográfico.